quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Leituras ao calor do sol (e do sul)


Mais um post do escritor e crítico literário Eugénio Lisboa: Excerto de um livro de memórias inédito "Acta Est Fabula".

Eis senão quando um colega do meu pai, Abel Menano (irmão do António Menano dos fados de Coimbra) me disse para ir a sua casa [em Lourenço Marques], porque se queria “desembaraçar” de uns livros, que talvez me interessassem... A desculpa era “já não ter espaço” para tanto livro, mas isso era só um disfarce para a sua generosidade. Fui lá, lambendo-me antecipadamente, e pôs-se a separar livros vários, num total de cerca de cem: as "Novelas Inquérito" (Walter Scott, Conrad, Panait Istrati, D. H. Lawrence, Somerset Maugham, Thomas Mann, Musset, Edgar Poe, Balzac, Dostoiewsky, Tolstoi,Turgueniev, Sigrid Undset, Rudyard Kipling, Galsworthy, etc., etc.), Victor Hugo, os "Cadernos Inquérito" (incluindo vários Plutarcos, Tácito, Platão, Sílvio Lima, etc.). Era um mundo. E, em cima disso, ofereceu-me uma pequena estante onde todos esses livros se acomodavam (à tangente!) Fiquei, literalmente, siderado. Levei aquele tesouro para a casa d aMendonça Barreto e, no meu quarto que dava para a rua, instalei, à frente da cama onde dormia e ao lado de uma secretária em madeira de chanfuta, onde estudava, a minha “biblioteca”, à qual adicionei outros livros que já possuía. Entre os do Sr. Menano, vinham os três volumes do romance gótico do Arnaldo Gama: "O Génio do Mal", que ajudou a “purgar-me” de todas as toxinas que ainda me envenenavam e tinham sobrado da purga violenta que fora a leitura das tragédias gregas e do discurso desenfastiado do poeta Luciano, a seguir à morte do meu irmão.

Foi um período de férias em que uma espécie de ressurreição quase eufórica se seguiu a uma soturna e funérea depressão. Quando as aulas abriram, para o quinto ano, encontrava-me mais preparado para o que aí vinha. O 5.º ano não me deixou recordações particulares, mas a morte de meu irmão deixara marcas: tive sempre notas de sobra para o “Quadro de Honra”, nos três períodos do ano lectivo, mas lembro-me de que foi um ano de algum desencanto. Li muito: quase sempre, logo a seguir ao almoço, pegava num Plutarco, num Tácito ou numa das novelas Inquérito e lia até às três ou quatro da tarde. Depois, pegava nos trabalhos de casa, até às cinco ou pouco mais. Julgo que foi, por esta altura, que meu pai me trouxe, completamente amarfanhado pela água que apanhara no porão do navio, entre Lisboa e Lourenço Marques, na edição da Inquérito, em belíssima tradução deJosé Marinho, o romance de Stendhal, "Vermelho e Negro" ("Le Rouge et le Noir", no original). Foi, em mim, um autêntico terramoto! Apaixonei-me perdidamente pela Senhora de Rênal e foi um amor que nunca me abandonou: a Senhora de Rênal ficou sempre a pertencer ao meu mundo mais privado. Cá fora, na arena, eu andava com fumaças de dominar e meter na ordem as Matildes de la Mole que inundavam o mercado... Mas as Matildes eram só para o toureio; a Senhora de Rênal era para o amor de facto. Nada de confusões! Li, reli, tresli o livro de Stendhal, com uma paixão nunca saciada. Nenhum outro livro me pareceu viável, imediatamente depois daquele. Eu bem lhes pegava, bem tentava lê-los: tinham todos o horrível defeito de não serem o "Vermelho e Negro". Como se podia ser outra coisa? Algo de semelhante se passaria, pouco depois, quando li, pela primeira vez, em tradução portuguesa, todo o teatro de Oscar Wilde. Foi um fascínio deparar, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, com a arte da conversação. Como se poderia não falar assim? Como era possível continuar a viver, sem se possuir, pelo menos, o brilho dos lordes conversadores do teatro de Wilde? Valia a pena viver, se não se podia ter tal brilho, na conversa de todos os dias? Ser menos do que Oscar Wilde era programa de vida que se visse? O brilho, àquele nível, seduz mas também angustia. É um valor que se não absorve pacificamente ou que eu, pelo menos, não absorvia pacificamente. Nas conversas com os colegas e familiares, apetecia-me ensaiar o paradoxo faiscante. Demolir tudo, desassossegar aquela sociedade amolengada e conformista, sob o calor subtropical...

O espírito acerado e voltaireano de Stendhal, a servir-nos, de modo acutilante, os amores intensos de Julien Sorel e da Senhora de Rênal, tinha sido o primeiro deslumbramento irresistível. O segundo foi Wilde. Ambos ficaram até hoje – não são fascínios que se eclipsem.

De entre os vários livros que me chegaram estragados pela água que entrava nos porões do snavios, entre Lisboa e Lourenço Marques, e que o meu pai salvava do refugo dos Correios, veio-me às mãos uma terceira e profunda fonte de emoção: "Jane Eyre", de Charlotte Brontë, na tradução portuguesa, "A Paixão de Jane Eyre", incluída na prestigiosa série “Os Melhores Romances dos Melhores Romancistas”, da editora Inquérito. Jane Eyre era pobre, como eu, e órfã, o que eu, felizmente, não era. Tinha, pois, à partida, quase tudo contra ela. Era, contudo, lutadora, não aceitando, como inelutáveis, desigualdades de origem ou de género. Mulher ou não, considerava-se igual. Este desejo ardente de igualdade, dissessem as convenções o que dissessem, tocou-me profundamente. Também eu ,nascido nas margens mais desprezadas de uma Lourenço Marques banhada de sol, presumi sempre que o sol não era mais sol na Polana snob do que no Alto Mahépindérico! Que se lixassem todos! Por mais que vivessem nos bairros “chics”, a verdade é que nenhum deles penetrara no estilo acerado de Stendhal nem no fulgor enfeitiçante de Wilde. Essas munições e esse gozo eram meus e não desses ricaços desprovidos dos faustos banquetes que, à revelia deles, me assombravame alimentavam! O Índico jogava a meu favor, insinuando-se, gozadamente, nosporões vulneráveis!

Foi, também, entre o 5.º e o 6.º ano do liceu, que adquiri a primeira das peças do dramaturgo americano Eugene O’Neill: "Electra e os Fantasmas", na tradução portuguesa de Henrique Galvão, a partir do original "Mourning Becomes Electra." Bebida nos mitos gregos e “situada” no período da guerra civil americana, subjugou-me completamente e ajudou a completar a purga dos meus próprios fantasmas, não totalmente aplacados pelas tragédias gregas nem pelo Luciano. (...) Foi uma revolução, dentro de mim, e pus-me activamente a escrever também peças de teatro em que violentava barbaramente os temas bíblicos...
De qualquer modo, a mim, perdido nos confins orientais da África Austral, o pulsar trágico e poderoso daquele filho de irlandês exportado para a América subjugou-me, purgou-me e libertou-me prodigiosamente. No fim da leitura da "Electra", [e também] da "Ana Christie" e do "Beyond the Horizon" [que li, depois daquela], senti-me estranhamente fortalecido: quem aguenta isto, aguenta tudo!, pensei eu de mim para comigo. Para alguma coisa há-de servir a tragédia!

Eugénio Lisboa

1 comentário:

Cláudia S. Tomazi disse...

Honesta é a causa do homem
por acto o mergulho infinito
se cada causa celebrar o acto
na confusão o eterno atrito

haverá no ser deste homem
celebrar o mergulho infinito
saberá por acto de causa
honestidade é ser sem atrito

ser homem o é, ao nascer
sem o saber o que seria?
confusão em eterno atrito

honesta é a causa de o ser
nascido homem e sabedoria
eis o acto do ser infinito!

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