Na continuação de dois textos anteriores (aqui e aqui).
Porque é que uma escola
- sem professores e, portanto, sem encontro pedagógico,
- sem plano de estudos,
- sem aquisição de conhecimento,
é apresentada como ideal, onde a "verdadeira" aprendizagem pode acontecer?
E porque é que uma escola
- com professores e, portanto, com encontro pedagógico,
- com plano de estudos,
- com aquisição de conhecimento,
é apresentada como contraproducente, onde a "verdadeira" aprendizagem é impedida?
Porque é que isto acontece? Porque é que desvalorizamos
- os professores, que, através do seu ensino, conduzem os alunos à aprendizagem formal?
- os planos de estudos, que reúnem, por princípio, as melhores decisões para educar os mais jovens?
- o conhecimento que só se pode aprender na escola, através de uma metodologia e de uma didáctica.
O mistério adensa-se quando se trata de escolas privadas. Escolas pagas por famílias para que as suas crianças e jovens não tenham uma educação que se esperaria que as famílias que podem pagar escolas privadas quereriam que tivessem.
Em texto anterior deixei um exemplo (
aqui), o da École Dynamique. Deixo, agora, outro exemplo: trata-se de uma escola que se diz de inspiração inglesa, não tão radical, diria, em termos de planos de estudos como a francesa,
com representação recente em diversos países, incluindo Portugal. Trata-se da Brave Generation Academy. |
Notícia do jornal Público (aqui) |
Esta segunda escola, que já está numa meia dúzia de lugares do país, e que se apresenta em língua inglesa (usando uma terminologia que merece atenção), proporciona um
currículo internacional (British Curriculum in Portugal), tem por parceiros
academias, empresas, fundações, iniciativas e ONG. Conheço bem a Junior Achievement, "a maior e mais antiga organização mundial de educação para o emprendedorismo" (ver aqui) e a Teach for All, que num "Programa de Desenvolvimento de Liderança", prepara mentores para actuarem, junto de professores, em escolas públicas (ver aqui).
Alguns nomes contam em várias entidades. Consultando os breves curricula vitae que lhes estão associados, vejo prevalecer a formação em engenharia, turismo, agricultura, mercados financeiros, tecnologias digitais, marketing, empreendedorismo, etc. O próprio fundador deste "novo projeto de empreendedorismo" é um empreendedor
(ver aqui). Ter-se-á inspirado na "experiência vivida com os filhos durante a pandemia (...) "o que o levou a pensar numa nova forma de ensinar e aprender".
Não é original este vislumbre, bem pelo contrário, é norma: alguém que nunca estudou educação, "descobre" uma "nova forma de ensinar e aprender". De nada vale o esforço científico, tido até ao momento, para procurar compreender a aprendizagem e o ensino, sem o ter conseguido inteiramente, pois, afinal, basta uma "visão", que ocorre num breve instante a quem teve a sorte de ser iluminado, bafejado pela inspiração.
O projecto pode ser novo no grande mercado da educação, mas não nas metas (que são duas: "educar e qualificar") nem nos princípios que enuncia. Estes, além de muito antigos, são regra em projectos congéneres. Reproduzo-os nas palavras que li para deixar afastada a minha interpretação (ver aqui e aqui). Propõe-se ser "alternativa ao que existe no ensino", porque este pouco mudou, apesar de o mundo ter mudado: funcionará "de uma forma mais democratizada" e "muito mais flexível". Recuperando o discurso de organizações como a OCDE, diz preparar os jovens "para um mundo em constante mudança e [proporcionar] à nova geração competências e autonomia para agir e realizar mudanças reais no mundo". Sendo "centrado nos alunos", proporciona-lhe uma "educação holística", de "qualidade", para que eles "encontrem as suas paixões, aquilo em que vão trabalhar no futuro, mas com menos ansiedade e stress."
Virado, como se declara, para o trabalho (em concreto para a aquisição de competências que este requer), o currículo (alinhado com o nacional britânico currículo - que, digo eu, tem tantos ou mais problemas que o português) apresenta
"um programa estruturado", desenvolvido num sistema híbrido (presencial e a distância) e "adaptado aos objectivos e horários de cada aluno. Consegue o "melhor de dois mundos"; usa "novas tecnologias como ferramenta de ensino (os conteúdos são lecionados on-line), e a flexibilidade de horários, que agrada aos estudantes e às famílias".
Os profissionais de ensino, "apoiam os alunos na definição de metas e na implementação de estratégias para as alcançar". Cada um deles é responsável por um grupo de 12 alunos, no máximo, com idades compreendidas entre os 13 e aos 18 anos, e estará disponível para os atender das 8 às 18 horas (dez horas). Não devem esse profissionais (generalistas?) preocupar-se em primeiro lugar com os conteúdos disciplinares (terei interpretado bem?), não devem preocupar-se "tanto com o facto de [eles] serem [bons] em Geografia ou Matemática, queremos é que sejam bons humanos”, disse o fundador.
Será que se quer dizer que o conhecimento escolar não tem potencial para melhorar a nossa condição... humana? Eu diria que é preciso combiná-lo com finalidades éticas, mas, diria também que, em contexto escolar, o conhecimento não é dispensável.
Um nota final: a escola afirma ter o reconhecimento de múltiplas entidades: percebo que sim. Um exemplo é do presidente de uma autarquia onde está instalada, que deixou registado ser ela:
um “parceiro fundamental” no que se refere ao acompanhamento e integração dos jovens refugiados que vão chegar da Ucrânia nos próximos dias: “Vamos receber muitos jovens ucranianos que não falam português e inglês e, por isso mesmo, aqui está todo o espírito necessário para que sejam acolhidos, de forma aberta e flexível” (ver, aqui).
Não seria óbvio que alguém com a responsabilidade pública na educação pública que um autarca tem, considerasse, não uma escola privada mas a escola pública como um “parceiro fundamental” para receber qualquer aluno, independentemente do seu historial? Quer ele dizer que as escolas públicas do seu município não são capazes de acolher de "forma aberta e flexível"?
2 comentários:
Hoje, 10 de junho de 2022, é o Dia de Portugal.
A autonomia política e económico-financeira de Portugal, no concerto das nações civilizadas, é muito pequena. Daqui decorre que, não só as grandes linhas da nossa política educativa, como é a escolarização obrigatória de todos os cidadãos, até aos dezoito anos de idade, e com pleno sucesso, sucesso esse previsto por defeito em grelhas de avaliação com mais de duzentos itens, para cada aluno, que os professores preenchem em modo contínuo, mas também a operacionalização, em contexto de sala de aula, das orientações didático-pedagógicas emergentes de documentos como O Ensino/ Aprendizagem por Rubricas, ou O Perfil do Cidadão Democrático à Saída da Escolaridade Obrigatória, são gizadas por grandes autores estrangeiros das ciências da educação, não raras vezes patrocinados por grandes organizações internacionais como a OCDE. Os portugueses, praticamente, limitam-se a fazer as traduções, nem sempre muito bem! Quem sou eu, para falar?!
Se os americanos, os ingleses ou mesmo os franceses decidirem, ao fim de uma tarde quente junho, que em Portugal deve haver escolas sem professores e sem curricula, que remédio nos resta senão cumprir o papel de CHERNE, como fez o Durão Barroso na Cimeira dos Açores da preparação da invasão do Iraque, e bombardear metaforicamente a Carreira Única dos Educadores de Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário?
Venham os mentores e os coachs.
Aproveito o ensejo para pedir ao senhor ministro da educação que não deixe derreter os fundos da União Europeia para a Educação em ações e cursos de formação para professores. Essas ações, principalmente quando são abordados assuntos das ciências da educação, já aprendidos na formação de base de qualquer professor, não contribuem para a melhoria das aprendizagens dos alunos em contexto de sala de aula, nem para o desenvolvimento socioeconómico do país. Já o aumento de ordenado dos professores, que, pelo menos, cobrisse a taxa da inflação, seria bem-vindo!
O ensino pode ser programado. As aprendizagens podem ser programadas. Tudo pode ser programado, até a vida para além da morte. Há receitas para tudo. Mas experimentemos programar a ignorância, ou a desaprendizagem. Deixarmos de pensar em função de erros arreigados, que tomamos como evidências insuspeitadas. Aprendermos a ignorá-los, desaprendendo-os.
Não vale a pena? Seríamos capazes? Talvez, com esforço inglório. Tudo isso (o que aprendemos) nos é útil e, em grande parte, insubstituível. Nada substitui o que sabemos, com todos os erros. Somos animais de hábitos, vinculados a problemas habituais e a soluções habituais. Se pudéssemos criar apenas bons hábitos, mas isso está-nos interdito pela natureza das coisas, nem assim teríamos o problema resolvido. De certo modo, são os hábitos que se nos impõem e não o contrário. Se os bons hábitos facilitam imenso, e facilitam, ao contrário dos maus, que podem ser impeditivos e limitativos, nem por isso um bom hábito, por ser um hábito, deixa de se tornar mau.
Avançando, diria que aprender em contexto de sala de aula é o maior desafio que se pode fazer a um aprendiz, assim como ensinar em contexto de sala de aula é o maior desafio que se pode fazer a um mestre (Bolonha/estatuto docente). E não há simulação capaz de transformar a ignorância em saber, ou o saber em ignorância, pela simples razão de que para poder haver comunicação não basta haver linguagem e para haver aprendizagem, em contexto de sala de aula, é necessário haver efectiva comunicação.
Por outro lado, se a sala de aula é um local onde o trabalho é requerido, por vezes de modo intenso e desproporcionado, para professores e alunos, nem por isso a sala de aula é um local de trabalho no sentido normal e estrito do termo. Poucas coisas serão tão pouco gratificantes, para não dizer desmoralizantes, como “trabalhar” em contexto académico.
Eis, pois, que os problemas reais mais interessantes se tornam, não raro, enfadonhos, ao serem colocados como problemas académicos.
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