sexta-feira, 5 de agosto de 2022

O PROCESSO CRIATIVO

Por João Boavida 

Pelo facto de, na criação artística, se falar em fundo e forma, e geralmente por esta ordem, não quer dizer que o fundo seja necessariamente anterior à forma. 

Mas dizer isto não significa que seja posterior. 

Talvez se possa dizer que, em muitos casos, eles são simultâneos, não no sentido de se darem em perfeita simultaneidade, mas alternando porque se vão constituindo num processo em que um puxa pelo outro, isto é, solicitam-se mutuamente, cada um criando condições para fazer surgir o outro e, concretizado este, criar condições para o outro e assim sucessivamente.

A consciência de uma qualquer forma, imagem ou ideia, muitas vezes sem se saber porquê, pode gerar a procura do que lhe estará subjacente, ou seja, o fundo de que antes não se tivera consciência e de que a forma será a sua manifestação. Ao revelar-se a forma, encontra-se a matéria que ela pressupõe, e que assim se vai enriquecendo, produzindo novas formas que, por sua vez, ganham consciência doutros conteúdos, ou os vão procurar por necessidade, socorrendo-se, por sua vez, da matéria que a ambas está já alimentando. 

A matéria de que a posterior forma se serviu já não é aquela em que se nutriu a anterior, porque está já transformada noutra, e provavelmente enriquecida. Uma vez consciencializada esta, parte-se para outra forma, que é ainda transitória, mas que se insere num processo que vai ganhando consciência de si à medida que se vai realizando, ou seja, que se vai aproximando de um modelo de que se pode ter mais ou menos consciência.

Embora possa parecer que não, fundo e forma continuam a ser indispensáveis e distinguíveis. 

Vejamos este caso. O pintor Manuel Cargaleiro, segundo o seu testemunho, senta-se em frente do cavalete, pega num pincel, de preferência com tinta azul, e traça na tela uma linha, vertical, ou horizontal. A seguir a essa linha a mão vai traçando outras, ao lado da primeira, ou perpendicularmente a ela, insistindo em tons de azul ainda, ou mudando de cores, procurando harmonias, enredos cromáticos, estruturas visuais que se vão concertando. E, deste modo, a ideia inicial, nebulosa e ainda pouco mais que inexistente, vai ganhando forma e, ao ganhar forma, vai proporcionando novas possibilidades, que são outras formas; e sempre em ordem a uma ideia que se vai completando à medida que se constrói, mesmo que já eventualmente longe da ideia donde partiu. 

Ou seja, o pintor vai concretizando sucessivamente novas formas no sentido de uma forma final, que se foi alimentando de conteúdos transitórios, e que Cargaleiro foi perseguindo até à forma final, que o satisfaz. Ou que não consegue alcançar hoje, mas que talvez amanhã consiga, ou mais tarde, ou nunca. 

António Lobo Antunes por várias vezes falou nas sete ou oito versões que sempre faz dos seus livros, até que, a certa altura, é a própria obra que parece rejeitar novas variantes e o autor sente que já não pode acrescentar mais, porque seria excessivo, nem emendar mais, pois seria prejudicial e estragaria o já feito. Isto é, a forma e a matéria vão lutando entre si através do autor, ou este é o campo de batalha em que ambos se entregam à luta constante para libertarem a obra da desordem em que ainda se enovela. 

Lembremo-nos do “David”, de Miguel Ângelo, junto ao Palazzo della Signoria, em Florença. São conhecidos os factos. “David” foi “retirado” de um enorme bloco de mármore de mais de cinco metros, “o Gigante”, que antes dera origem a projetos escultóricos, abandonados pelos escultores que os começaram - Agostino di Duccio e António Rosselino - e que Miguel Ângelo, mais tarde, conseguiu levar avante a sua ideia.

Esta história parece adequada ao que pretendo dizer. Algumas figuras habitaram potencialmente aquele mármore, mas só uma se concretizou, como se as anteriores tentativas tivessem sido ensaios falhados, ideias não suficientemente claras e motivadoras, ou mestrias não suficientemente capazes de tirar de tal bloco de mármore tudo o que ele podia dar, ou merecia. A propósito, lembram-se daquela passagem do Padre António Vieira?
«Arranca o estatuário uma pedra destas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar o homem (…) ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide os dedos, (…) e fica um homem perfeito».
Desculpem-me, mas não resisti a uma prosa assim, e também, a alguns cortes para mais o aproximar ao nascimento de David. Como se vê, várias fases, que é um fundo em transformação, vão dando origem a formas sucessivas até à forma final, a que satisfez o artista, e ainda hoje nos encanta. Sendo assim, o autor só em parte preexiste à obra, sendo mais o seu executante que o seu criador e sofrendo, por vezes, grandes angústias à procura duma forma final que o satisfaça, e que não encontrou ainda, embora lhe possa já provocar alguns esboços.

Esta ideia não tem nada de moderno, embora frequentemente ande envolvida em efabulações. A criação artística contemporânea tem seguido, de algum modo, este processo ancestral e eterno, mas agora mais perto da valorização da espontaneidade de traço, dum definitivo e acabado rasgo inicial. A ideia das Musas inspiradoras não é mais que a visão poética, espiritual, mitológica da verdade profunda duma situação destas. 

Miguel Torga dizia que o primeiro verso de um poema lhe era dado, mas que aos outros os tinha que conquistar, diria eu, retirar a ferros do conjunto de que o primeiro se soltara sem se saber porquê. Aliás, o termo “forma” foi sofrendo evoluções interpretativas no sentido de ser entendida não necessariamente como atualização, ou forma de um conteúdo anterior; ou um a priori (um anterior de qualquer forma posterior, que, por sua vez, é conteúdo doutra posterior) mas como o que abarca, ou pode abarcar, um conteúdo. Pensa-se pois mais numa forma agregadora e harmonizadora que numa forma acabada, o que dá ideia de processo de que se falou atrás. Daí, modernamente, a noção de forma se ter tornado equivalente à de possibilidade, e a de conteúdo à de realidade dada. 

E, chegado aqui, não posso deixar de referir Platão, o filósofo grego, discípulo de Sócrates e mestre de Aristóteles, esse extraordinário trio que marcou todo o pensamento ocidental. 

Como se sabe, Platão considerava que o verdadeiro conhecimento é constituído por ideias, ou essências, sendo as informações sensíveis um conhecimento imperfeito e causador de enganos. Através do célebre Mito da Caverna, na “República”, Platão ilustrou a situação do ser humano, que não consegue ver mais que as sombras desse mundo perfeito porque está acorrentado ao fundo de uma caverna (a vida neste mundo ilusório). Mas, desse mundo, onde habitou antes, tem uma certa reminiscência, e algumas ciências, como a matemática e a geometria, são vias de aproximação desse mundo perfeito.

De resto Platão reconhece vários níveis no conhecimento: miragens, perceções sensíveis, conhecimento matemático e, por fim, ideias. A inspiração artística não andará longe deste desejo, desta ânsia de transcendência, dum paraíso perdido a que incessantemente se tenta regressar. 

Esta explicação é um mito, muitas teorias e investigação gnosiológicas posteriores ultrapassaram esta teoria, mas ela mantém uma linha de entendimento das coisas, uma conceção que mistura o mítico com o real, ou procura conceções que são sobretudo níveis de aproximação ao verdadeiro real, e de que não andará longe a ânsia do artista perseguindo a perfeição. Por outro lado, o espírito grego tinha tendência para apreciar as coisas segundo modelos artísticos, e estes segundo regras de harmonia. 

Sendo assim, quase que poderíamos dizer que a obra preexiste ao criador e é ele que, por graça dos deuses inspiradores, a deverá encontrar, ou melhor, a poderá extrair da confusão caótica e da opacidade informe que a esconde. Por outro lado, o facto de o artista a não encontrar logo, ou raramente o conseguir, não quer dizer que não esteja já, de algum modo, concebida num mundo superior (na mente de Deus, etc.), ou assim parece. 

O artista tem uma ideia do que quer (ou vai tendo à medida que vai realizando) mas, em ambos os casos, o seu trabalho é uma aproximação mais ou menos bem-sucedida dessa ideia, desse modelo de perfeição.

João Boavida.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Arriscaria dizer que toda a actividade humana (tendo presente a ideia de que acto é individual, voluntário, racional e que pode ser pensamento, acto de pensar) envolve algum grau de criatividade.
A criatividade é tão inerente ao ser humano que cada acto envolve uma infinidade de tensões e de escolhas.
Entendida neste plano, diria que o nosso destino é sermos criativos, que a criatividade é o modo de ser dos humanos, do ser humano, não como objectivo intencional e específico, mas como dinâmica vital e social, que implica meios e competências de adaptação, de sobrevivência, enfim, de realização de satisfação.
As formas em que essa criatividade se vai corporizando, e que são manifestações culturais, representam valores que são reconhecidos e apropriados como tais, havendo indivíduos a quem ocorre realizá-los como objectivo consciente e deliberado.
Em todas as áreas, há quem se destaque pela criatividade, ainda que, não raro, essa criatividade seja mais ostensiva nas artes do “espectáculo”, ou espectaculares. É mais fácil ver a criatividade do que se passa diante dos nossos olhos, seja escultura, pintura, cinema, teatro, jogos, competições, coreografias, arquitectura, do que ver a criatividade dos autores de tantas dessas exibições.
Ora, o ser humano tem a aptidão de tranformar aquilo que é a sua fatalidade naquilo que deve ser a sua vida, o seu objectivo, o seu trabalho. E a criatividade, de modo de ser do humano, foi sendo, cada vez mais, o modo como o ser humano deve ser.
Neste aspecto, é como se o ser humano fosse tanto mais humano quanto mais criativo.
A criatividade, por ser condição da natureza humana, que a reconhece como um valor humano da maior importância, foi colocada no centro dos valores, interesses e objectivos, que movem as estruturas culturais e produtivas de todos os quadrantes.
Quanto mais criativas, mais serão promovidas. Em todo o caso a sua promoção dependerá da criatividade dos seus processos.