quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO E A MOTRICIDADE HUMANA


“Não exijam ao povo metamorfoses de hábitos e gostos que a tradição lhes inveterou secularmente” (Fialho de Almeida, 1857-1911).

Sempre que ressurge a polémica sobre o Novo Acordo Ortográfico (questão de grafia das palavras), ocorre-me a minha crítica à mudança do nome do Instituto Superior de Educação Física de Lisboa para Faculdade de Motricidade Humana (questão lexical sobre o significado das palavras), em que o importante cede o passo ao acessório com discutível intencionalidade.

Ou seja: alterou-se o nome Educação Física para Motricidade Humana (e porque não, de preferência, Cinesiologia, ciência que estuda o movimento humano com paternidade em Aristóteles e longa tradição académica em parte do mundo universitário?) e, com essa operação cosmética, julgou ter-se resolvido o problema histórico, filosófico e científico da Educação Física; e, por acréscimo, a libertação de uma desonrosa dicotomia cartesiana que tornaria feliz o malfadado “físico” merecedor de um novo destino, sem passado e sem presente desonrosos. Só futuro promissor!

Vai para um dúzia de anos, escrevi: “Que novidade nos traz esta crisma de nome [de Educação Física para Motricidade Humana]? E em que terreno inóspito se lança à terra nova sementeira sem ter em conta que a dignidade da ciência se reconhece pelo valor do seu objecto e não pela sua denominação?” ("Diário de Coimbra”, 28/04/89). Ou seja, em mera utopia dos que perseguem a boa-nova, ou apenas se tornam seus apóstolos, em arquétipo de imaginação superior à de Oswald Crollius (1560-1609), quando, na sua “Basílica Chymica”, eliminou, simplesmente, o prefixo “al” de alquimia. Neste caso houve o enterro piedoso dum sonho que viria a tomar forma científica na Química, mandando às urtigas (passe o plebeísmo) a perseguição da pedra filosofal capaz de transmutar metais vis em ouro, no desconhecimento de que a ciência se cimenta pela formulação e verificação de hipóteses e não no simples imaginário ou querer do homem.

A Medicina, crença em amuletos e talismãs, a Psicologia, fenómenos da alma, a Economia, a arte de governar a casa, evoluíram para conceitos bem mais abrangentes que em muito ampliaram os seus acanhados horizontes. Mas poucos tiveram êxito na ousadia em querer mudar o nome de ciências de fraca linhagem ou das instituições universitárias em que se processa o respectivo ensino. Mesmo a tentativa de Antoine Cournot (1821-1887) e de William Jevons (1835- 1882), para substituir o nome de Economia Política por Crematística, teve como destino o descrédito. Curioso se torna referir a tentativa, igualmente falhada, de um catedrático de Medicina da Universidade de Coimbra, José Macedo Pinto (1814-1895), para alterar o nome de Medicina Veterinária para Zooatria.

Todavia, ciências há em que o nome que as referencia foi caindo em desuso, como Cibernética que para Platão significava “a arte deconduzir um navio” e para André-Marie Ampère (1775-1836) “o estudo dos meios de governo das sociedades”. Coube a Robert Wiener (1894-1964), ir desencantá-la ao baú das coisas com a poeira dos tempos para nomear o “antigo governo de uma máquina com certa autonomia e capacidade de iniciativa e sua aplicação ao estudo do sistema nervoso”.

Para abreviar razões, existe até o perigo dos licenciados nesta ignota matéria ao lhes ser perguntado, em faculdades de Educação Física, desde os Estados Unidos à Rússia, do Japão à Republica Popular da China, ou seja em qualquer recanto do Globo (com excepção de algumas academias brasileiras, permeáveis a todas a espécie de novidades), qual a matéria dos respectivos estudos verem-se obrigados a fornecerem aos inquiridores um complexo tratado sobre a Motricidade Humana. E, mesmo assim, permanece, ainda, o perigo de tentar dar às palavras uma dimensão que elas não têm espelhando, servindo-me de palavras de André Lalanda, dicionarista de termos filosóficos, “um certo gosto pelo equívoco e uma certa obscuridade que dá a ilusão de profundeza”.

Entretanto, o Desporto, de mansinho, e escudado na sua força de arrebatar multidões, fez-se rei coroado do trono incontestado da disciplina escolar de Educação Física, durante dezenas de anos debaixo do manto higiénico da ginástica sueca, também chamada de Ling. Assistindo-se, assim, à sua emancipação, a exemplo do acontecido com a Psicologia relativamente à Filosofia. Veja-se o exemplo da ex-Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física, actual Faculdade de Desporto (“tout court”), da Universidade do Porto, ao amputar a anterior denominação de Educação Física. Já a oitava faculdade da Universidade de Coimbra, apesar de nomes que circularam aquando da sua criação, entre eles Cultura Física, mantém a sua fidelidade à designação inicial: Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física.

E nesta discussão, longe de chegar ao fim, sendo os congressos científicos um fórum de eleição de apresentação de discordâncias vertidas em tese, aproveitei a realização do “IV Congresso de Educação Física e Ciências do Desporto dos Países de Língua Portuguesa”, realizado em Coimbra (de 2 a 5 de Março de 1995), para denunciar numa comunicação a minha discordância contra o aproveitamento que dela foi feita para alterar o nome do Instituto Superior de Educação Física (ISEF) para Faculdade de Motricidade Humana (FMH) por este licenciado em Filosofia, e doutorado em Educação Física, pelo antigo ISEF da Universidade Técnica de Lisboa, Manuel Sérgio, ter a Educação Física como uma pré-ciência e a Motricidade Humana como uma ciência ("Motricidade Humana, uma nova ciência do homem" ,ISEF, Serviços de Edição, Lisboa, 1987, p. 34), quiçá, a exemplo de Marx que teve como pré-história a história que antecedeu a chamada Revolução Bolchevique.

Limitado por condições espaciais de um post, obrigo-me a transcrever, apenas, o abstract dessa minha comunicação, intitulada “Motricidade Humana: um novo paradigma para a Educação Física?” Nele escrevi:

“O autor desta comunicação bem sabe que só em exéquias da dicotomia cartesiana da ‘res cogitans’ a tutelar, em servidão milenar, o corpo (‘res extensa’) se tornou frutuoso o diálogo entre a Educação Física, em esconjuro de má fama, e a Filosofia, hoje, em acto de contrição pela defesa da concepção holística do Homem.

Embora a não deseje iconoclasta, no entanto, é por ele reconhecido que a concepção biológica que perfilha poderá entrar em conflito com o pensamento religioso, as raízes de uma cultura enredada em liames da tradição, mesmo que essa concepção se desvincule de um biologismo redutor (ou mesmo castrante) que não mergulhe o genoma no caldo social.

“Malgré tout”, para um parto difícil, com cordão umbilical em entranhas do tempo, só o recurso ao fórceps dos conhecimentos hodiernos dos “Mecanismos da Mente” (título de um notável livro de de Colin Blakemore) e o acesso futuro à cesariana duma promissora Neurobiologia do 3.º milénio parecem capacitados para prosseguir na esforçada jornada científica do actual paradigma da Educação Física sem a cosmética da sua mudança nominal para Motricidade Humana ansiosa em anunciar jubilosamente a crisma como se tratasse dum radioso horizonte em céu de nuvens plúmbeas do passado.

Mas mesmo se ultrapassada qualquer discordância com o paradigma emergente, permanece a questão do nome de Educação Física que se fez património do mundo sem perder o viço das folhas primaveris no Outono erosivo da linguagem do homem comum ou das pessoas ou instituições universitárias.

Como escreveu Armand Cuvillier, filósofo e sociólogo, com vasta obra publicada, autor do “Pequeno Vocabulário da LínguaFilosófica” (1938), traduzido em Portugal e no Brasil, “assinalava Léon Bérard [ministro da Instrução Pública de França, na 2.ª década do século passado] implantou-se o costume de empregar muitas palavras tiradas do nosso velho vocabulário, mas tomadas num sentido novo e misterioso a ponto de que se poderia crer que nos esforçamos por mais não chamar as coisas pelo nome”.

Seja como for, a Terra não deixará de girar em torno do Sol, como anunciou Copérnico, “urbi et orbi”, sujeitando-se Galileu às labaredas da Inquisição!

10 comentários:

Francisco J. A. de Aquino disse...

Gostei muito da postagem, mas faço uma pequena correção: Copérnico publicou "oficialmente" a sua teoria heliocêntrica somente quando estava à beira da morte, logo as labaredas não iriam atingi-lo.

Rui Baptista disse...

Grato pelo seu comentário. Reconheço, todavia, que eu me tenha expressado mal. As labaredas da Inquisição recaíram sobre Galileu que teve que se retractar perante a inquisição embora tenha dito: Mas ela [terra] move-se...

Anónimo disse...

"Urbi et orbe", aliás. Desculpe lá! JCN

Cláudia S. Tomazi disse...

Recordo o eleito Aníbal
que recupera para história
sob o confronto sem saída
que ensina-nos a memória

ser humano é dos anseios
contribuir virtude o querer
se discorrer for feito campo
então resta-nos combater

para tanto nascido o acordo
todo campo requer estratégia
e educar é por graça convite

para a motricidade a elegia
trás o hábito mui delicado
da escrita sem combate.

Rui Baptista disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Rui Baptista disse...

A remoção do meu comentário anterior ficou-se a dever a um erro de grafia de uma palavra nele contida. Depois de corrigido, transcrevo-o:


Caro Professor: Começo por um esclarecimento. Os meus conhecimentos de Latim reportam-se a uma, de certo modo, saudosa aprendizagem dos bancos do liceu, em que o 1.º ciclo ia até ao 3.º ano, o 2.º até ao 6.º ano (curso geral dos liceus) e o curso complementar se desdobrava em Letras e Ciências. A partir do 6.º ano, surgia o curso complementar dos liceus (7.º ano) que se desdobrava em Letras e Ciências. Ciências por mim cumpridas. No 4.º, 5º, e 6.º anos havia a disciplina de Português em que o Latim ocupava uma parte substancial do respectivo programa. Salvo erro de memória, havia mesmo aulas separadas para a ministração destas matérias.

Há um ditado inglês que, traduzido para português, diz: “A minha mente está formada, não a confunda com factos”. E este ditado (que faço o possível por não seguir), mais se agrava com o avançar dos anos. Por esse facto, no respeito que me merece os seus vastíssimos conhecimentos de Latim, bota-de-elástico que me considero na consulta da “modernice” do Google, socorro-me da “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira” (tomo 33, p. 485), que transcrevo “verbo pro verbo”.”Urbi et orbi, loc. Lat que significa. – À cidade (Roma) e ao universo, e acompanha a bênção do papa ao mundo católico. Por ext. indicae uma coisa, notícia, etc., se espalha por toda a parte”.

Embora amante (aquele que ama) serôdio do Latim, na modéstia dos meus conhecimentos, perante a vossa correcção de “urbi et orbi” para “urbi et orbe”, retiro-me, pedindo-lhe, todavia, o favor da vossa explicação para o meu erro e uma possível correcção se justificada.

Rui Baptista disse...

Com os pedidos de desculpa aos leitores, rectifico "verbo pro verbo"(3.º §, 8.ª linha) para "verbum pro verbo".

Anónimo disse...

Caro Dr. Rui Baptista:
Longe de pretender corrigir" a sua citação na forma habitualmente utilizada por Sua Santidade, apenas lhe apontei a mais corriqueiramente usada por qualquer um de nós, como em abundância se constata navegando nas ondas da internet, em que por vezes me sinto naufragar. Congratulando-me com o seu tão proclamado e muito louvável apego às latinidades, ouso recomendar-lhe sobre o particular uma consulta a qualquer dos sábios humanóides das nossas letras. Eu fico-me, se não lhe faz mossa, pelo corriqueiro "urbi et orbe". Amistosamente JCN

Rui Baptista disse...

Meu Caro Professor: Grato pelo seu comentário amistoso, aliás, como sempre. Não preciso de fazer outras consultas (nem isso, sequer, me passou pela cabeça). Bastam-me os vossos profundos conhecimentos de Latim porque gosto de aprender com quem sabe.

A minha intervenção foi apenas justificativa para o facto de ter empregado uma expressão latina que tive como correcta: “urbi et orbi”, em vez de “urbi et orbe”.Ou será que há uma prevalecente na acepção em que dela fiz uso?

Cumprimentos gratos,

Cláudia da Silva Tomazi disse...

A (arte de governar a casa) seria a boa sorte de escrever.




De preferência com a Meisterstück 149".

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Sem mais, reproduzo as fotografias e as palavras que compõem o último postal de Natal do Biólogo Jorge Paiva, Professor e Investigador na Un...