domingo, 19 de fevereiro de 2012

Do Infantilismo Político ao Suicídio da Democracia


Post convidado de João Boaventura:

Causa: “O Infantilismo é uma espécie de sensação de bem estar que está ligado ao acto de querer regredir no tempo e voltar a ser criança (bebé) agindo e actuando como tal" (ver aqui).

Efeito: “Democracy never lasts long. It soon wastes, exhausts and murders itself. There was never a democracy that did not commit suicide.” (John Adams (1797-1801), segundo Presidente (1797-1801) dos Estados Unidos da América)

Desconhece-se se uma relação de causa e efeito se processa quando se associa infantilismo político a suicídio da democracia, ou se será na morbodemocracia que se desencadeia o infantilismo, expresso nas perturbações linguísticas e comportamentais a que vamos assistindo no panorama político europeu e nacional, porque os sinais, se não são demasiadamente claros pelo seu descaramento, serão pelo menos assustadores, não só pela sua frequência, mas também porque parecem apostados em superarem-se uns aos outros, como que constituindo uma moda.

Do mundo suicidário do século XVIII de que nos fala John Adams, até ao século XXI, com José Saramago (DN, 25.03.2004) e Boaventura de Sousa Santos (CM, 23.01.2012) a debruçar-se sobre o mesmo tema, foi, sem dúvida, Claude Julien, em Le Suicide des Democraties (Grasset, 1972), quem ressuscitou o claro aviso de John Adams face à crise que a Europa e o mundo atravessava, uma crise que Leonel Franca antecipara em A Crise do Mundo Moderno (Pro Domo, 1945). O escritor José Saramago disse que “a democracia se suicida diariamente, perde espessura e se desgasta, diminuindo a sua densidade.” E o sociólogo Boaventura Sousa Santos opinou que o país vive "numa democracia de baixa intensidade", que "caminha para o suicídio", defendendo como solução uma aposta na participação dos cidadãos nas decisões que lhes dizem respeito.

Mas dever-se-ia antes falar, quando se pretende falar de democracia, do diálogo permanente e equilibrado entre a sociedade civil e o Estado que, permitindo a este satisfazer as necessidades daquela, evitaria ou resolveria conflitos sociais. Ocorre que o problema surge invertido quando o Estado opta pela conflitualidade, ou patenteia falta de soluções. Uma vez que tem força legitimada, cria um condomínio fechado, como se, di-lo Matthieu de Nanteuil, o Estado considerasse “les humains comme une collection d'êtres abstraits, sans corps ni visage, désincarnés”. É assim que se justifica a linguagem infantilizada e apiedada, que substituiu o discurso político de Estado de Direito exigido pelo ambiente incerto em que vivemos.

Não se pode, porém, concluir que a democracia se suicidou, mas que terá dado um primeiro passo, um passo de expectativa, a que outros se seguirão, para um destino incerto e desconhecido, mas seguramente inesperado e incómodo.

O mal tornou-se epidémico. Como aconteceu com Nikolas Sarkozy que, em 2005, reagiu da pior forma às insurreições nos bairros periféricos de Paris, clamando que mandaria “varrer com mangueiras de alta pressão o lixo social” (os emigrantes), o que fez aumentar a revolta. Ou como aconteceu com David Cameron que, em 2011, perante o vandalismo que assolou Londres, declarou que a culpa do comportamento dos jovens “residia nos pais” e no Parlamento afirmou que o vandalismo “não tinha resultado da pobreza mas da falta de cultura”, como se o papel do Estado fosse o de mero espectador e não lhe competisse tomar medidas preventivas que evitassem as repressivas.

A outra face da moeda é a importância atribuível a coisas menores que, se na arte têm relevância, aqui perdem qualquer valor. É a inconcebível concepção opinativa de uma Angela Merkel sobre as pontes e estradas da Madeira, como se, na Alemanha, não houvesse nada mais importante em que pensar do que um ponto perdido no meio do Atlântico. É o inconcebível discurso político, enigmático, fugidio, destemperado, entre o dionisíaco e o apolíneo dos líderes da União Europeia, à falta de engenho e capacidade para gerir o caminho político europeu, ainda pequeno embora já demasiado longo.

E de coisas menores e infantis se ocupam entre nós os que pensam em milhões de milhões de euros, porque nem na metafísica de Aristóteles alcançam qualquer representatividade. Na peugada de Scrooge, ou do Tio Patinhas, vão buscar à sua velha arca coisas avulsas: tiram o brinquedo do Carnaval, subtraem uns euros aos vencimentos, incomodam os historiadores com cortes na memória histórica e desafiam a Igreja a competir no corte de feriados. Se misturarmos todas estas coisas menores com os milhões de milhões de euros, teremos o paradigma do infantilismo político posto a preceito.

A nível nacional o infantilismo assumiu uma dimensão e cenários que aqui me dispenso de reavivar, mas que se exibe nas falas e deixas, nas incontinências verbais e nas frases à procura de textos e contextos onde se inscreverem, com que os políticos, incluindo o nosso Presidente da República, nos vão distraindo, porventura com boas intenções, nestes tempos escuros e mal seguros.

Apesar de, para lá do infantilismo político, haver uma democracia insensível ou mesmo porventura uma democracia a caminho do suicídio, indubitavelmente que o Homem deverá perguntar se terá sido a maior descoberta da Humanidade. E se o dramaturgo grego Sófocles ainda terá razão quando disse: “muitos prodígios há; porém, nenhum maior do que o Homem”.

João Boaventura

Na imagem: Busto de Sófocles (496 a.C - 406 a.C) (Museu Britânico)

4 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Meu caro João Boaventura:

E quanto a Portugal? O infantilismo,

incapacidade e falta de visão dos nossos

líderes (?), associados à (aparente?)

passividade do nosso povo, aonde (ou a

que) nos conduzirão?

Será possível apagar o rast(r)o que (mais

ou menos sem saber como?...) o nosso país

(nós, a nossa gente...) deixou no mundo, ao

longo de tantos séculos?

Aparentemente, isso seria impossível.

Mas, com a "têmpera" dos heróis que temos,

já admito que sejam capazes disso...

Quanto a construir um futuro,

não sei se avançamos às arrecuas ou se

progredimos aos trambolhões. É dolorosa

e triste a realidade e estranha a sensação.

Da minha parte.

joão boaventura disse...

Meu Caro José Batista da Ascenção

Possivelmente Sófocles, quando opinou que não há maior prodígio do que o homem, terá querido transmitir a ideia de que o prodígio tinha dois sentidos: prodígio, tanto pelas asneiras, como pelas grandes ideias e inventos.

Dada a distância que nos separa de Sófocles, resta-nos a escolha, ou as escolhas.

Um abraço

Bruno Avelar Rosa disse...

A participação, enquanto ato democrático essencial, jamais se poderá afirmar unicamente através do reconhecimento da sua importância. É como acreditar que duas pessoas desenvolvem aptidões sociais através do facto de, circunstancialmente, estarem juntas no mesmo local e à mesma hora.
É necessário crescer como cidadão mergulhado nessa possibilidade e na experiência constante desse vivência constitucionalmente estimulada (na teoria).
Nesta linha, os regimes totalitários perceberam bem cedo a importância do paradigma educacional associado. Uma educação diretiva, uma ginástica obediente, um conhecimento reproduzido, um livro e um professor únicos e inquestionáveis educaram cidadãos com os mesmos adjetivos.
Já os regimes democráticos ainda não perceberam o papel da educação no que à sua ideologia diz respeito. Por um lado, nem sequer se livram verdadeiramente do cartesianismo e, por outro, tão pouco esclarecem que competências (conceptuais, atitudinais e procedimentares) são fundamentais desenvolver para a (sobre)vivência numa sociedade democrática através de um processo de ensino-aprendizagem institucionalizado.
Sem uma escola baseada nos fundamentos democráticos, que seja simultaneamente estimulante, moderna e respeitada jamais será possível que os nossos cidadãos assumam a democracia da participação (e não a democracia-fantoche que todos assistimos) como o seu modo de respirar socialmente. Na verdade, associando a ideologia apenas às figuras que a representam (e ao voto quadrianual), mais facilmente se afastarão dela tal como tem vindo a acontecer.

Um abraço,
Bruno

joão boaventura disse...

Caro Nuno Avelar Rosa

Constituímos um exército de combate silencioso, por isso não chegamos a lado nenhum: Primeiro porque não nos ouvem e segundo porque não nos lêem.

É uma batalha perdida sem termo, enquanto o poder for oligárquico.

Um abraço amigo

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