sábado, 25 de fevereiro de 2012

Não se trata de reproduzir o passado

Em Janeiro passado realizou-se, em Portugal, o I Colóquio de História da Alimentação na Antiguidade, numa colaboração entre o Mestrado em Alimentação – Fontes,Cultura e Sociedade da Faculdade de Letras de Universidade de Coimbra,a Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra e a Associação Cultural Thíasos. Pelanovidade e interesse da iniciativa, o De Rerum Natura falou com Carmen Soares,professora do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, e um dos organizadores.

Em que medida a História da Alimentação contribui para esclarecer as raízes da nossa cultura Ocidental?

A identidade de cada indivíduo e, a uma escala maior, da cultura que o molda e que ele produz define-se, também, pelo que genericamente podemos chamar de “Alimentação” (entendendo esta categoria no sentido amplo que os Antigos Gregos davam a “dieta”, mais uma palavra e conceito gregos que entraram no nosso património imaterial). Isto é, a História da Alimentação faz-se através do estudo não só do que se come, mas sobretudo de um “modo de vida” (gr. diaita;lat. regimen), cujo eixo central é a alimentação e para o qual concorrem as práticas de sociabilização e os cuidados com o corpo e o espírito associados ao comer.
Ninguém questiona que o que tradicionalmente se entende por Cultura Ocidental contempla hábitos alimentares/dietéticos distintos do que, por oposição, se poderá denominar, usando mais uma dessas grandes categorizações, de CulturaOriental.
Em suma, conhecer as Cultura Ocidental implica conhecer a Alimentação, ou melhor, a Dieta Ocidental (que se faz, verdadeiramente, da soma de várias dietas). Para tal, importa sempre partir das raízes da questão, naturalmente, do Mundo Antigo (greco-romano e judaico-cristão).

No anúncio do vosso Colóquio referia-se que essa História é relativamente recente em Portugal. Isto significa que noutros países tem tradição?

Significa sim! Muito particularmente na vizinha Espanha, em França, em Itália e Inglaterra. Aliás, foi um master partilhado por universidades dos três primeiros países que serviu de “inspiração” à criação do curso de 2.º ciclo de estudos que actualmente se oferece na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Alimentação – Fontes, Cultura e Sociedade).
Se do ponto de vista da oferta formativa de ensino universitário os primeiros passos nesta área do saber são recentes, do ponto de vista da produção científica nacional já contamos com uma mais longa tradição. De facto, vários investigadores se têm dedicado a estudar e divulgar a História da Alimentação ao público nacional. Permito-me destacar os nomes incontornáveis de Inês Ornellas de Castro (da Universidade Nova de Lisboa), para o período da Roma Antiga, e Maria José Azevedo Santos, para a Idade Média em Portugal (da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra).

Também se salientavam nesse anúncio as ligações que a temática da alimentação faculta, entre disciplinas universitárias com a sociedade. Que relevância têm tais ligações para a imagem dos Estudos Clássicos num tempo em que o utilitarismo dita o que a Universidade deve ou não investigar?

Do ponto de vista amplo e transversal em que está a ser pensado e executado na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (sob a forma de uma oferta curricular de 2.º ciclo) o estudo daAlimentação, é óbvio que, ao aliar os domínios da História, das Artes (em particular da Literatura e do Cinema) e do Turismo, se orienta para os apelos que pressentimos na sociedade civil. Os alunos que se inscrevem neste curso provêm das mais diversas áreas, sendo que predominam os oriundos da Restauração e da Indústria Hoteleira. Na verdade, munidos que estão de uma série de instrumentos e saberes práticos, exclusivamente enquadrados na contemporaneidade, esses alunos sentem falta de uma perspectiva histórica séria (isto é, fundamentada no estudo das fontes a partir dos originais). E é precisamente neste último aspecto que se encontra a pertinência e importância assumida pelos Estudos Clássicos na transmissão de conhecimentos fidedignos e assentes numa investigação séria das raízes culturais do actual património histórico da alimentação. Se queremos proporcionar à comunidade, em geral, e aos agentes especializados nos domínios vários da Alimentação, em particular, um acesso ao conhecimento da dinâmica histórica (actual e não fossilizada num passado desconhecido, mal conhecido ou até ignorado) que lhe subjaz, os Estudos Clássicos (e os Medievais…, para falar nos âmbitos cronológicos habitualmente mais esquecidos ou secundarizados) têm a sua “função utilitária” mais que justificada!

Poderia contar-nos uma curiosidade ou referir-nos uma ideia forte que tenha sido aflorada no Colóquio?

O colóquio contou com uma participação de público bastante numerosa e de proveniência diversa (além dos alunos, muitas pessoas sem ligações institucionais à universidade, do país e do Brasil). Penso que da paleta de abordagens feita sobre a Alimentação na Antiguidade (com destaque para as perspectivas literária, histórica e arqueológica) se tornou evidente que, apesar de cronologicamente convidarmos o público a fazer uma viagem de pelo menos 25 séculos para trás, se falou de questões actuais (a arte culinária, os cozinheiros, os banquetes, a indústria de conserva de peixe, as propriedades dos alimentos, benéficas e prejudiciais à saúde dos indivíduos, as prescrições religiosas sobre o comer, a literatura culinária, o vegetarianismo).
A “curiosidade” do colóquio, entendida como “originalidade”, consistiu nesta actualidade da temática, que se traduziu na realização de uma ceia greco-romana na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. Aí foram servidos, num ambiente de recriação do banquete, pratos inspirados no receituário que as fontes dosantigos Gregos e Romanos nos deixaram.
Não se trata de reproduzir o passado (o que seria impraticável e inútil), mas sim de pôr o passado a falar com o homem de hoje, numa linguagem que este entende e na qual revê a sua identidade cultural.

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