sexta-feira, 15 de agosto de 2008

“É normal que a escola seja inigualitária”

Em 1985, Anita Kechikian publicava no Le Monde de l´Éducation as entrevistas que fez a dez filósofos franceses de renome sobre um tema que a todos prendeu o interesse, ainda que de forma diversa: a educação. Apesar de já se terem passado mais de duas décadas, questões e respostas continuam presentes no debate que o ensino e a aprendizagem convocam.

Tais entrevistas foram traduzidas e apresentadas em Portugal por Leonel Ribeiro dos Santos e Carlos João Nunes Correia, num livro intitulado Os filósofos e a educação. Da edição de 1993 reproduzo uma delas que foi feita a Jacques Bouveresse (na imagem), actualmente professor de Filosofia da Linguagem e do Conhecimento do Collège de France.

Com ele podemos pensar a finalidade da educação, a contextualização do ensino no meio de pertença dos alunos, a importância da transmissão de conhecimentos como meio de formação da consciência crítica, a relação necessária entre essa transmissão e a pedagogia, o esforço que o aprender exige, e a diferenciação dos alunos em função das suas capacidades intelectuais.

"A.K. – O Senhor declara-se um herdeiro das Luzes. Quer isto dizer que a ciência deve ser o motor da educação?
J.B. – O filósofo das Luzes baseava-se na ideia de que o progresso dos conhecimentos deve necessariamente conduzir a um progresso moral. O mal vem da ignorância. Suprimir o mal (preconceitos, superstições, etc.), é tornar o homem melhor. Actualmente já não somos tão optimistas. Não sabemos até que ponto o crescimento das ciências pode operar uma verdadeira transformação do homem. Por vezes, somos tentados a pensar o contrário. Não é necessário ser melhor já, para depois com sabedoria poder tirar partido dos conhecimentos adquiridos? Veja-se o problema que coloca no momento actual a utilização racional e sobretudo razoável dos progressos científicos e técnicos. Não será que ao fim de contas, a grande aventura do conhecimento corre o risco de nos conduzir à catástrofe? O saber pode ser desviado e tornar-se instrumento de poder e dominação. Um melhor conhecimento dos mecanismos psicológicos, sociais e políticos, por exemplo, pode constituir uma arma de primeira ordem nas mãos de políticos cínicos. Se retomo, ao nível dos princípios, o programa de filosofia das Luzes, é porque continuo a acreditar, com todas as precauções que actualmente se impõem, na acção emancipadora do saber. Se tivesse de atribuir uma finalidade à educação – falo sobretudo enquanto professor de filosofia – seria a de formar pessoas que fossem um pouco mais críticas.

A.K. – Que quer dizer com isso?
J.B. – A capacidade de resistência à opinião pública e, em geral, a aptidão para conservar uma certa liberdade relativamente aos determinismos sociológicos e culturais. Numa palavra, não ser pura e simplesmente condicionado pelo seu meio.

A.K. – Isso é possível?
J.B. – Em parte, e isso graças ao conhecimento dos determinismos em questão. Um dos factores da injustiça e da opressão é, como se sabe, a ignorância dos mecanismos mediante os quais elas se instauram e se mantêm. Continuo pois a pensar que é importante esclarecer as pessoas, todas as pessoas. Dito isso, como limitar, sem um certo irrealismo, a educação a este único fim, e não lhe acrescentar a adaptação às exigências da sociedade, a começar, obviamente, pelas do mercado de trabalho?

A.K. – A adaptação significa a submissão a uma ordem social, política, económica. Não há nisso uma compatibilidade com a manutenção de um poder crítico?
J.B. – Existem diferentes modos de se adaptar. Podemos fazê-lo acreditando firmemente no sistema de valores aos quais nos adaptamos. Mas podemos igualmente adaptar-nos sem ilusões, por mera necessidade. Adaptar-se não significa aprovar. Subsiste, portanto, uma possibilidade de recusa (…) Não considero trágico que os jovens escolham empreender estudos que os conduzam para as saídas do mercado. Aliás, foi isso mesmo que os seus mestres fizeram.

A.K. – Não será que o problema reside no facto de se formarem os jovens apenas para a produção?
J.B. – Tenho consciência da dificuldade e não sou o que se costuma chamar um modernista. Considero mesmo preocupante e aflitiva a espécie de comunhão que se instalou entre a direita “esclarecida” e a esquerda, no que diz respeito à celebração do culto da modernização (…). Podemos pensar que a tarefa da escola seria também (ao mesmo tempo que proporciona às pessoas o modo de ganharem a sua vida e de se adaptarem) a de orientar a sua atenção para aquilo que existe de profundamente inquietante neste processo (…)

A.K. – Como pode a escola abrir os espíritos e formar a consciência crítica?
J.B. – Mediante a transmissão de conhecimentos. Tem-se o costume de repetir que a filosofia representa a instância crítica por si só (…). Isto é particularmente verdade a respeito da filosofia, mas é-o também, em graus diversos, a respeito de qualquer outra disciplina. Ensinei a lógica matemática nos anos a seguir ao Maio de 68. Era uma experiência que frequentemente se assemelhava a um pugilato intelectual, porque os estudantes não compreendiam por que razão nos esforçávamos a ensinar-lhes uma coisa tão abstracta e sem utilidade real para a preparação da «revolução». Retrospectivamente, têm-se idealizado bastante os acontecimentos de Maio de 68, mas, posso testemunhá-lo, eles foram um inacreditável desfraldar da estupidez (…). Repitamo-lo, todos os saberes autênticos são críticos ou encerram em si um potencial crítico. Só a ignorância é que nunca é crítica.

A.K. – Pondo o acento no conhecimento, o Senhor vai ao encontro de toda uma corrente de opinião. Como se situa nos debates actuais a respeito da escola?
J.B. – Se ponho o acento nos conhecimentos, não rejeito, todavia, mesmo que isso desagrade a alguns, o problema da sua transmissão: a pedagogia. Não vejo por que razão, aliás, teria eu de escolher entre as duas coisas, dispomos actualmente de um cero número de informações acerca das condições de aquisição do saber. Podemos agir como se Piaget nunca tivesse existido? É graças a pessoas como ele que sabemos como uma criança pode aprender e realizar certas coisas em certos momentos e não noutros (…). O que não significa que eu aceite tudo o que foi feito em nome da pedagogia (valorização abusiva e exclusiva da espontaneidade, da imaginação, da criatividade). O aprender exige esforço. Admiro-me que se tenha necessidade de descobrir isso actualmente: sou de origem camponesa e, quando se sai de um meio como o meu, é óbvio que é necessário um esforço ainda maior para chegar a um nível comparável ao das pessoas mais favorecidas.

A.K. – Será que a escola corrige as desigualdades sociais?
J.B. – É completamente utópico esperar que da escola infinitamente mais do que ela pode fazer: realizar, por exemplo, a igualdade numa sociedade originariamente inigualitária. Existe mesmo uma prática igualitarista que reforça a desigualdade. Se se suprime toda a selecção (exames, concursos), são os que têm mais posses que farão o jogo por fora mediante arranjos e conhecimentos e toda a espécie de meios que não têm muito a ver com a inteligência, a não ser com a inteligência prática das pessoas, que, como diz, sabem desenrascar-se.

A.K. – O Senhor é portanto favorável à selecção?
J.B. – Isso parece-me indispensável e inevitável. Espantam-se as pessoas que se insurgem contra toda a espécie de selecção para a entrada nas universidades, mas que, ao mesmo tempo, toleram a existência das grandes escolas onde se constitui uma super-elite, recrutada segundo critérios de selecção extremamente severo. É normal que a escola seja inigualitária, isto é, que ela tente, na medida do possível, seleccionar os melhores, na condição de que essa selecção seja justa. Dito de outro modo, que ela não reflicta simplesmente as desigualdades puramente sociais. É o que se chama o elitismo republicano (…). Infelizmente, isso não faz avançar um passo no sentido da solução do problema, a saber, como dotar-se de um sistema de selecção que opere com critérios intelectuais aceitáveis e aceites. Em 1968, pensava-se que os critérios intelectuais não existiam, que eram apenas critérios sociais disfarçados. A expressão «elitismo republicano» reenvia a um problema, e não a uma solução (…)".

Referência bibliográfica:
Kechikian, A. (1993). Os Filósofos e a Educação. Lisboa: Edições Colibri, Colecção Paideia, páginas 33-38.

Imagem retirada de:
http://teratoblog.files.wordpress.com/2008/03/bouveresse1.jpg

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