Eram tardes de início do Verão de 1985.
Quatro jovens, estudantes de Bioquímica, Química, Física e Biologia, passeavam sem fim determinado por vários terraços, recantos, estufas, entre outros espaços, do deslumbrante Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, cuja biodiversidade permite, mesmo ao mais desatento, viajar pela história da vida e da sua dispersão e evolução no planeta Terra. Evidências de evolução por toda a parte. De criação, só a que resulta do cultivo que os jardineiros executam para manter o Jardim!
Passeavam empolgados como se tivessem descoberto todo um mundo novo. A conversa, ou melhor, as conversas bolinavam adentro a história da vida, pela capacidade que a inteligência humana tinha em fazer eclodir conhecimento. Numa confrontação multidisciplinar, cada um esgrimia pontos de vista diferentes e tentava a partir deles levar os outros a especular sobre constelações de “e se o cosmos”, “e se a vida”, “e se o acaso”, “e se a evolução”, “e se o espanto fosse surpreendido a partir de outra inteligência, não humana, talvez artificial, ou melhor, talvez extraterrena?”.
Naquele passeio imerso no ecossistema do Jardim Botânico, primeiramente escola de descobertas, os quatro estudantes não iam sós mas acompanhados por um livro. Liam, uns para os outros, as passagens que lhes tinham fertilizado a curiosidade e alimentado a inteligência com destino marcado para o conhecimento. O que liam? Liam, reliam e discutiam o livro de Carl Sagan, premiado em 1977 com o prémio Pulitzer, e que a editora Gradiva tinha acabado de publicar em português: “Os Dragões do Édem - Especulações Sobre A Evolução Da Inteligência Humana E Das Outras”.
Depois de termos viajado pelo “Cosmos” através da escrita de Carl Sagan, este foi o segundo livro traduzido para português e incluído, com o n.º 8, na ininterrupta colecção “Ciência Aberta”, da editora Gradiva, do Guilherme Valente. Lembro-me bem o impacto que teve ao abrir-nos outras perspectivas, novas formas de abordar certos assuntos, tirando-lhes o pó dogmático e cómodo do saber não questionado. Ao mostrar as insuficiências do criacionismo para explicar todo um mundo de evidências evolutivas.
Passados que foram 26 anos, a memória dessas tardes foi de novo espoletada com a reedição, em Novembro de 2011, de “Os Dragões do Éden”, a 8.ª edição em Portugal, agora incluída na colecção “Obras de Carl Sagan” (6.º título) que a Gradiva dedica a esse incontornável comunicador e divulgador de ciência e tecnologia, passados 15 anos da sua morte.
Esta nova edição daquela que “para alguns é a mais bela obra de Carl Sagan” apresenta-se agora mais agradável, com uma paginação mais generosa e cómoda à leitura, com as anotações cuidadas na sua localização mais apropriada, com uma melhor impressão das imagens originais e constantes na primeira edição portuguesa. Recorde-se que a tradução desta obra foi efectuada pela Ana Falcão Bastos e que a revisão científica foi do físico José Mariano Gago e dos biólogos Maria Margarida Perestrello Ramos e Carlos Henriques de Jesus.
O volume actual, com 269 páginas, compagina a introdução, nove capítulos principais, mais um outro de agradecimentos, uma extensa, rica e diversificada bibliografia, e por fim, um glossário generoso. Capítulo a capítulo, Carl Sagan apresenta-nos uma progressiva problematização, a um só tempo lúcida, estimulante e sem preconceitos, da evolução do cérebro e da inteligência humana. Numa abordagem interdisciplinar, facilitada pelo amplo domínio que Sagan tinha de várias áreas do conhecimento científico, filosófico e histórico da humanidade, somos embalados numa leitura cativante que questiona a nossa importância, lugar e presença na evolução da vida e do Universo.
Sem receio de revisitar e desmistificar as origens incrustadas na diversidade cultural humana, provoca o leitor com hipóteses ainda hoje arrojadas e que incendeiam aquilo que porventura julgava bem estabelecido. De capítulo em capítulo, Sagan leva-nos por uma viagem sem nunca nos desacompanhar. Compara, confronta a evolução e a actividade do cérebro, visitando e transmitindo o que então se conhecia da biologia daquele órgão, presente em nós e noutros seres vivos.
Sagan contagia-nos com a sua paixão pelo conhecimento, apresentando-nos as várias construções, umas mais abstractas e científicas, outras mais concretas e tecnológicas, fruto da actividade daquele órgão capaz de produzir pensamentos, emoções e de as integrar com a informação que recebe do exterior, desenvolvendo culturas e mitos, modelando comportamentos e estabelecendo hierarquias conceptuais nas relações intra e inter-espécies.
Ao longo do livro Sagan guia-nos pelo retrato, possível à época (desde então muitos foram os avanços obtidos pelas neurociências e mesmo na área da psicologia evolutiva), da estrutura orgânica das fundações da nossa inteligência, das nossas paixões, dos nossos medos e das nossas realizações. Identifica e situa a inteligência humana no contexto da evolução da inteligência dos seres vivos.
O último capítulo, famoso também pelo seu título, que, aliás, ecoa na última frase do livro, propõe-nos uma direcção para a descoberta: “O conhecimento é o nosso destino – inteligência terrestre e extraterrestre”.
35 anos depois da primeira edição original em inglês, esta obra prima e clássico da literatura científica popular, continua extremamente actual na forma como contextualiza e problematiza a inteligência humana como a última fronteira do nosso conhecimento.
Ademais, a sua reedição é oportuna nesta época em que “pseudociências irracionais” e diversos engodos tipo “banha-da-cobra" e "elixires da juventude” têm ganho espaço e privilégio nalguns meios de comunicação social, tirando partido da iliteracia científica que grassa de forma indiferenciada e sem qualquer respeito pela inteligência dos cidadãos. A sua leitura, ou releitura, permitirá ao leitor fortalecer o espírito crítico e adquirir ferramentas para desbravar os terrenos férteis do conhecimento com a ajuda da inteligência cativante e contagiosa de Carl Sagan.
2 comentários:
Que saudades de Carl Sagan, dos seus programas na TV! Li dois ou três livros dele, mas não este. Vou ler! Se os quatro canais de TV (dois pagos por nós, os outros empenhados em audiências fáceis) dedicassem, uma hora que fosse a ler e comentar os livros deste senhor, o povo ficaria muito mais culto: seria uma escola para todos, jovens e adultos, paralela e cheia de sucesso. Mas não: continuamos pelo caminho da estupidificação em massa das telenovelas e dos preços certos, elos mais fracos, etc., com malatos, Mendes e Catarinas(ganhando escandalosamente!).
Depois, urge lutar contra toda a forma de ignorância, sobretudo a imposta pelas religiões, a começar e a acabar na religião católica. É isso que tento fazer no meu blog "Em nome da Ciência" que convido todos a visitar e comentar.
Fazem vinte e seis anos que a editora Gradiva publicara o livro de Carl Sagan. Um pouco mais de um quarto de século que a editora Gradiva trás do esclarecimento pela Ciência. Muito bem. Agradeço respectivamente ao professor António Piedade com o atraso de oito meses em lê-lo dotexto e ao editor Guilerme Valente com o adiantado de vinte seis anos.
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