quarta-feira, 15 de junho de 2022

O FOCO DO "IMPERATIVO DA MUDANÇA" VIRADO PARA A AVALIAÇÃO ESCOLAR

O Projeto MAIA (Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica) integrado (ou será interligado?) no Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular (que traduz a política educativa vigente) opera a partir do Ministério da Educação/Direção Geral da Educação. Em pouco tempo impôs-se a nível nacional: sendo de adopção voluntária por parte das escolas, o número das que o acolhem é, ao que se diz, crescente. Os depoimentos de representantes destas escolas são altamente elogiosos, fazendo coro com os discursos dos académicos e dos práticos que o teorizam, operacionalizam, etc.

Contudo, o que alguns professores dizem nos jornais acerca do MAIA (deixemos o que ouvimos deles em conversas privadas)  não abona, propriamente, a seu favor: o retorno a ideias básicas da avaliação, que agora são apresentadas como a última invenção; a sua mistura com ideias difusas, ligadas ao currículo do futuro e as incongruências a que conduz; o imenso trabalho que envolve e o próprio nonsense desse trabalho são os principais problemas de que temos dado conta.

Com ou sem MAIA, a avaliação da aprendizagem tem de mudar em todas as escolas Esta é uma declaração política para levar em devida conta. Se tudo muda na educação, então, a avaliação não pode ficar de fora. E, como a mudança é um sério imperativo, há que controlar se ela é real ou aparente.

Carlos Grosso, professor de Matemática, publicou há alguns dias um texto (O inspector foi à escola) em que, num humor refinado, explica isto mesmo. Eis abaixo algumas passagens desse texto.

Maria Helena Damião e Isaltina Martins

"Há dias, a Inspeção foi à minha Escola. Há inspeções administrativas, inspeções financeiras e inspeções pedagógicas. Desta vez foi pedagógica (...) 
Os Senhores Inspetores analisaram atas, instrumentos de avaliação, grelhas de registo das avaliações, inquiriram docentes de diversas disciplinas, questionaram os métodos utilizados na avaliação dos alunos e foram-se embora, claramente montados no alto da sua insuflada sabedoria, injetada por orientação ministerial, com a obrigação de produzir um relatório e com a convicção de que tinham trazido as “luzes”, que tinham iluminado a penumbra onde alguns pobres e coitados vagueiam, lastimáveis docentes encastrados em décadas de experiência. 
Defendem que o ensino deve ser mais experimental, que deve corresponder melhor às experiências de vida dos alunos, que deve focar-se em situações da vida real, em problemas em contexto, pois o que é experimentado é que é, sobretudo, «promotor de aprendizagens significativas para todos os alunos», logo, a prática deve suplantar a teoria, dado que esta costuma ser cognitivamente exigente, nefasta para os desconcentrados, apropriada a elites e, portanto, pouco igualitária, apesar de todo o cuidado democrático em proporcionar o ensino a todos quantos dele queiram usufruir. 
Contudo, são os Senhores Inspetores, sem experiência de ensino, que vão instruir os assombrados docentes, mesmo que estes tenham milhares e milhares de horas efetivas de aulas (…). “Os senhores professores dão demasiada importância aos testes. Têm de diversificar os processos de avaliação. Parece que a vossa preocupação consiste em treinar os alunos para obterem boas notas nos exames.” – diz o Senhor Inspetor. 
Daqui se deduz que o Senhor Inspetor tem pouca consideração pelos exames e pelas classificações que produzem. Alto lá! É que não é bem assim. Porque um pouco mais à frente está o Senhor Inspetor a tomar por referência as notas obtidas pelos alunos da nossa Escola nos exames nacionais, para criticar os docentes cuja avareza revela que as notas atribuídas são inferiores às notas dos exames, o que não pode deixar de merecer severa admoestação. Então, em que é que ficamos, Senhor Inspetor? Os exames são uma referência, ou não são? Devemos olhar para as classificações obtidas nos exames nacionais, ou não? (…). 
Produzido o relatório, verificamos que é necessário traduzir para os alunos, nos instrumentos de avaliação, a importância relativa de cada um dos domínios ou tópicos. Muito bem. 
Porém, costumamos ouvir de Vossas Excelências que o conhecimento é multidisciplinar, que é necessário desenvolver projetos inter-disciplinares, pois a realidade é complexa e o conhecimento deve integrar os diversos pontos de vista proporcionados pelas diferentes disciplinas (…). Ou a avaliação deve centrar-se apenas no que a cada uma das disciplinas diz respeito? É confuso, não é? Mesmo que os itens dos instrumentos de avaliação se limitassem à própria disciplina, como proceder em itens que integram diversos domínios ou tópicos? (…) 
Também, do relatório inspetivo, sobressai a necessidade de «promover oportunidades de autoavaliação e autorregulação das aprendizagens» e que é fundamental privilegiar «um feedback de qualidade, centrado na tarefa e descritivo, que acompanhe e ajude a melhoria das aprendizagens, que induza os alunos a pensar o seu desempenho e dos seus pares». 
Excelente (…). Vamos lá operacionalizar isto. De cada vez que cada um dos 129 alunos da professora Joana resolve um item, ela vai escrever 129 pequenos textos que ajudem cada um dos seus alunos a perceber se cumpriu a tarefa com sucesso, se a cumpriu com algum sucesso, se tem de se esforçar e estudar um pouco mais ou se está completamente perdido relativamente àquele assunto (…). 
Imaginando que a correção minuciosa da tarefa, a produção do pequeno texto descritivo (…) pode levar uns 15 minutos por item, que um teste de avaliação pode ter dúzia e meia de itens, que se fazem vários testes de avaliação por ano, nunca menos de meia dúzia (mas que, segundo as orientações superiores, devem ser muitos e frequentes) (…). «É só fazer as contas», lembrando a frase célebre de um apaixonado pela educação. Contando só com meia dúzia de testes por ano, dá 497,5 dias. Mais o tempo que se despende na escola, com a componente letiva e não letiva (24 horas por semana), mais o tempo de preparação das mesmas, contando também com as reuniões de departamento, de conselho de turma, do grupo de docentes da Educação para a Cidadania, da Flexibilidade Curricular, etc., adicionando dois dias de descanso por cada cinco dias de trabalho e ainda um mês de férias, ficamos com 1017,4 dias por ano ocupados (…). 
Em suma, o que durante séculos bastou para os alunos compreenderem em que nível se situava o seu desempenho, que era o feedback constante dado no decorrer das aulas e a nota atribuída pelo professor nos instrumentos de avaliação, agora não é suficiente. 
Vossas Excelências consideram que os atuais alunos, que andam muito distraídos com as “redes”, não conseguem compreender o que é um 31%, depois de, insistentemente, o professor o chamar à atenção para o fraco desempenho nas aulas. Talvez haja alguns para os quais 31% é suficiente. Então, cabe ao professor explicar, bem explicadinho e por escrito, que 31% é um nível insatisfatório, que o aluno tem de estar com mais atenção nas aulas, sem telemóvel, que tem de praticar mais, que deve trazer sempre o manual e o caderno diário, caneta, lápis e borracha (…). 
Será que se imagina que, para os alunos que revelam fracos desempenhos, resultará melhor um pequeno texto escrito do que a intervenção direta, no momento, que se faz no decurso de grande parte das aulas? (...) A experiência que tenho e que partilho com os meus pares, grande parte de nós a caminho das quatro décadas de ensino, é que o feedback habitual tem maior qualidade do que aquele que nos é proposto. 
A Educação sofre de uma moléstia grave. Os pensadores da Educação (…) gostam de mudar, de alterar, pois a evolução faz-se de mudança (...). Contudo, alterar é diferente de evoluir (...). Alterar é mudar o que se tem. Evoluir é substituir o que existe por algo melhor, mais satisfatório. 
A inspeção foi à Escola e, sendo certo que teve o contributo positivo de motivar reflexão sobre procedimentos, a súmula (...) não é favorável. Os Senhores Inspetores vendem uma cartilha conotada com as “eduquices” que têm causado enorme erosão na apetência pela profissão docente. 
Ser professor é uma profissão excecional (...). Precisamos de professores atentos e disponíveis, não podemos escravizá-los, deixá-los exangues pelo afogamento em excesso de dados intratáveis. 
Senhor Inspetor, precisamos de algo exequível, de algo melhor, que seja mais satisfatório, se o houver. Mudar por mudar, ainda por cima se é inexequível, logo pior… então é melhor manter." 

8 comentários:

Anónimo disse...

O triunfo da estupidez nas escolas e na educação é assunto sério demais para que o aborde com paninhos quentes, preferindo então a brutalidade transparente e esclarecedora de chamar os bois pelos nomes.
Os educadores de infância e os professores dos ensinos básico e secundário gozam, ao abrigo do estatuto da carreira docente em vigor, de autonomia científica e pedagógica no exercício das suas nobres funções.
Pois então deixemo-nos de hipocrisias e entremos diretamente no busílis da questão:
o ministério quer que todos os cidadãos à saída da escolaridade obrigatória sejam avaliados muito positivamente no seu perfil democrático e no seu sucesso escolar pleno. É evidente, para qualquer pessoa minimamente ligada à Terra, que tais megalómanos objetivos educacionais são impossíveis. Então, o que faz o ministério com a coadjuvação dos seus inspetores e demais pessoal das chefias intermédias: obrigam os educadores e os outros professores a preencherem grelhas com mais de 20 itens, para cada aluno, onde se atesta, criminosamente, e com dolo, que todos os alunos da escolaridade obrigatória tiveram sucesso na escola.
Para esta escola, onde a estupidez, a violência e a indisciplina têm vindo a medrar nos últimos anos, o lema, sem as hipocrisias governamentais, deveria ser:
- O crime compensa.

Rui Ferreira disse...

“Em ditadura ou em democracia, os procedimentos informais, a meio caminho entre o nepotismo e a corrupção, sempre enformaram a sociedade e a política portuguesas” (António Barreto, Sociólogo, 28 junho 2020, Público).
O projeto MAIA é disso um exemplo, assinado preto no branco com a chancela da “adoção de cariz voluntário”, mas que na prática, quase sempre por pressão do nepotismo, vincula grande parte das escolas. Não vejo mal nenhum que o governo tenho como legítimo o projeto MAIA, tem é que fazê-lo segundo as normas que regulam a democracia, começando por dizer ao que vem e submetê-lo ao crivo da AR.
Sobre o projeto em si, depois de lidas todas aquelas #folhas, concluo da seguinte forma: 1/3 de coisas que se fazem e sempre fizeram; 1/3 de coisas inexequíveis, algumas próprias da investigação mas impossíveis de operacionalizar devido às condições do exercício da função docente; 1/3 de coisas disparatadas.

Anónimo disse...

Caro Rui Ferreira,

As coisas de que fala são "inexequíveis" nos campos da retidão moral e da legalidade, que, convenhamos, não são os terrenos onde, atualmente, melhor se move a avaliação escolar. Na gigantesca farsa montada pelo governo, os professores são obrigados a avaliar e classificar positivamente os perfis democráticos de TODOS os alunos à saída da escolaridade obrigatória, assim como atestar o sucesso educativo de TODOS os alunos, através de preenchimento de grelhas de avaliação sobre dezenas de itens como, por exemplo, aprendizagens mínimas, melhoria das aprendizagens em sala de aula, atitudes diárias em sala de aula, comportamento diário em sala de aula, criatividade diária em sala de aula, classificação dos testes, autonomia, planos de recuperação, medidas universais, necessidades educativas especiais, faltas justificadas e injustificadas, provas de avaliação extraordinária, perfil democrático, etc, para cada aluno, um exercício manifestamente inexequível que, por efeito de ameaças mais ou menos veladas, se torna, de repente, exequível.

Cordiais saudações

Rui Ferreira disse...

O método utilizado na elaboração do PASEO, articulado com as AE, ambos centrados nas competências, é uma impossibilidade no âmbito da avaliação do processo de ensino e aprendizagem. As competências referem-se aos objetivos gerais (alvos, finalidades, metas), não observáveis e, por conseguinte, não mensuráveis. Para as atingirmos precisamos de as operacionalizar. Como se poderá gerir a aprendizagem sem o critério de mensurabilidade? Só mesmo passando os alunos de ano e ter fé que um dia lá chegarão.
“… como instrumentos de planificação e de avaliação, as competências são vagas e polivalentes, e que, por não indicar o tipo de modificação que progressivamente deve operar, a sua formulação é inútil no campo da gestão da aprendizagem (…) Para a avaliação escolar, a referência a competências-padrões … é inoperante, porque elimina desde o princípio a especificidade do conteúdo escolar que é o que realmente nos interessa”. (Birzea, 1986)

Helena Damião disse...

Prezados Leitores
A minha leitura da multiplicidade dos documentos produzidos no âmbito do projecto em causa coincide com a leitura de Rui Ferreira: "1/3 de coisas que se fazem e sempre fizeram; 1/3 de coisas inexequíveis; 1/3 de coisas disparatadas". Ora, precisamente por isso, coloca-se aqui um problema de ordem ética aflorada pelo Leitor Anónimo: os professores podem ser induzidos, sentir-se obrigados ao que refere mas deverão fazê-lo? Deverão fazer o que, com base em conhecimento consideram que não devem fazer?
MHDamião

Rui Ferreira disse...

O grau de empreendimento requerido na defesa do MAIA é diretamente proporcional ao nível da sua inutilidade. O que é bom impõe-se naturalmente. O projeto está longe de ser o caso.
Na minha escola o MAIA não entra. Estou lá eu. A luta é constante, incómoda e não sei se a ganharei. Os colegas das escolas onde o projeto foi adotado dizem “fizemos para os calarmos, mas tudo continua como antes”. É assim em tudo na escola, na implementação das DAC, da Cidadania, da Flexibilidade, faz-se para “não chatearem”. Só há um pequeno problema, o uso dos alunos como cobaias. Submetidos a tratamentos incapazes perdem-se. Quem se responsabiliza? Eu não.

Helena Damião disse...

Face a medidas políticas (que não o são verdadeiramente pois todas as medidas "políticas" devem ter em vista o "bem-comum"), como professores, não podemos deixar de colocar uma questão de ordem ética básica: temos crianças, adolescentes e jovens adultos ao nosso cuidado, é nosso dever ensiná-los para que possam aprender, mas diversas contingências desviam-nos desse desígnio. O sentido de responsabilidade obriga-nos a perguntar: o que devemos fazer? Da realidade advém uma outra pergunta: o podemos fazer? Ou, talvez: podemos fazer alguma coisa? É a impossibilidade de responder a estas perguntas, caro Rui Ferreira, que está a destruir a docência, com as consequências que isso terá (tem) nos alunos. MHDamião

Anónimo disse...

Muitos professores do liceu que, outrora, chegaram a gozar de autonomia pedagógica e didática no exercício das suas nobres funções. não se conformam com a sua despromoção em funcionários subalternos, que se devem limitar a cumprir ordens, e veem a reforma, aos 67 anos, como a única tábua por onde se podem salvar do inferno que é uma escola cheia de sucesso e felicidade fictícios!

NOVA ATLÂNTIDA

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