“Não exijam ao povo metamorfoses de hábitos e gostos que a tradição lhes inveterou secularmente” (Fialho de Almeida, 1857-1911).
Sempre que ressurge a polémica sobre o Novo Acordo Ortográfico (questão de grafia das palavras), ocorre-me a minha crítica à mudança do nome do Instituto Superior de Educação Física de Lisboa para Faculdade de Motricidade Humana (questão lexical sobre o significado das palavras), em que o importante cede o passo ao acessório com discutível intencionalidade.
Ou seja: alterou-se o nome Educação Física para Motricidade Humana (e porque não, de preferência, Cinesiologia, ciência que estuda o movimento humano com paternidade em Aristóteles e longa tradição académica em parte do mundo universitário?) e, com essa operação cosmética, julgou ter-se resolvido o problema histórico, filosófico e científico da Educação Física; e, por acréscimo, a libertação de uma desonrosa dicotomia cartesiana que tornaria feliz o malfadado “físico” merecedor de um novo destino, sem passado e sem presente desonrosos. Só futuro promissor!
Vai para um dúzia de anos, escrevi: “Que novidade nos traz esta crisma de nome [de Educação Física para Motricidade Humana]? E em que terreno inóspito se lança à terra nova sementeira sem ter em conta que a dignidade da ciência se reconhece pelo valor do seu objecto e não pela sua denominação?” ("Diário de Coimbra”, 28/04/89). Ou seja, em mera utopia dos que perseguem a boa-nova, ou apenas se tornam seus apóstolos, em arquétipo de imaginação superior à de Oswald Crollius (1560-1609), quando, na sua “Basílica Chymica”, eliminou, simplesmente, o prefixo “al” de alquimia. Neste caso houve o enterro piedoso dum sonho que viria a tomar forma científica na Química, mandando às urtigas (passe o plebeísmo) a perseguição da pedra filosofal capaz de transmutar metais vis em ouro, no desconhecimento de que a ciência se cimenta pela formulação e verificação de hipóteses e não no simples imaginário ou querer do homem.
A Medicina, crença em amuletos e talismãs, a Psicologia, fenómenos da alma, a Economia, a arte de governar a casa, evoluíram para conceitos bem mais abrangentes que em muito ampliaram os seus acanhados horizontes. Mas poucos tiveram êxito na ousadia em querer mudar o nome de ciências de fraca linhagem ou das instituições universitárias em que se processa o respectivo ensino. Mesmo a tentativa de Antoine Cournot (1821-1887) e de William Jevons (1835- 1882), para substituir o nome de Economia Política por Crematística, teve como destino o descrédito. Curioso se torna referir a tentativa, igualmente falhada, de um catedrático de Medicina da Universidade de Coimbra, José Macedo Pinto (1814-1895), para alterar o nome de Medicina Veterinária para Zooatria.
Todavia, ciências há em que o nome que as referencia foi caindo em desuso, como Cibernética que para Platão significava “a arte deconduzir um navio” e para André-Marie Ampère (1775-1836) “o estudo dos meios de governo das sociedades”. Coube a Robert Wiener (1894-1964), ir desencantá-la ao baú das coisas com a poeira dos tempos para nomear o “antigo governo de uma máquina com certa autonomia e capacidade de iniciativa e sua aplicação ao estudo do sistema nervoso”.
Para abreviar razões, existe até o perigo dos licenciados nesta ignota matéria ao lhes ser perguntado, em faculdades de Educação Física, desde os Estados Unidos à Rússia, do Japão à Republica Popular da China, ou seja em qualquer recanto do Globo (com excepção de algumas academias brasileiras, permeáveis a todas a espécie de novidades), qual a matéria dos respectivos estudos verem-se obrigados a fornecerem aos inquiridores um complexo tratado sobre a Motricidade Humana. E, mesmo assim, permanece, ainda, o perigo de tentar dar às palavras uma dimensão que elas não têm espelhando, servindo-me de palavras de André Lalanda, dicionarista de termos filosóficos, “um certo gosto pelo equívoco e uma certa obscuridade que dá a ilusão de profundeza”.
Entretanto, o Desporto, de mansinho, e escudado na sua força de arrebatar multidões, fez-se rei coroado do trono incontestado da disciplina escolar de Educação Física, durante dezenas de anos debaixo do manto higiénico da ginástica sueca, também chamada de Ling. Assistindo-se, assim, à sua emancipação, a exemplo do acontecido com a Psicologia relativamente à Filosofia. Veja-se o exemplo da ex-Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física, actual Faculdade de Desporto (“tout court”), da Universidade do Porto, ao amputar a anterior denominação de Educação Física. Já a oitava faculdade da Universidade de Coimbra, apesar de nomes que circularam aquando da sua criação, entre eles Cultura Física, mantém a sua fidelidade à designação inicial: Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física.
E nesta discussão, longe de chegar ao fim, sendo os congressos científicos um fórum de eleição de apresentação de discordâncias vertidas em tese, aproveitei a realização do “IV Congresso de Educação Física e Ciências do Desporto dos Países de Língua Portuguesa”, realizado em Coimbra (de 2 a 5 de Março de 1995), para denunciar numa comunicação a minha discordância contra o aproveitamento que dela foi feita para alterar o nome do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) para Faculdade de Motricidade Humana (FMH) por este licenciado em Filosofia, e doutorado em Educação Física, pelo antigo ISEF da Universidade Técnica de Lisboa, Manuel Sérgio, ter a Educação Física como uma pré-ciência e a Motricidade Humana como uma ciência ("Motricidade Humana, uma nova ciência do homem" ,ISEF, Serviços de Edição, Lisboa, 1987, p. 34), quiçá, a exemplo de Marx que teve como pré-história a história que antecedeu a chamada Revolução Bolchevique.
Limitado por condições espaciais de um post, obrigo-me a transcrever, apenas, o abstract dessa minha comunicação, intitulada “Motricidade Humana: um novo paradigma para a Educação Física?” Nele escrevi:
“O autor desta comunicação bem sabe que só em exéquias da dicotomia cartesiana da ‘res cogitans’ a tutelar, em servidão milenar, o corpo (‘res extensa’) se tornou frutuoso o diálogo entre a Educação Física, em esconjuro de má fama, e a Filosofia, hoje, em acto de contrição pela defesa da concepção holística do Homem.
Embora a não deseje iconoclasta, no entanto, é por ele reconhecido que a concepção biológica que perfilha poderá entrar em conflito com o pensamento religioso, as raízes de uma cultura enredada em liames da tradição, mesmo que essa concepção se desvincule de um biologismo redutor (ou mesmo castrante) que não mergulhe o genoma no caldo social.
“Malgré tout”, para um parto difícil, com cordão umbilical em entranhas do tempo, só o recurso ao fórceps dos conhecimentos hodiernos dos “Mecanismos da Mente” (título de um notável livro de de Colin Blakemore) e o acesso futuro à cesariana duma promissora Neurobiologia do 3.º milénio parecem capacitados para prosseguir na esforçada jornada científica do actual paradigma da Educação Física sem a cosmética da sua mudança nominal para Motricidade Humana ansiosa em anunciar jubilosamente a crisma como se tratasse dum radioso horizonte em céu de nuvens plúmbeas do passado.
Mas mesmo se ultrapassada qualquer discordância com o paradigma emergente, permanece a questão do nome de Educação Física que se fez património do mundo sem perder o viço das folhas primaveris no Outono erosivo da linguagem do homem comum ou das pessoas ou instituições universitárias.
Como escreveu Armand Cuvillier, filósofo e sociólogo, com vasta obra publicada, autor do “Pequeno Vocabulário da LínguaFilosófica” (1938), traduzido em Portugal e no Brasil, “assinalava Léon Bérard [ministro da Instrução Pública de França, na 2.ª década do século passado] implantou-se o costume de empregar muitas palavras tiradas do nosso velho vocabulário, mas tomadas num sentido novo e misterioso a ponto de que se poderia crer que nos esforçamos por mais não chamar as coisas pelo nome”.
Seja como for, a Terra não deixará de girar em torno do Sol, como anunciou Copérnico, “urbi et orbi”, sujeitando-se Galileu às labaredas da Inquisição!
10 comentários:
Gostei muito da postagem, mas faço uma pequena correção: Copérnico publicou "oficialmente" a sua teoria heliocêntrica somente quando estava à beira da morte, logo as labaredas não iriam atingi-lo.
Grato pelo seu comentário. Reconheço, todavia, que eu me tenha expressado mal. As labaredas da Inquisição recaíram sobre Galileu que teve que se retractar perante a inquisição embora tenha dito: Mas ela [terra] move-se...
"Urbi et orbe", aliás. Desculpe lá! JCN
Recordo o eleito Aníbal
que recupera para história
sob o confronto sem saída
que ensina-nos a memória
ser humano é dos anseios
contribuir virtude o querer
se discorrer for feito campo
então resta-nos combater
para tanto nascido o acordo
todo campo requer estratégia
e educar é por graça convite
para a motricidade a elegia
trás o hábito mui delicado
da escrita sem combate.
A remoção do meu comentário anterior ficou-se a dever a um erro de grafia de uma palavra nele contida. Depois de corrigido, transcrevo-o:
Caro Professor: Começo por um esclarecimento. Os meus conhecimentos de Latim reportam-se a uma, de certo modo, saudosa aprendizagem dos bancos do liceu, em que o 1.º ciclo ia até ao 3.º ano, o 2.º até ao 6.º ano (curso geral dos liceus) e o curso complementar se desdobrava em Letras e Ciências. A partir do 6.º ano, surgia o curso complementar dos liceus (7.º ano) que se desdobrava em Letras e Ciências. Ciências por mim cumpridas. No 4.º, 5º, e 6.º anos havia a disciplina de Português em que o Latim ocupava uma parte substancial do respectivo programa. Salvo erro de memória, havia mesmo aulas separadas para a ministração destas matérias.
Há um ditado inglês que, traduzido para português, diz: “A minha mente está formada, não a confunda com factos”. E este ditado (que faço o possível por não seguir), mais se agrava com o avançar dos anos. Por esse facto, no respeito que me merece os seus vastíssimos conhecimentos de Latim, bota-de-elástico que me considero na consulta da “modernice” do Google, socorro-me da “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” (tomo 33, p. 485), que transcrevo “verbo pro verbo”.”Urbi et orbi, loc. Lat que significa. – À cidade (Roma) e ao universo, e acompanha a bênção do papa ao mundo católico. Por ext. indicae uma coisa, notícia, etc., se espalha por toda a parte”.
Embora amante (aquele que ama) serôdio do Latim, na modéstia dos meus conhecimentos, perante a vossa correcção de “urbi et orbi” para “urbi et orbe”, retiro-me, pedindo-lhe, todavia, o favor da vossa explicação para o meu erro e uma possível correcção se justificada.
Com os pedidos de desculpa aos leitores, rectifico "verbo pro verbo"(3.º §, 8.ª linha) para "verbum pro verbo".
Caro Dr. Rui Baptista:
Longe de pretender corrigir" a sua citação na forma habitualmente utilizada por Sua Santidade, apenas lhe apontei a mais corriqueiramente usada por qualquer um de nós, como em abundância se constata navegando nas ondas da internet, em que por vezes me sinto naufragar. Congratulando-me com o seu tão proclamado e muito louvável apego às latinidades, ouso recomendar-lhe sobre o particular uma consulta a qualquer dos sábios humanóides das nossas letras. Eu fico-me, se não lhe faz mossa, pelo corriqueiro "urbi et orbe". Amistosamente JCN
Meu Caro Professor: Grato pelo seu comentário amistoso, aliás, como sempre. Não preciso de fazer outras consultas (nem isso, sequer, me passou pela cabeça). Bastam-me os vossos profundos conhecimentos de Latim porque gosto de aprender com quem sabe.
A minha intervenção foi apenas justificativa para o facto de ter empregado uma expressão latina que tive como correcta: “urbi et orbi”, em vez de “urbi et orbe”.Ou será que há uma prevalecente na acepção em que dela fiz uso?
Cumprimentos gratos,
A (arte de governar a casa) seria a boa sorte de escrever.
De preferência com a Meisterstück 149".
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