De Eugénio Lisboa.
O nosso meio intelectual anda, fora de dúvida, a pedir uma honesta e radical barrela, E os nossos professores, escritores e críticos andam a precisar de um sólido curso de ética profissional. Publicam-se, actualmente, entre nós, as coisas mais aberrativas e ofensivas de uma inteligência lisa e clara, que não teme fazer escrutínios severos.
Estas coisas aberrativas são, porém, aclamadas aos gritos e com fórmulas aquecidas, indiciando um misto de paranóia e imbecilidade. Textos que não são coisa nenhuma, a não ser mixórdias indecifráveis, são elevados aos cornos da lua, onde ficam pendurados, para benefício dos basbaques. E são promovidos por nomes egrégios e muito aclamados na nossa praça literária.
Alguns destes textos são afoitamente brindados com afirmações que os declaram, nem mais nem menos, “os mais importantes de todos os tempos” e outros biscoitos neste gosto.
Pergunto: quem sobrevive a isto?
É que tudo isto anda a infectar o meio intelectual e o meio académico, induzindo, nos aspirantes a professor, a escritor, a ideia de que “agora é assim que se faz” e que “esta é a literatura que temos de fazer”.
Para espanto de muito poucos, eu incluído, Portugal tornou-se, às mãos destes trapaceiros, a capital universal da “inovação” literária, onde linguagem e estrutura narrativa são revistos e actualizados todos os quartos de hora. Ao escritor mal saído dos cueiros, já se lhe exige um “teor de inovação”. Produzem-se trambolhos que ninguém lê e todos aclamam e premeiam.
Portugal é, acima de tudo, um centro de pedantes provincianos e, em geral, de pouquíssima verdadeira cultura, totalmente desorientados, mas que, infelizmente, se tornam “influentes” (a pobreza intelectual do meio permite-o). Quando o perpetrador de um mau livro detém uma tribuna crítica, o desastre não tem remédio. O putedo literário não quer confrontos com ele, porque pode vir a precisar dos seus futuros favores de crítico. Há que engolir e calar.
Mas como eu já não ando a fazer curriculum e tenho 92 anos, possuo aquilo a que Pirandello chamava a “franqueza do túmulo” e não tenho medo de chamar os bois pelos nomes (aliás, devo dizê-lo a meu favor e sem favor que não precisei de chegar a esta idade para dizer sempre o que penso).
Publicou-se agora, entre nós, um “romance” que mereceu duas suculentas páginas de louvor destemido, num conhecido quinzenário literário, sendo o louvor da autoria de uma festejada escritora portuguesa. O “romance” intitula-se um dia lusíada, sendo seu autor António Carlos Cortez (com quem tive sempre relações amistosas) e a autora do vasto louvor a eminente Lídia Jorge, com quem nunca tive qualquer querela, só lhe devendo atenções. Confesso que me custa a acreditar que Lídia Jorge, com a grande responsabilidade que lhe assiste, se tenha prestado a este exercício de um louvor de alta amperagem, dedicado a uma incrível mixórdia literária.
O “romance” de Cortez não tem qualificação possível. No final do livro (p. 383), o autor, com louvável candura, diz: “Uma prosa diamantina, uma irradiação absoluta – isso pretendi.” Não se pode dizer que pretendesse pouco, mas todos temos direito a ambicionar a lua. Porém, logo a seguir, com uma não menos louvável modéstia, acrescenta: “Falhanço mais que provável e mais que legítimo.” Tenho grande dificuldade em desmenti-lo, mas também em confirmá-lo. Já lhe explico porquê.
É que, falando do seu livro, não é apropriado falar de falhanço. O grande físico Wolfgang Pauli cunhou uma expressão mortífera, que aplicava aos trabalhos que os aprendizes de cientista lhe apresentavam e que não tinham ponta por onde se lhes pegasse: ideias estapafúrdias, que não eram coisa nenhuma. Despachava-os com este veredicto: “Not even wrong” (“Nem sequer está errado”), isto é, o trabalho nem sequer tinha a dignidade mínima que permitisse dizer-se dele que estava errado.
Do livro de Cortez, que é uma mixórdia indecifrável, só se pode dizer que nem sequer é mau. Nesta mixórdia mal batida, o autor mete tudo e mais alguma coisa, a eito e sem jeito: Apocalipse, Leonard Cohen, António Nobre, Ruy Belo, Alfonso Costafreda, T. S. Eliot, Octavio Paz, Camões, Susan Sontag, Jankélévitch, Gastão Cruz, Fiama, Luísa Neto Jorge, Franco Alexandre, Hart Crane, Herberto Hélder e muitos, muitos, muitos mais, quase não deixando espaço para si e tendo o meticuloso cuidado de só citar aquela gente que estava, indiscutivelmente, “in”.
Mesmo assim, apesar de ter enchido o seu livro com textos de tantos outros autores, vou contar-lhe uma história e fazer-lhe um reparo, quanto a uma omissão essencial de um autor. Conta-se que o grande enfant terrible, Orson Welles, organizou um dia, na Broadway, um espectáculo provocador, no qual fez questão de fazer passar pelo palco tudo quanto era objecto ou ser vivo. Um crítico brincalhão acusou-o de se ter esquecido de fazer passar por lá um elefante. Na sessão seguinte, Orson Welles fez-lhe a vontade e apareceu, no palco, um elefante. O meu reparo é este: não percebo que Cortez tenha metido no seu texto excertos de quase toda a literatura mundial e não tenha incluído, na sua longa lista, a teoria da Relatividade, que tanto revolucionou a nossa concepção do universo. Confesse que é uma gaffe de monta. Porém, ainda está a tempo.
Este livro, com a publicidade que está a ter – incluída esta que lhe estou a dar – irá conseguir, de certeza, uma segunda edição, na qual poderá então incluir passagens significativas da obra de Einstein. Para não falarmos da teoria dos quanta, a qual daria ao livro de Cortez um charme e um chic irresistíveis. De qualquer modo, apesar de Cortez, com louvável autoapagamento, deixar, para si, pouco espaço, ainda encontra maneira de nos dar pedaços de prosa inovadora razoavelmente apocalíptica, deste jaez (apertar os cintos de segurança):
“Estou dentro da História, com uma voz só minha, uma máquina de escrever como quem lança incêndios, um facho de ternura dentada, de rodas, milhões de rodas dentadas mordendo a humana dor, esfarelando-a, tornando-a consubstancial à fome de falar, de olhar, de comentar o dia, de fazer amor, de ir às compras, de dar o troco, de consumir, de abraçar; a escrita tão informe que ninguém vai querer aceitar essa tumultuosa gangrena de linguagens várias dentro da linguagem única, sol sobre a testa como um sinal.”
O livro está cheio de passagens neste género, isto é, impregnadas da “tumultuosa gangrena” que é a linguagem preferida de Cortez. Passagens cujo significado é despiciendo: o que interessa é, como se diz, “a linguagem”, mesmo que se não saiba bem o que isto quer realmente dizer.
Livros deste género, em que as palavras andam à solta, numa libertinagem sem freios, têm uma vantagem: já que não são lidos, por serem ilegíveis, prestam-se admiravelmente para serem “estudados”; inclusivamente, cuidadosamente “investigados”, em dissertações de doutoramento. Como é, por exemplo, o caso de Gastão Cruz, que andou mais de cinquenta anos a proclamar que a poesia “não diz nada” e que é apenas “linguagem”, como se esta fosse, também, por sua vez, intransitiva e não dissesse igualmente nada.
Gastão Cruz está a ser, segundo me consta, “investigado”, numa dissertação de doutoramento e vai ser curioso ver como se investiga a obra de um autor que não quer dizer nada e só combina palavras à toa, congeminando uma linguagem que nada pretende significar. Não havendo nada que escrutinar, o doutorando tem a vida manhosamente facilitada.
O mais deprimente disto tudo é as nossas Faculdades de Letras, com medo cobarde de perderem o comboio da moda, da “inovação” e do chic da última hora, meterem a bordo todo este embuste de dimensões gigantescas. E fazem-no, cantando e rindo, em vez de arregaçarem as mangas e fazerem um escrutínio sério àquilo que se lhes propõe. O medo de se não estar à la page é um dos medos mais abjectos que conheço. O mal que se anda a fazer aos jovens universitários, aos jovens aprendizes de escritor, aos leitores, em geral, apadrinhando dislates, como este “romance” de António Carlos Cortez é um mal que merece severa investigação e uma barrela radical.
Vou fazer uma afirmação atrevida e peço a Lídia Jorge que honestamente me desminta, se for capaz: digo que Lídia Jorge não leu este livro de ponta a ponta, pela simples razão de que não há nenhum ser humano, debaixo da Via Láctea, capaz de o fazer. Venha o desmentido.
Eugénio Lisboa
8 comentários:
Concordo inteiramente. Mas, acrescento um outro escritor muito mediático que, na minha opinião, ainda não escreveu nenhum romance excelente, José Luís Peixoto. De qualquer modo, isso pode ainda acontecer. "Nenhum Olhar" e "Uma Casa na Escuridão" são romances medianos.
Tem toda a razão. Mas o meu texto, como é óbvio, não visa apenas o livro de António Carlos Cortez. Longe disso... Em suma, estamos de acordo.
Obrigado pelo comentário.
Eugénio Lisboa
Ó caro Professor, haja quem tenha coragem de pôr os pontos nos iis.
Caro Professor. A si, leio-o em silêncio e na sombra, na perspectiva de, com os ensinamentos do Mestre, poder captar raios de luz e conhecimento. Por isso admiro a sua lucidez e coragem em denunciar certas aberrações que se arvoram em altares literários. A par de Cortez há muitos outros... mais lamentável é a água benta com que autores/as de fama abençoem tal obra (embora outras nem de longe nem de perto o sejam, apenas pertencem ao mesmo gueto da amizade)
92 anos cheios de lucidez.
Ao ler isto, lembrei-me do Gonçalo M. Tavares, o escritor que a crítica adora e sobre quem são feitas imensas teses e dissertações dizendo-se as coisas mais disparatadas que se podem ler. As crítica e teoria literárias devem fazer uma autorreflexão de modo que possam finalmente libertar-se do arrazoado em que têm estado mergulhadas.
Trata-se de um texto de grande lucidez, escrito por quem não deve nada a ninguém. Os simples jogos de palavras sempre me horrorizaram e conheço bem a corrente dos "significantes". ---Texto para guardar e reler!
Caro Professor, bem haja pelo desassombro de contribuir para colocar no seu merecido lugar o sagrado postiço tão disseminado entre nós. O excerto que retirou do dito livro fala por si: é uma forma de linguajar. Parece-me que ninguém que daquele modo usa a língua portuguesa pode produzir obra literária de qualidade, pois que o que mais ressalta é a busca da forma prolixa das palavras e menos o sentido das mesmas. Como ex-professor universitário de 67 anos, varrido selvaticamente do meio académico apenas com 55 anos (e por isso com graves problemas de saúde), vejo-me realmente “num centro de pedantes provincianos” que é suposto apenas bajular, enaltecer, seguir, ser incondicional admirador, o que retira toda a possibilidade de criar uma obra independente. Eu vejo com uma clareza meridiana quanta mediocridade é alcandorada aos píncaros da lua e quão ridícula é tanta presunção e convencimento. E se por um lado isso me causa desprezo, por outro lado, isso me esmaga, pois, remetido a um gueto de solidão e doença, me tiraram a voz e a possibilidade de ser, de existir como membro participante de uma comunidade… E vejo como toda esta mentalidade faz de todos nós um país frágil e impotente, sem possibilidades de libertar as energias criativas e se reerguer. “O embuste de dimensões gigantescas” está nas Faculdades de Letras e está em muitas outras faculdades… Eu, Licenciado em Física, e posteriormente com carreira na Universidade do Minho, na Educação/Formação de Professores, vi medrar o chamado “eduquês” desde o ventre que o gerou e o berço em que cresceu (vou escrevendo conforme posso: https://www.facebook.com/joaquim.sa.35/posts/pfbid02rM9o5pL6sR3Spfw7wc3MJxBUqaUT8dzE82C2wPJsEzB3KMJXwfxTGrMfvBZpgmRYl). Desse linguajar sem objecto, sem método, sem pensamento e sem qualquer relação com a realidade educativa do país, eu me afastei e construí um caminho alternativo que tinha que ser silenciado, e foi-o da pior maneira. Mas este fenómeno é o mesmo de todo o país em todas as esferas. Não foi a intocável nata da nação, feita de excelsos políticos, gestores e banqueiros que levou o país á bancarrota? Empobrecemos todos os dias e estamos atados perante esse exorável destino.
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