sexta-feira, 10 de junho de 2022

PAULA REGO

Conheci a Paula Rego em Londres, quando para lá fui viver, em 1978, na qualidade de conselheiro cultural da nossa embaixada. Fui-lhe apresentado em casa do Helder Macedo. Logo me impressionaram muito o seu sorriso travesso, a quase intolerável amperagem dos seus olhos e a total despretensão da sua conversa.

A Paula tornava-se rapidamente amistosa e recusava o jargão dos pseudo-cultos. Falava, com ironia mal velada, nos críticos de arte, que construíam grotescas catedrais de interpretação, à volta de soluções de pintura muito simples e muito óbvias. Em literatura, passa-se o mesmo, mas os críticos de arte refinam, neste delírio interpretativo. 

Ao longo da minha vida, conheci mais do que um pintor de nome que dizia gostar de ouvir opiniões sobre as suas obras, desde que não fossem opiniões de críticos de arte. 

Lembro-me de a Paula, que gentilmente me convidara a visitar o seu enorme estúdio, em Londres, me ter ali mostrado um seu quadro de enormes dimensões. 

Disse-me que quando concluíra aquela obra, notara que no canto inferior esquerdo, ficara um espaço em branco, que se tornou, para ela, irritante. Para obviar a isso, pintou lá uma figura de um animalzinho que me mostrou, comentando: 
“Não imagina, Eugénio, as coisas delirantes que alguns críticos disseram do significado profundo deste animalzinho, que eu ali pusera só para encher espaço…” 
Montherlant chamava, com desprezo, a estes intelectuais, “les cuistres”. 

Quando cheguei a Londres, em 1978, fez-se, no final desse ano, na Royal Academy of Arts, uma exposição de Arte Portuguesa, cobrindo o período de 1910 a 1978. Paula Rego, nessa altura já bastante conhecida e admirada em Portugal, teve direito a uma sala inteira na RAA. Nem por isso os críticos ingleses repararam particularmente nela.

Não muito tempo depois, fui, numa tarde, ver uma exposição dela, numa galeria um tanto sombria, para os lados do Ballet Sadler’s Wells. Não estava lá ninguém, além de mim. Foi, depois disto, um artigo da sacerdotisa do feminismo, Germaine Greer, numa conhecida e influente revista de arte, que tornou bastante mais conhecida a artista portuguesa. Foram os tambores do feminismo, mais do que a sua arte potente e inquietante que acenderam para ela as luzes da ribalta. Que ela sem dúvida nenhuma merecia. 

Nunca o vi escrito, mas ouso dizê-lo agora: a pintura de Paula Rego percorre várias formas de violência de alta voltagem. Mas é particularmente notório o registo implacável de uma guerra dos sexos, que só tem paralelo na excepcional e singularíssima obra do dramaturgo sueco, Strindberg.

Ninguém, como a Paula saberia ilustrar a obra de Strindberg nem pintar-lhe cenários para o palco. Nunca tive oportunidade de lho dizer e, assim, a notabilíssima peça, A MENINA JÚLIA, ficou sem a sua cenarista ideal.

A um grande pintor que morre não se diz adeus, porque connosco ficam as marcas profundas da sua passagem por este mundo: as suas poderosas obras que, para sempre, nos desassossegam. 

Eugénio Lisboa

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