segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A SERENDIPIDADE


Texto do Comandante Estácio dos Reis, sobre o tema do acaso, que é um extracto de uma palestra que proferiu no Museu da Marinha:

Eu comecei tarde a interessar-me pelo acaso. Tal só aconteceu quando, em Agosto de 1992, participei no Congresso Colombo, realizado nas Universidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nesta última, num intervalo entre duas comunicações e à frente dum café, conversava com o Professor Amorim da Costa, catedrático da Universidade de Coimbra.

O tema era o acaso na pesquisa histórica ou científica. Como se explica – perguntava eu – passarmos anos à procura do que nunca se encontra e um dia, sem procurar, aparecer-nos aquilo que desejamos?

“Mas isso tem nome. Você não sabe porque não lê os meus livros. Veja a Introdução à História e Filosofia da Ciência. A isso chama-se serendipidade.

Fui ler a tal obra, publicada em 1986, e fiquei a saber, por uma nota de rodapé, que “serendipidade” é o aportuguesamento do vocábulo original serendipity inventado por Horácio Walpole. Serendipidade quer dizer tudo aquilo, mas só aquilo, que nos é agradável e que encontramos quando não andamos à sua procura.

Horácio Walpole é uma figura que importa conhecer: nasceu em Londres, a 24 de Setembro de 1717, sendo o quarto filho e, também, o mais novo de Roberto Walpole (1676-1745), ministro dos soberanos Jorge I e Jorge II de Inglaterra. Horácio foi 4.º conde de Oxford.

Horácio estudos em Eton e Cambridge. viajou por França e por Itália. Entrou no Parlamento mas não fez carreira. Adquire uma pequena mansão barroca perto de Londres, mansão essa que reconstruiu transformando-a num castelo gótico. O recheio do castelo foi sendo enriquecido por obras de arte, de gosto medieval. Horácio, além de coleccionador, era um estudioso, tendo escrito vários livros sobre antiguidades, um gosto que herdou do pai, que possuiu a mais célebre colecção de pintura de Inglaterra. De facto, o Ministro Roberto Walpole, reuniu mais de 400 quadros dos mais famosos pintores, uma colecção que irá ser vendida a Catarina da Rússia, o que, aliás, foi uma bênção, dado que o edifício que a continha ardeu pouco tempo depois.

Horacio Walpole faz uma vida mundana. Visita a França onde é recebido nos mais distintos salões literários. Convive com Montesquieu, d’Alembert, Diderot e mantém, com Voltaire, uma ligação epistolar. Ele próprio escreve O Castelo de Otranto, que é um enorme êxito plumitivo. Manuel João Gomes, que traduziu esta obra para português, encanta-se de tal forma que chega a afirma que “Walpole se içou à categoria de escritor único, inventor dum género, duma fórmula, tal como Einstein o é do seu E=mc2.” É talvez exagerado, mas é bonito. Todavia, n’Os Contos Hieroglíficos, Walpole é inultrapassável e ao mesmo tempo desconcertante. No conto “O rei e as suas três filhas” afirma: “Havia antigamente um rei que tinha três filhas – ou seja, teria tido três filhas, se tivesse tido mais uma. Mas, seja por que razão for, a mais velha nunca chegou a nascer. Era formosíssima, dotada duma viva sagacidade e falava francês na perfeição – nisto, todos os autores da época concordam, e no entanto nenhum deles afirma que a donzela tenha alguma vez existido.” E como se estas contradições não chegassem, continua num frenesim que faria inveja ao famoso Ionesco. Diz: “É bem certo, contudo, que as duas outras princesas estavam longe de ser divinas beldades: a segunda tinha o fortíssimo sotaque do Yorkshire e a mais nova tinha dentes podres e apenas uma perna, o que lhe retirava bastante elegância ao dançar”.

Contudo, Horácio Walpole foi, acima de tudo, epistológrafo. Não há, talvez, na História da Literatura mundial alguém que mais cartas tenha escrito e acabassem no prelo. Ultrapassam as 3000, versando os mais variados temas, desde a política ao acontecimento quotidiano. Tudo lhe serve de pretexto, excepto o que dizia respeito à sua vida íntima, o que eu considero ter sido uma sábia medida.

Desta enorme profusão epistolar (foram precisos 14 volumes, quando publicadas) fazem parte as cartas endereçadas ao seu amigo Horácio Mann, que desempenhava as funções de embaixador de Sua Majestade Britânica na Toscana. Dessas muitas missivas destacarei uma única e, dessa, uma pequena passagem que, no fundo, é o motivo principal desta minha interminável reflexão.

Nessa carta, escrita na segunda-feira, 28 de Janeiro de 1754. Walpole afirma que inventou a palavra serendipity. E esclarece mais: que a foi buscar a um conto intitulado Os três Príncipes de Serendipe, onde se lê que, nas viagens de Sua Alteza, os príncipes faziam, por acidente, descobertas de coisas agradáveis que não procuravam.

O conto a que Horácio se refere foi traduzido da língua persa para o francês e depois vertido em inglês e publicado em Londres no ano de 1722. Parece que a história é verdadeira e que os príncipes eram filhos de Jafer, um rei-filósofo de Serendip ou Serendib, antigo nome de Ceilão – a Trapobana do nosso Épico – hoje com o nome de Sri-Lanka.

O cinema já usou Serendipity como título dum filme estreado em 2001, realizado por Peter Chelson, com os artistas John Cusack e Kate Beckinsale, que em Portugal passou com o título Feliz Acaso. Recentemente, abriu, no nº 225 East 60th Street, de Nova Iorque, um restaurante com o nome de Serendipity servindo um serendipitous hot chocolate, a mostrar que está a ser usado um adjectivo derivado do vocábulo original.

O processo da evolução da palavra começou, quando, em Londres, no ano de 1833, uma alma caridosa publicou as Cartas de Horácio Walpole, mas, mais importante é o facto duma famosa revista literária inglesa, Notes and Queries, ter utilizado, o termo serendipity, num dos seus textos, pela primeira vez. Contudo, para o vocábulo em causa entrar no léxico inglês é preciso esperar por The Century Dictionary, publicado em Londres no ano de 1909, tendo já reaparecido em mais de trinta dicionários de língua inglesa, entre os quais os mais famosos são os Oxford e os Webster, onde se menciona Walpole e a história dos três príncipes.

A língua portuguesa tem demorado a aceitar o vocábulo. Quanto a mim, apaixonei-me pela palavra e utilizei-a em escritos meus, especialmente num artigo que apresentei na revista Oceanos, o que levou um cibernauta a meter na Rede a informação de que tinha sido eu a usá-la, no nosso país, pela primeira vez. Como se viu, não corresponde à verdade. O seu a seu dono. Não será a última vez que a Internet erra.

Em 2001, a Academia de Ciências de Lisboa publicou o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, mas, para meu desgosto, não incluiu a palavra. Felizmente, a língua portuguesa não se esgota neste rectângulo à beira mar plantado. No Brasil António Houaïss– falecido em 1999 -- deixou-nos este novo termo, até com duas variantes no seu Dicionário da Língua Portuguesa, curiosamente incluídas por Mauro Vilar, um sobrinho do falecido autor, que é meu amigo há longos anos.

Com o aparecimento deste novo termo tem sido recordados inúmeros exemplos de descobertas feitas por mero acaso: Arquimedes, ao tomar banho, fica a saber o modo de calcular o volume dum corpo de forma irregular, Colombo descobre a América quando quer chegar à Terra das Especiarias, e Pedro Álvares Cabral, com a mesma intenção, depara com o Brasil. Fleming encontra, também, ocasionalmente, a panaceia que não pára de salvar vidas humanas. Os exemplos não faltam.

Estácio dos Reis

Na imagem: quadro de Carlos Calvet, "Misterioso Ousa".

1 comentário:

Fernando Correia de Oliveira disse...

Nem de propósito, ou os efeitos da serendipidade: as existências da editora nova-iorquina Serendipity vão em breve a leilão - http://www.bonhams.com/eur/press/6472/
um abraço ao Comandante Estácio dos Reis

50 ANOS DE CIÊNCIA EM PORTUGAL: UM DEPOIMENTO PESSOAL

Meu artigo no último As Artes entre as Letras (no foto minha no Verão de 1975 quando participei no Youth Science Fortnight em Londres, estou...