segunda-feira, 25 de julho de 2022

ESTRATÉGIAS BÁSICAS DE CONVENCIMENTO: O CASO DOS MANUAIS ESCOLARES DIGITAIS


O Jornal de Notícias do passado dia 11, com base em informação prestada pelo Ministério da Educação, informava o seguinte:
No próximo ano letivo, cerca de 12 mil alunos vão levar para as aulas computador ou tablet em vez de livros em papel. Este ano letivo, 24 agrupamentos tinham turmas que estudavam com manuais digitais. No próximo ano, serão 66 (...). O projeto-piloto de manuais digitais envolvia cerca de 190 turmas, 700 professores e 3700 alunos do 3.º ao 11.º ano. No próximo ano (...) serão mais 42 agrupamentos. E a estimativa é que o número de alunos chegue aos 12 mil. 

O jornal Público, do mesmo dia, confirmou a notícia e deteve-se na clássica estratégia - no caso, política - de imposição da mudança: a inovação pretendida, apresentando-se como voluntária, é previamente planeada como obrigatória, omitindo-se, no entanto, isto mesmo.
está a ter em conta a evolução do percurso das turmas, assim como a entrada de mais agrupamentos de ensino. Até ao momento, a adesão aos manuais digitais não é obrigatória. Contudo (...) o Governo tem a intenção de generalizar o uso destas tecnologias a todas as escolas do país.
Essa estratégia prevê, pelo menos, três passos, que recorrem a métodos básicos de convencimento:
1) difunde-se, por diversos meios, a inovação, afirmando-a como extraordinária e propõe-se a sua adopção aos destinatários;
2) a partir de "projecto piloto", apresentam-se "evidências" que "confirmam" os seus benefícios e declara-se que, por isso mesmo, mais entidades desejam aderir;
3) tornando-se "evidente", sempre com base em "evidências" recolhidas, tais benefícios, declara-se a obrigatoriedade do seu cumprimento. 
A mensagem (falaciosa) que passa é a seguinte: o Ministério da Educação nada impõe às escolas, são elas que, em nome da velha autonomia, escolhem (a via única que lhes é apresentada). Com base em "estudos de acompanhamento", que revelam "dados inequívocos" e na "vontade crescente" das escolas em participar, a tutela vê-se na "obrigação" (moral?) de "generalizar" sempre a bem de qualquer coisa.

Como (dá-se também a entender) as vozes dos alunos e das suas famílias são de relevo, difundem-se as suas opiniões (obviamente preparadas) do modo como se pode perceber no vídeo abaixo ("Testemunho da Família Sombreireiro"). 


Este vídeo está disponível no interessante sítio da Escola Virtual.

Voltemos à realidade e à racionalidade:
1) Se pretendemos que as crianças e jovens desenvolvam o seu envolvimento na aprendizagem formal (de modo amplo e profundo, como a escola deve proporcionar) e as suas diversas capacidades de pensamento (desde as mais estruturantes até às mais sofisticadas), temos de estar conscientes das vantagens de usar “papel e lápis”, em vez de “ecrã e teclado”. Sobre este assunto, há estudos esclarecedores que, em vez de apurarem a "satisfação", investigam, o que realmente interessa a "aprendizagem formal" (deixo abaixo duas referências). Insisto nas palavras de Timothy Snyder: "as escolas deviam ser lápis e papel e seres humanos e livros"; 
2) Por melhor que seja a estratégia de imposição da mudança, é crescente a consciência dessas palavras e das opções dos grandes magnatas das tecnologias e de outros com interesse na introdução das novas tecnologias no espaço escolar. Alguém, num comentário do Público diz: "... e quanto mais pequenos forem mais mal lhes faz e menos aprendem. Não é por acaso que os filhos dos grandes de Silicon Valley andam em escolas em que até aos 10, 11 anos não têm nada digital".

O conhecimento (e não o convencimento interesseiro), nesta como noutras matérias, há-de acabar por levar a melhor.

Referências:
- Luo, L.; Kiewra, K. A.; Flanigan, A. E. & Peteranetz, M. S. (2018). Laptop versus longhand note taking: Effects on lecture notes and achievement. Instructional Science, 46, 947-971. 
- Mueller, P. A. & Oppenheimer, D. M. (2014). The pen is mightier than the keyboard: Ad-vantages of longhand over laptop note taking. Psychological Science, 25, 1159-1168.

4 comentários:

Rui Ferreira disse...

Noutro espaço lembrei:
“Desde que participo no debate público, nada me frustra mais do que a completa ausência de noção do que é o custo de oportunidade. Sem o ter em atenção, a discussão sobre políticas públicas é imbecil, fazendo-se análises custo-benefício sem considerar aquele que regra geral é o principal custo" Luís Aguiar-Conraria.
A implementação dos manuais digitais é exemplo disso. Propala-se uma suposta vantagem, amplificando-a, e omite-se todas as suas desvantagens.
Outra coisa, se o “governo tem a intenção de generalizar o uso destas tecnologias a todas as escolas do país”, para quê dizer “que não é obrigatório” ou para quê um projeto piloto? Se a sua implementação nada terá que ver com uma eventual avaliação ao projeto piloto para quê dar-lhe estas vestes? AAHHH, já sei, é para virem dizer que o processo foi democrático.

Anónimo disse...

No reverso da medalha desta ampla autonomia digital, que o ministério proporciona aos mega-agrupamentos, estão os professores do ensino secundário que veem a sua autonomia científica e pedagógica, consagrada em leis de antes e depois do 25 de Abril, proibida doravante.
O que aqui temos é a substituição estapafúrdia do ensino livresco pelo ensino digitalesco.
Enquanto não entendermos que o ensino e a aprendizagem são sobretudos processos mentais que se podem desenvolver com recurso a variados meios, como são os lápis e o papel, os livros e as plataformas digitais, por exemplo, as nossas escolas secundárias, onde os trabalhosos e difíceis saberes científico e humanístico não têm lugar, continuarão na cepa torta.

Helena Damião disse...

Prezado Rui Ferreira, estranho é que as questões óbvias que refere não sejam colocadas directamente ao Ministério da Educação por jornalistas, sindicatos e por nós, professores. Nesta como noutras matérias, além de, como demonstra, a lógica estar ausente, está bem patente a perversão da democracia. Cumprimentos, MHDamião

Helena Damião disse...

Prezado Leitor é isso mesmo: como hoje se critica o "ensino livresco" (marca ideológica do velho Movimento da Educação Nova), no futuro (que será melhor do que o presente ou, pura e simplesmente, não será) há-de criticar-se o "ensino digitalesco" (mas por razões diferentes da crítica ao "ensino livresco"). É que, como diz, "o ensino e a aprendizagem são (...) processos mentais que se podem desenvolver com recurso a variados meios, como são os lápis e o papel, os livros e as plataformas digitais". Cumprimentos, MHDamião

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