sábado, 18 de junho de 2022

A LEITURA EMPOLGANTE

De João Boavida

A propósito de dois artigos aqui publicados por Eugénio Lisboa – “Uma grande mixórdia” e “A obrigação do romance” – peço licença para um pequeno contributo. 

Em primeiro lugar, é indubitável que muita gente sente que há livros que são pastosos, confusos, em suma, insuportáveis, ou até mesmo incompreensíveis mas, por receio de serem acusados de menos competentes ou modernos pelos que valorizam o último grito acima de tudo, não o dizem. 

Eugénio Lisboa tem coragem de remar contra esta maré e de dizer que o rei vai nu quando considera que ele de facto vai sem roupa alguma. É saudável, refrescante e faz um excelente serviço pois ajuda a colocar alguma ordem no campo opaco, minado e até às vezes invertido que é o mundo editorial. É, neste sentido, um organizador de valor e, portanto, um valorizador do próprio valor. 

Veja-se, a este propósito, o seu recente livro "Vamos ler!" (Lisboa, Guerra & Paz, 2021). Frequentemente as críticas que se fazem em Portugal, são elíticas, enroladas, ora contextualizantes, ora descontextualizantes, por vezes as duas coisas em simultâneo, mas, quando queremos uma síntese do valor de um livro e de uma boa razão para o ler (ou não) não a temos porque em geral pouco ou nada nos é dito sobre isso. 

Por outro lado, há críticos que são habitualmente encomiásticos de quase tudo sobre que escrevem, o que é de desconfiar porque os talentos não andam por aí aos pontapés. Para lá de um frequente aparato teórico e retórico, que muitas vezes é mais confusão e conversa de espanta tolos que teoria, era bom que das críticas resultasse uma ideia objetiva quanto possível sobre o valor de um livro e, portanto, do benefício literário e cultural em lê-lo. 

Estou de acordo que uma preocupação primeira da literatura é ser legível e compreensível (não fácil, nem apressada, nem simplória). Um texto ilegível é um contrassenso, e quem o fizer incompreensível por pedantismo ou não por conseguir a clareza que as ideias, por muito complicadas que sejam, devem ter, um texto assim, mesmo que a muitos embasbaque, não irá longe. 

É certo que a originalidade sempre levantou objeções, e romper com os quadros dominantes chegou frequentemente a provocar reações violentas. E sabemos também que, por vezes, essas novidades trazem grandes contributos para a evolução de um dado campo artístico. 

Mas no nosso tempo a vertigem tornou-se um valor e a mudança pela mudança uma necessidade quase absoluta, o que, evidentemente, não pode ter boas consequências na qualidade de muito do que se produz. 

Ora, a grande preocupação de quem escreve é ser lido e a leitura deve produzir prazer em quem lê, como muito bem diz Eugénio Lisboa. É certo que a originalidade é um valor, mas ser realmente e autenticamente original não é para todos porque a originalidade é um bem escasso que só muito poucos alcançam e, portanto, a procura dela a todo o custo, e sempre, não pode dar bom resultado.

Para lá da procura exasperada de originalidade por um autor, o que o torna frequentemente intragável e destruidor de leitores potenciais – desse livro e doutros que não têm culpa – devia interessar-lhe acima de tudo a qualidade literária. E ao crítico ser da verdadeira qualidade o divulgador e o valorizador. 

É claro que um romance que provoca interesse não é necessariamente bom, mas o bom leitor encontrará interesse num livro, desde que bom. E um leitor menos educado acabará por descobrir que faz parte do entusiasmo com que se lê um livro a sua qualidade. Portanto, interesse do leitor e qualidade do romance, desejo de ler e entusiasmo pelo que se lê são realidades convergentes e que se implicam; que se vão cada vez mais implicando à medida que evoluímos como leitor. E que, portanto, exigimos do escritor e nos leva a escolher os escritores que melhor respondem a esta exigência. 

O bom escritor faz o bom leitor e, inversamente, o bom leitor exige qualidade ao escritor, que será esquecido se a não tiver ou não se preocupar com isso. 

João Boavida

13 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Experimentamos dificuldades
Em agrupar as palavras
De modo a surtirem
O melhor significado
Mesmo que não seja possível.

Ildefonso Dias disse...

Senhor Professor João Boavida,

Se o romance “Um dia lusíada” de António Carlos Cortez é, para Eugénio Lisboa “Not even wrong”, então porque é que ele mesmo escreve a crítica "Portentosa Mixórdia"?!

Isto não lhe parece desde logo uma contradição do Sr. Eugénio Lisboa, Professor João Boavida?

«… o romance contemporâneo passa muito por aquilo que vai na mente do autor, como se o leitor o ouvisse a falar dentro da sua própria cabeça.
Essa é uma herança do Ulisses, do James Joyce, o fluxo interior da personagem. Mas há aqui coisas que vêm de trás. Os meus livros anteriores, o Jaguar e o Corvos, Cobras, Chacais, que são livros de poemas em prosa, já trazem essa ideia de polifonia.»[António Carlos Cortez]
Entrevista, aqui: https://sol.sapo.pt/artigo/768804/antonio-carlos-cortez-o-politicamente-correto-e-um-eufemismo-para-continuarmos-a-ser-coniventes-com-a-mediocridade

«O ULISSES, por tantos venerado (duvido que lido) é uma boa estopada. Leia-o quem tenha paciência ou goste de sofrer. Para eles, há um nome, no glossário da Medicina...» [Eugénio Lisboa]

«Mas o meu texto, como é óbvio, não visa apenas o livro de António Carlos Cortez. Longe disso...»[Eugénio Lisboa]

Professor João Boavida, seja franco, e esclareça o leigo, o que há de errado na atitude na forma ou liberdade de escrever de António Carlos Cortez?

c.eliseu disse...

«O bom escritor faz o bom leitor e, inversamente, o bom leitor exige qualidade ao escritor, que será esquecido se a não tiver ou não se preocupar com isso.»

O sr João Boavida dá razão ao sr Eugénio Lisboa, ambos são assertivos, críticos, não usam meios termos.

Quanto ao sr António Carlos Cortez, é livre de escrever o que deseja e sujeitar-se à crítica.

Sobre o 'Ulisses' de Joyce, ainda não o li, no entanto as críticas desvendam uma história hermética e surpreendente que será tudo menos estopada. Será 'um dia lusíada' assim? Haverá alguém que explique o seu sentido geral, se o tem?

Ildefonso Dias disse...

Concordo em absoluto que os artistas devem ter liberdade para escrever, devem ter um grande grau de espontaneidade, os artistas não se podem submeter a pressões sobre a criação.

Carlos Ricardo Soares disse...

O artista é livre até ao limite do livre arbítrio, se o houvesse.
A arte, por sua vez, é um objecto, ou objectificação, que entra no mundo da cultura (realidade criada pelo homem). A arte da cópia (quanta arte pode haver na cópia de um quadro?!), ou a arte original, a arte da mentira ou da falsificação (não me parece que haja uma arte da verdade) a arte de executar uma peça de um compositor num instrumento musical, ou de compor a peça (pode, por exemplo, o pianista que reproduz a execução original, fazê-lo com mais arte?) ou de atravessar vãos sobre uma corda suspensa, entre duas torres, a arte de fazer rir ou chorar, de fazer crer nas ilusões dos sentidos periféricos ou da interioridade dos sentimentos, que não temos apenas cinco sentidos, de moldar as coisas ao jeito das percepções, de dar aos sentidos alguma forma supostamente apetecida ou apetecível por estes, enfim, as artes e as artimnhas têm a marca inconfundível de se apresentarem como são, ou pretendem ser, artes, artifícios, habilidades, cientes dessa intencionalidade e desse grande desafio, ou seja, de que as variáveis em jogo são imensas e essa imensidão é um jogo, não propriamente aleatório. A submissão da arte a regras, a deveres canónicos, a dificuldades, como encestar a bola à primeira, ou ter de enfrentar onze adversários em vez de colocar a bola na baliza num jogo de vídeo, escrever em decassílabos, ou em tercetos, sonetos ou quadras, cantar com a voz de outro (imitação incrível) ou com a própria voz (que ninguém valoriza excepcionalmente) pode transformar a arte num jogo, que é mais pelo jogo, ou numa arte, que é menos pelo jogo.
Se o artista tiver que pintar a capela sistina, pode ter muita liberdade, mas é tudo dentro dos limites da capela.

Ildefonso Dias disse...

A Arte é liberdade, imaginação, fantasia e é sonho. E Eles não sabem nem sonham que o sonho comanda a vida... Não deveria existr capela para limitar a vida, nem mesmo a sistina.

Carlos Ricardo Soares disse...

Se disserem ao artista como, ou o que, ou para que, ou onde, quando, porque, se, é óbvio que o artista os manda fazer, que é mais simples e muito mais barato. O artista não tem capacidade de produzir aquilo que lhe for encomendado, por mais artista que seja. Um engenheiro sim. E um robot melhor ainda. A encomenda de uma obra de arte já é uma obra de arte. Mas falta o que se quer.

Helena Damião disse...

Comentários de João Boavida

Os três comentários de Carlos Ricardo Soares são inteligentes e precisos, como já noutras ocasiões tenho verificado. Estou inteiramente de acordo com tudo o que diz, os seus textos revelam uma compreensão rica e complexa da arte, das suas potencialidades e dos seus limites. Penso ter conseguido uma boa síntese quando diz: «…as variáveis são imensas, e essa imensidão é um jogo, não propriamente aleatório». Mas é precisamente a esses limites, mesmo que nos limites quase ilimitados do inteligível, que uma arte feita de palavras não pode fugir.

Meus caros, Ildefonso Dias e C. Eliseu, não há contradição entre não gostar de um livro e fazer-lhe críticas. Um dos nossos problemas é que os críticos, talvez para não se comprometerem, não fazerem inimigos ou acharem que não vale a pena, geralmente esquecem os livros de que não gostam. Mas isto, embora traduzindo um critério, é uma forma de não informarem os potenciais leitores, fugindo à sua obrigação de os orientar segundo o cânone aferidor que os críticos têm obrigação de ter, e segundo o qual fazem as suas críticas. António Carlos Cortez tem todo o direito de escrever o que quer e como quer, mas os seus leitores têm igual direito de gostar ou não. Foi o que fez Eugénio Lisboa ao dizer que o rei vai nu, mostrando coragem num campo em que o medo de não estar na ordem do dia falta a muitos.

João Boavida

Ildefonso Dias disse...

Professor João Boavida, eu penso que, em liberdade, o verdadeiro problema que pode existir na crítica, é o de ajuizar o valor de uma obra por aquilo que pensa o autor.

Carlos Ricardo Soares disse...

Professor João Boavida, muito obrigado pela cortesia das suas palavras.
A crítica também tem ou pode ter vertentes construtivas.
A crítica da arte, da literatura, enfim, das artes em geral, é indissociável delas ao ponto de poder tornar-se numa "vexata quaestio" saber se a crítica não é uma arte e o crítico um artista.
A relação do artista com a obra de arte, seja literária, pictórica, musical, ou outra, é especial e incindível, mas na perspectiva do usuário, a obra é o que é e a mais não é obrigada. Cada um também é livre de interpretar e de emitir opiniões, ainda que estapafúrdias, sobre a obra. O serem estapafúrdias, ou não, já é um problema que emerge do problema suscitado pela obra.
O facto de alguém escrever um texto, ou tocar uma música, ou pintar um quadro, é isso.
Falar sobre isso, teorizar, encontrar razões para gostar ou não gostar, comparar, valorizar, enquadrar, relativizar, é uma outra parte dos interesses que envolvem toda a arte, ao ponto de, em muitos casos, a obra só não ser devorada pela crítica porque a própria crítica é, até certo ponto, obra da obra.
Ainda assim, a justificação do fervor com que alguém defende a liberdade do artista é igualmente válida na defesa da liberdade do crítico.
O problema surge se, quer o artista, quer o crítico, abdicam dessa liberdade, ou a usam ao serviço de uma ideologia, religião, partido, crença, visão, movimento, interesses, paixões, caprichos.
Mas este problema é o problema da própria liberdade, ou seja, abdicar dela, ou não, ainda significa algum poder de exercê-la.
Então, talvez o problema não seja um problema de liberdade, mas do que se faz com ela.

João Boavida disse...

Estamos de acordo

Anónimo disse...

Em tempos, ouvi na RTP Eugénio Lisboa fazer algumas considerações sobre Literatura e legibilidade. Um autor que disse não lhe interessar nada é Maria Gabriela Llansol, de quem Eduardo Lourenço vaticinou vir a ser "o próximo mito da Literatura Portuguesa".
Não aprecio Maria Gabriela llansol, abrrece-me. Aprecio muito pouco José Saramago, aborrece-me de outra maneira. António Carlos Cortez "não chega sequer a ser mau".
Numa entrevista, Jorge Luis Borges disse uma coisa extraordinária: que lia tudo, absolutamente tudo .Perguntaram-lhe como era possível , e ele muito candidamente respondeu que bastava ler duas ou três frases de cada livro...

Anónimo disse...

Anónimo27 de junho de 2022 às 17:01
Em tempos, ouvi na RTP Eugénio Lisboa fazer algumas considerações sobre Literatura e legibilidade. Um autor que disse não lhe interessar nada é Maria Gabriela Llansol, de quem Eduardo Lourenço vaticinou vir a ser "o próximo mito da Literatura Portuguesa".
Não aprecio Maria Gabriela llansol, abrrece-me. Aprecio muito pouco José Saramago, aborrece-me de outra maneira. António Carlos Cortez "não chega sequer a ser mau".
Numa entrevista, Jorge Luis Borges disse uma coisa extraordinária: que lia tudo, absolutamente tudo .Perguntaram-lhe como era possível , e ele muito candidamente respondeu que bastava ler duas ou três frases de cada livro.

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