terça-feira, 14 de junho de 2022

Lagoa

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Os dias voam. O chefe do café O Sorriso contou-me, hoje, que o Asdrúbal, no sábado passado: – … passou… ali ao fundo da rua, estás a ver, ali?, e o Firmino, com as goelas todas abertas, mandou um grande grito: A vida é boa! Oh, se é! Boa-vai-ela! E eu aqui e com tanto milho para regar!, e que o mesmo Asdrúbal… parou a motocicleta de dar ao pedal, daquelas que têm uma bateria, estás a ver?, retirou, dos bolsos das calças de flanela, um lenço branco, vendou os olhos com eles, abriu os braços ao céu e começou a agitá-los, como se estivesse rodeado de fumo…vê lá tu! Há cada um! E ele só palrava em regar milho, em mulheres, em subsídios de inserção social, e ficou a ver o quê?! O padeiro! E eu ando aqui todo empoeirado... Depois de ouvir o nosso chefe, entreguei uma moeda a uma mulherzinha, dessas da Macedónia, lá dos Balcãs, que imprecava pelos seus oito filhos, que iam agarrando a saia da mãe assim que se aborreciam entre si, enquanto ela increpava-os e em simultâneo salmodiava: – Por amor de Deus!, e fui à biblioteca ler os jornais diários e saber da existência das Ilhas Selvagens, remotas e nacionais. Agora, estou no quarto, como um inválido, a voracidade dos outros zumbe na estrada e não tenho palavras para este ser inditoso. Ardem-me os olhos, arde o céu grisalho. O meu hálito está fedorento. As cãs criam e as faces estão acobreadas. Tenho o nariz cada vez mais protuberante, as mãos trementes e esta guedelha que, por incúria e desleixo, deixo medrar…Não rapazes, não me vejam amanhã! Quero acabar com as rememorações e com o sofrimento de te ver chegar quase nua à minha melancolia. Quero só acabar o que parece infindável e perecer no éden a oeste, onde o sol se põe neste verão de áscuas! Só poderia ser feliz e próspero brincando com os teus cabelos castanhos, e, volúvel, beijando as tuas sardas. A poesia é irrefragável e aí reside a imortalidade da tua beleza citérea. O crepúsculo começa a cair sobre as folhas verdes e as uvas verdes. Pelo estore, não encontro o astro. O moedouro entre cílios amainou. Eriçam-se um a um os cabelos dos braços. O expirar das tardes está cada vez mais frio, como se a carne entrasse suavemente nas águas de um mar, como se os buracos do chuveiro dos lavabos de Buarcos se abrissem um a um ao lume no meu peito. Corro a estante e deparo-me com Mikhail Chólokhov, Aitmatov, Jurek Becker, Arthur Koestler, alinhados ao lado uns dos outros. Apaguei a minha visão em novelas, em uma miríade da qual só permanecem algumas: as que me deixaram em pranto e as que me desassossegaram. Sou um leitor convulsivo, enraizado, inveterado. Os coelhos sacodem-se nas restevas, vão-se acomodando à noite como o homem ao amanhecer. Para o fim, ir-me-ei embora. Basta olvidar-me dos braços, caindo na água, e da trança, caindo na areia, para eu tremer, temer a vida e recuar para a noite. A áscua occídua é tragada pela água e nenhum rio de flamingos róseos, erguendo voo dos pântanos, a corta. A prossecução desta vida seria o recrudescer do azedar da sopa, na panela de pressão, sob a canícula. Um silêncio amplo invade-me e percute dentro deste quarto, como o silêncio do tenente Giovanni Drogo, e abandono o miradouro da fortaleza para sonhar um exército de bárbaros a degolar-me.

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O calor é uma tarde destas sem cor, com homens tragando finos nos cafés, varejeiras verdes adejando no monturo, gotas de suor, salpicando o asfalto da estrada, e automóveis e bicicletas à sombra. Viúvas descem e sobem as ruas, com uma saca de ovos na mão, para pagar este e aquele obséquio, porque nada lhes cai no esquecimento e querem, pela boa sorte dos filhinhos, o bem e a felicidade dos filhos, isto apesar da obtemperação do coração. Hóstias conservam-se em cibórios no sacrário da capela, agora restaurada e que, de acordo com a voz dos devotos, está que é um luxo; todavia, permanecem, na fachada principal, o frontão, o vitral redondo, os dois fustes laterais, a porta principal de madeira, com cornija e cimalha inclinada, e a vitrine para avisos e editais, e, na torre, as quatro sineiras. Raparigas passeiam pelas ruas, calçando alpercatas e com as pernas ao léu. A urina das festas tresanda nas paredes, contíguas à casa da cultura, e bolas de petanca, abandonadas e vindas da mente de Claude Chabrol e Luchino Visconti, aquecem sobre a terra batida. Marmelos hirsutos pendem nos muros e, só de imaginá-los sobre a língua, um achaque apanha-me o corpo todo. A flor vermelho-claro das romãzeiras caiu com um ligeiro sopro de brisa e os figos de pingo mel amadurecem, pacientemente, até que setembro chegue e as maçãs sejam assadas no brasido extraído da boca da caldeira do alambique de aguardente bagaceira. Cristo, crucificado, permanece a sós no cruzeiro, pelo menos até que o sol desmaie e as rugas e as cãs se deem ao mexeriqueiro e se acautelem com o primeiro pó que apareceu nas uvas do Zé da Graça, lá para as bandas do Chão do Poço; quem diria, ele que anda sempre em cima delas, é redra, é sulfatos de cobre, é enxofre, é adubos, é estrume, é lavra, é poda, é empa a primor… Na ourela da estrada, as ervas fenecem, enquanto as velhas, com bengalas, sobem, cautelosamente, a ladeira. De supetão, uma salva de vinte e um tiros perturba o meu sonho, sob as telhas imbricadas, onde silvam os pardais, acabadinhos de abandonar o ninho, e flores núbeis mirram espalmadas. É nesta fusão de siso e de loucura, é neste meio, que a flor surge nas águas e ocorre a transmutação da carne em poema. Não posso ter-te a dançar nos meus olhos, como as meninas angélicas de Edgar Degas. O vento sopra e os vasos das açucenas e das sardinheiras baloiçam no poial. Em baixo, a copa da oliveira verga, e, no fundo da ladeira, os baloiços da creche baloiçam em ângulos pequenos.  Há dias em que não escrevo uma só linha. Os dias virão com as mesmas palavras. A notícia de que o Asdrúbal de Jesus morrera ontem, plausivelmente, de acordo com o apurado pelas autoridades no local, precipitou-me para o papel. Estranhei, no entanto, que o chefe do café não me tivesse dado a salvação, quando, cerimonioso, me colocou a chávena na mesa. De acordo com a notícia na manchete e no miolo, o Asdrúbal fora encontrado sem vida numa das lagoas da pedreira, entre as localidades de Pena e Cordinha. Dois adolescentes testemunharam que, ao dirigirem-se ao local para tomarem banhos, a meio da tarde, encontraram um cadáver a boiar e uma motocicleta no fundo da lagoa glauca. O mesmo jornal adiantava que, depois de abordar alguns aldeãos da Pena, eles relataram que se tratava de um desgraçado, um alcoólico que andava por aí!, que vivia sozinho, mas que nada neste mundo levava a crer que seria Homem para fazer tal feito diabólico, e que, em casa do falecido, as autoridades competentes depararam-se com um papel, destes dos sacos da ração, onde o suicida teria escrito:

Rodeado de pedras
Verão o corpo empapado pelas águas
Que caíram durante o longo Inverno.
Morrer hoje ou amanhã é o mesmo,
Quando estou nas garras dos bicharocos
Que me roem a carne e obstruem
A erguer a taça do vinho morno à luz do sol.

Adiantava ainda o jornal que estiveram presentes, para averiguações no local, os serviços da guarda-nacional-republicana e o dos bombeiros de Chão de Peniscos, e que encontraram apenas uma lapiseira no bolso da camisa do corpo defunto, sendo que o processo continuaria a correr, para se conhecer a fundo a verdade, e que o corpo, depois da autópsia, iria para a câmara ardente e que se realizaria além, às cinco horas da tarde, o funeral de Asdrúbal de Jesus no cemitério da sua terra mãe, Cordinha. A notícia acabava neste ponto. Esta memória, que tão bem conhece a lagoa, essa boca pétrea, com pinheiros meãos no cume, sobrevivendo sobre a pedra, via o corpo madraço pairando na água e emparedado pelos juncos que ali nasciam. Eu sabia, no entanto, que se murmurava pelos cafés e até o Firmino, quando estava impregnado com o perfume do bouquet de rosas que iria oferecer à amante, para depois lhe partir a espinha, dizia à boca miúda que já o tinham visto em consultas médicas no centro de saúde, que, segundo o que ouvira, ele andava com um mal ruim no fígado, e que, sem errar muito, seria uma cirrose. Por mim, não dou nenhuma atenção aos boatos, porque a maioria deles são parouvelas e provêm do rancor, e concluo, cegamente, que foi o amor, o abandono da mulher à qual se unira por ordem divina para a eternidade, o impulso para que ele se tivesse afogado. Neste dia trágico, fúnebre e claro, como a água nas passagens recônditas de um rio e como os vidros perscrutadores que vigiam o dedilhar destes dedos, perco o Asdrúbal ou o homem deambulante, o homem sem rei nem roque, o quebra-monotonias ou o olhar furtivo que se desprega dos afazeres desta vida, breve e cruel, para a qual não disponho de outros predicados. Cerro os olhos, vejo-me a boiar na água glauca, cercada por paredes de pedra calcária obscura, barro castanho e raízes, como se fosse eu próprio que tivesse morrido, e penso que só o milagre me faria mudar o intento. Penso, enquanto uma concussão abala os pilares da casa, sustém-me o ar e os dedos durante uma dezena de segundos. Retomo, então, o ressumar do passado, e as visões redundam em rosas, em ondas e em resquícios de faúlha castanha. As desgraças são como jacintos-de-água nas minhas correntes, e é, neste contexto ríspido do catolicismo, que receio o choro inconsolável das vestes negras da minha mãe: Nunca pensei! Oh, meu pobrezinho! Mais valeria nunca ter vindo à Terra para ver isto! Um filho morto, assim! Um filho saído do meu seio! Oh, desgosto de morrer! Oh, morte, porque não me levas nesta hora?! Ai, o meu pobre filho! O que lhe deu, Senhor?! Ó Virgem imaculada, eu já nada faço aqui, eu passei por tudo! Ó Virgem, dá-me uma morte, também a mim, que me leve de vez! É triste perder um homem, mas um filhinho!

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