Numa altura em que a Europa volta
a viver uma guerra que provoca uma onda enorme de refugiados, alguns deles
procurando Portugal, um livro de uma historiadora norte-americana vem
lembrar-nos que Portugal já foi, há cerca de 80 anos, ponto de passagem de
centenas de milhares de refugiados, a maior parte judeus, que fugiam às
perseguições ferozes que o regime nazi lhes fazia, que a certa altura tomaram a
forma de extermínio maciço. Alguns desses refugiados poderiam ter encontrado
aqui trabalho e ajudado o país, até porque eram altamente qualificados, mas
Portugal, país neutro na Segunda Guerra Mundial, não lhes permitiu que obtivessem
emprego, apenas concedendo – e o processo burocrático era tremendo – vistos de
trânsito enquanto não saíam do país, em geral para os Estados Unidos da
América, mas também para a América do Sul e para a Palestina. Se Dunquerque foi o difícil sítio de saída de
tropas dos Aliados do continente europeu onde as tropas de Hitler se impunham
pela força, Lisboa foi um Dunquerque civil, onde numerosos refugiados, após uma
fuga atribulada da Europa Central buscavam desesperadamente vistos e bilhetes
de embarque para navios que permitissem a sua fuga da Europa. Houve vários
países neutros, mas Portugal foi de longe aquele por onde fugiram mais judeus.
O livro intitula-se Os Refugiados Judeus de Hitler e
subintitula-se Esperança e Ansiedade em
Portugal (original da Yale University Press, 2020, competentemente
traduzido para a Temas e Debates e Círculo de Leitores por Artur Lopes Cardoso,
com revisão da própria autora). É sua autora a norte-americana Marion Kaplan,
professora de História Judaica Moderna na Universidade de Nova Iorque e autora
antes deste de Between Dignity and
Despair: Jewish Life in Nazi Germany (Oxford University Press, 1998). Um
livro complementar ao de Kaplan é: Avraham Milgram, Portugal, Salazar e os Judeus (Gradiva, 2010). Não confundir esta
Marion Kaplan com a sua homónima nutricionista francesa, que escreveu The Portuguese. The Land and its People (Carcanet
Press, 2.ª ed., 2006).
É bem conhecida a acção heróica de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português em Bordéus Já será menos conhecido que ele foi destituído das suas funções, por os seus vistos terem sido considerados ilegais pelo governo de Salazar, e que acabou a comer na sopa distribuída pela comunidade judaica em Lisboa. E é geralmente desconhecida, nos dias de hoje, a vida suspensa dos milhares de refugiados que na primeira metade dos anos 40 invadiu Portugal. O centro era Lisboa, o «paraíso triste». Mas as «residências fixas» onde a polícia colocava os refugiados à espera de verem a sua situação resolvida era um conjunto de vilas e cidades termais e de veraneio: Curia, Luso, Figueira da Foz, Caldas da Rainha e Ericeira.
Os dias eram passados em cafés (a presença feminina nos cafés era então vista com suspeição!) em esperas que pareciam intermináveis, apenas preenchidas por idas aos consulados, às instituições humanitárias que os ajudavam (judias, mas também algumas de várias igrejas cristãs americanas, entre as quais dos quacres, para além da Cruz Vermelha), aos correios e às agências de viagens. A PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, que antecedeu a PIDE, fazia por vezes rusgas em cafés, prendendo os indocumentados ou os que apanhavam com documentos falsos. A insalubre prisão de Caxias foi o sítio por onde muitos refugiados passaram.
O
livro conta que lá havia três classes, como nos navios: a terceira, onde se
dormia aos magotes em palha no chão, a segunda, onde havia menos gente por cela
dormindo em tarimbas de madeira, e a primeira, com duas pessoas por cela, que
até podiam mandar vir comida de fora. A PVDE balançava entre o lado alemão e o
lado inglês, cedendo por vezes perante os alemães, que achavam que era pisar o
risco permitir a passagem dos fugitivos da Alemanha ou dos territórios por ela ocupados.
Pelo contrário, a população portuguesa revelou-se extremamente hospitaleira
para com os refugiados, ajudando-os em tudo aquilo que podiam: até os
camponeses pobres de Vilar Formoso dividiam a sua sopa com os famintos que
apareciam após jornadas temerárias de travessia dos Pirenéus e de toda a
Espanha.
Alguns nomes famosos passaram por Portugal: a filósofa Hannah Arendt (que tinha namorado com Heidegger), os escritores Alfred Doeblin (médico e romancista), Ilse Losa (que ficou entre nós), Heinrich Mann (irmão de Thomas Mann) e Stefan Zweig (que se suicidou no Brasil). Marion Kaplan traça os retratos psicológico e sociológico da massa humana judia em fuga, um trabalho notável que só foi possível pela consulta de muitos documentos em bibliotecas e arquivos (incluindo muitas cartas que não chegaram a ser entregues).
Eram pessoas desenraizados e desesperadas que estavam num
«limbo» à espera da tábua de salvação que era um visto estrangeiro e um bilhete
num paquete, ainda que este fosse um «inferno flutuante» e os perigos
espreitassem durante a viagem (como ocorreu num navio de bandeira portuguesa
que foi ameaçado por um submarino alemão que, tendo colocado os passageiros em
salva-vidas, por pouco não o torpedeou). Um retrato da burocracia reinante
desses tempos é dado por uma anedota judaica: um refugiado judeu é mandado
embora do Consulado Americano em Lisboa, dizendo-lhe o funcionário que tinham
muito que fazer e que devia voltar daí a dez anos. Pergunta cândida do judeu:
«De manhã ou de tarde?»
Portugal podia ter seguido um outro rumo se tivesse acolhido os refugiados. O conhecido caso do físico Guido Beck, nascido em Liberec (hoje na República Checa), que tinha sido assistente de Werner Heisenberg e que acabou por se exilar no Brasil ilustra bem esse facto. O livro conta o caso de Sergio deBenedetti, um físico italiano que trabalhou com os Joliot-Curie em Paris. Esteve bastantes meses em Coimbra, só tendo conseguido visto e bilhete para os Estados Unidos por um triz. Obteve um lugar de professor de Física na Universidade de Carnegie-Mellon, onde foi pioneiro no uso de positrões para estudar diversos materiais. Em Portugal, não o quiseram…
O país já era pobre e ficou mais pobre.
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