domingo, 26 de junho de 2022

Ainda sobre o moderno e o clássico

Na continuação do texto A constante luta entre clássico e moderno

João Boavida

É isso mesmo, volto ao tema, do moderno e do clássico. 

Se um autor jovem, cheio de vitalidade e de ambição promete a si mesmo fazer uma obra verdadeiramente revolucionária, ninguém o deve criticar e oxalá que o consiga. Mas será útil chamar-lhe a atenção para alguns problemas. 

Em primeiro lugar, deverá ter alguma consciência dos limites dessa ambição e do horizonte que irá enquadrar a sua obra; em suma, ter ideia de até onde pensa ir e qual o nível da sua satisfação futura. Parece uma ideia estranha porque ninguém pode, à partida, saber até onde será capaz de ir, mas para não se perder em esforços despropositados ou caminhos sem sentido, deve ter alguma ideia disso. 

Ninguém chega a um determinado lugar se não souber minimamente que lugar é esse nem onde fica. Há (ou deve haver) uma conceção pessoal que irá enquadrar as realizações futuras, e um caminho a percorrer. Ou seja, mesmo que difusa, deve haver, à partida, uma ideia de realização que deseja levar a cabo. 

Um segundo problema, certamente mais difícil, é saber com que meios e com que forças vai concretizar isso, ou seja, se tem talento suficiente para o conseguir. Talento e persistência, capacidade de resistência às frustrações, resiliência face às adversidades, como agora se diz. Ninguém o sabe, ao certo, nem o próprio, pois muito provavelmente lhe faltarão meios de avaliação objetiva. É provável que as competências literárias lhe vão crescendo, mas a ambição pode ser desmedida em relação às capacidades. 

A vontade e o trabalho, embora muito importantes, não são condições suficientes, é preciso também talento, dom natural e até sorte. E tudo isto sopra onde e quando os deuses querem e não onde e quando os autores desejam. E embora, isso, só o tempo o possa esclarecer, é um dos grandes problemas que o autor que se pretenda revolucionário terá que enfrentar e que o pode levar ao falhanço. Se puder adaptar as expectativas às possibilidades, só terá a ganhar. 

Por mais revolucionário que um autor queira ser, partirá sempre de um dado ponto desse acervo extraordinário de quase três mil anos e de um número imenso de produções literária de todos os géneros. Ora, isto deve ser minimamente conhecido por qualquer autor que se queira original, porque é possível que a sua pretendida originalidade já outros, antes dele, a tenham tentado, e talvez até alcançado, pelo menos em alguns aspetos. O que não quer dizer, mesmo assim, que o não venha a conseguir.

Em arte, como em ciência, os maiores são-no em boa medida porque outros antes deles os ajudaram a subir mais alto, e é sobre esta base que melhor se pode inovar porque só deste modo se pode ver para além deles e superá-los verdadeiramente. É assim que surgem novas correntes, ou se renovam as anteriores, e dum terreno esgotado podem surgir novas plantas, com outro viço e aromas inesperados. A novidade é, pois, um bem valioso se – e só se – dela resultar um novo campo de produção artística, com novas realizações, inéditos padrões de beleza e juízos estéticos enriquecedores.

É claro que, num processo destes – e para ser coerente com a sua intenção – o artista tem que tentar, experimentar, arriscar. Mas, ao fazê-lo, tem que estar consciente de que pode falhar, e de que muito do que faz será provavelmente esquecido, ou seja, que a sua novidade pode não o ser, ou não vir ao encontro de nenhuma necessidade social e culturalmente sentida. O tempo se encarregará de concluir se aquele contributo foi ou não valioso para a novas formas de realização, se veio abrir outros caminhos, ou se tudo aquilo não passou de um fogo de palha. 

Por último, as diversas escolas e correntes surgiram sempre da necessidade de renovação, da procura de novas produções porque os campos pareciam esgotados. Isto exigia quase sempre movimentos de renovação, com transformação de quadros interpretativos e novas formas de fazer, muitas vezes dissonantes em relação a sensibilidades passadas e presentes. Tentava-se fazer melhor, estar atento a outras coisas, abrir novas perspetivas. O que desencadeava os movimentos era a necessário de ir mais além ou por outros caminhos.

Ou seja, o tentar fazer melhor e encontrar outras vias produzia a diferença, e não era a diferença que, por si só, produzia melhor. Quero eu dizer que uma coisa é querer fazer melhor, e para isso ter que romper com certos quadros e determinados cânones, outra é eu querer fazer diferente e, para isso, vou à procura das novidades. 

Parece-me que, hoje, e para muita gente, a mudança transformou-se num valor em si mesmo, e não num meio para produzir valor. Não sei se não é um erro, uma contínua doença de crescimento que hoje nos ataca. 

Talvez devêssemos ter mais consciência disso, para nos curarmos deste erro, se acaso o é. 

João Boavida

4 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

Os processos criativos, seja nas artes, seja nas ciências, seja nos juízos, nos sonhos, nas alucinações, nos delírios, nas paixões, no amor ou no ódio, nas técnicas, habilidades, artimanhas, para resolver problemas, como para criar problemas, são em parte uma resposta surpreendente e imprevisível, que não surgiu de um roteiro, ou de uma disciplina, ou de um sistema de abordagem preparado, antes aflorou algum nível e extensão da consciência que a reconheceu de algum modo, mais ou menos amplo e abrangente e, noutra parte, um efeito, ou produto, consequência, resultado, previsto ou não, esperado ou não, procurado ou não, intencional ou não, das circunstâncias do sujeito.
A primeira parte ocorre apesar de, ou por causa de uma aparente passividade do sujeito, que funciona como “sensibilidade”, “objecto”, “vítima”, “fruidor”, “sofredor”, “máquina sensível e pensante” perante uma realidade adversa, ou aliada, favorável; a segunda parte ocorre apesar de ou por causa de uma aparente actividade do sujeito, sem a qual todo o processo lhe passaria ao lado, ou seja, ocorreria sem ser notado e resgatado da corrente da vida.
Alguém que decida e se proponha fazer uma música, ou uma peça de teatro, escrever um romance, ou um poema, pode ter a expectativa de o conseguir como se consegue aprender quase tudo na vida. Mas estamos a falar de técnicas e de formas de expressão, de comunicação, de linguagem e é importante realçar que, por si só, o formalismo tende a ser considerado como a negação da arte e da criatividade. É pensável, por hipótese, que uma ideia criativa, original e interessante, passe desvalorizada por banal se a forma em que é vertida já o for.
Em teoria, todas as pessoas podem aprender todas as artes e ciências e praticá-las com níveis de proficiência consideráveis. As competências e as capacidades humanas, cognitivas, psicomotoras, expressivas, comunicativas, assim o permitem e explicam até que a cultura seja partilhável e assimilável. Não é apenas a crença nessa possibilidade, mas a efectiva constatação disso que continua a alicerçar as políticas e os programas de ensino e de educação, por todo o mundo.
Não obstante, uma coisa é alguém propor-se, por exemplo, escrever um romance, ou um poema, e, coisa bem diferente, conseguir fazê-lo com características que lhe granjeiem reconhecimento de notável, singular e relevante contributo para a riqueza do panorama cultural.

João Boavida disse...

Estamos a ver o assunto por duas perspetivas diferentes, mas não tão contrárias como possa parecer. O meu caro Amigo está a ver sobretudo a espontaneidade múltipla, a criatividade imensa e variadíssima de que a natureza humana dá provas e usa para os infinitos problemas e situações com que se defronta. Eu, sem negar isso, nem poderia, falo na concretização artística dessa imensa criatividade, da realização desse potencial nos diversos domínios da arte.
Concordo que os processos criativos se manifestam de inúmeras maneiras, e que correspondem a possibilidades também inúmeras, mas essa criatividade pode ser bem ou mal orientada e, sobretudo, dela tanto pode resultar um produto válido, como um sem valor. Por isso considero que um jovem autor deve pensar nisso e ter alguma noção dos problemas que se lhe vão colocar, das capacidades de que dispõe e, já agora, o que pretende realizar para, no final, se poder rever na obra realizada.
Toda a nova solução "sai da rotina", como diz, e cria outra (ou pode criar), mas é este mesmo processo que liga o antes ao depois, e a obra a fazer à obra já feita, condição até para ter a quem se opor, criar obra nova e poder avaliar a efetiva novidade da sua. Há sempre uma interação. por muito que se negue ou desvalorize nunca deixa de existir. Toda a novidade vive o mesmo processo, as fórmulas novas acabam por ser assimiladas pelas anteriores e deixam para trás, ou não deixam, rasto da sua importância. E pobres das que não deixam. A validade das novidades só o tempo avaliará convenientemente. É claro que os jovens continuam a poder fazer o que quiserem mas não se devem iludir, o tempo os avaliará implacavelmente. Penso que é óbvio que, para fazer obra válida, nem todos estão igualmente apetrechados, pois nem todas as competências estão igualmente distribuídas por todas as pessoas. E, sendo assim, haverá sempre, a partir dessa imensa capacidade de espontaneidade humana, quem consiga fazer bem e quem não consiga. Ora, não é tanto a novidade que determinará o seu valor, mas este que acabará por dar àquela o valor que ela virá, ou não, a ter; e, portanto, se foi ou não uma novidade válida e, até, se foi, ou não, verdadeira novidade.

Carlos Ricardo Soares disse...

Os nossos discursos não adoptam perspectivas muito diferentes, nem contrárias. Mais parecem desenvolvimentos de algumas ideias comuns e é um exercício agradável estar aqui a partilhá-las.
No seguimento do que anteriormente escrevi, constato que, já mais no campo científico, das teses ou das dissertações, uma coisa é alguém colher e fazer uma síntese do estado da arte, revelando até, eventualmente, conhecer tudo o que se sabe sobre um assunto, e isso ser um feito excelente, e outra coisa é alguém que, sem isso, ou além disso, apresenta novas hipóteses sobre os problemas e novas propostas de resolução para os mesmos, que até poderão ser revolucionárias. Se, naquele caso era excelente, neste ainda o é mais.
A maior parte de nós já se contentaria com saber o que vem nas enciclopédias, ou com escrever uma história interessante acerca de um personagem imaginário, como tantas outras, desde que fosse nossa, ou um poema, não digo melhor do que os melhores que já lemos, mas pelo menos que fosse bom.
Mas há muito mais do que isso que pode ser feito e quem tem a noção disto, só por ter a noção, já o faz.
Ainda assim, de qualquer modo, porque em grande parte o valor da obra é atribuído à obra feita e não à que se espera ou deseja fazer, há obras às quais é reconhecido valor sem que os autores perseverassem nisso e muitas outras que ficaram aquém do reconhecimento apesar dos autores se terem empenhado nesse desiderato.
Numa obra de arte o estatuto que a distingue e valoriza normalmente aparece associado a factores históricos relacionados com o momento da sua criação, estar o autor “no lugar certo à hora certa” e outras vezes ao aproveitamento, embora criterioso, quiçá criativo e oportuno, ou mesmo oportunista, de conteúdos artísticos ou com grande potencial estético, que fazem parte do património cultural, histórico ou artístico e que, só por si, são logo uma garantia dos efeitos pretendidos.
É preponderante e insubstituível, todavia, o papel e a vontade e a perseverança e a intencionalidade do autor, com as suas competências técnicas e artísticas, sem as quais nenhum dos factores extrínsecos explicaria a obra.
Talvez por isso as grandes obras nos interpelam tão vivamente sobre a personalidade e a vida dos seus autores.

João Boavida disse...

A criatividade é uma maravilhosa qualidade, mas se a não enquadramos nem orientamos estamos sujeitos a nunca a aproveitar e a perdê-la. Penso que está de acordo, por isso não chega ser-se imaginoso para fazer obra de qualidade, muitas das nossas imaginações perde-se em fumo e devaneio.
As nossas universidades não aproveitam muito a criatividade, em grande medida por que aquilo que ensinavam e o modo como avaliavam não vai nesse sentido. Era - e é - toda uma organização mental e cultural orientada noutro sentido. Talvez que nas Belas Artes ou nas Arquiteturas isso se verifique, mas aí é muito mais fácil, pois em grande medida é esse o objetivo da formação. Todavia eu tenho um exemplo, que não vou contar, mas onde alguns professores da Faculdade de Letras de Coimbra, nos idos do século passado, mostraram uma abertura de espirito e um apreço pela criatividade que muito os honrou e me faz, ainda hoje, admirá-los e honrar-lhes a memória.
Talvez não tenhamos pontos de vista muito diferentes, de facto. Lembro, porém, que tudo isto teve origem num artigo de Eugénio Lisboa sobre um determinado livro e sobre o direito de não gostar dele e de ter toda a legitimidade em dizer mal. Mas a verdade é que toda a orientação da argumentação posterior foi condicionada por este artigo. Não tem mal nenhum, e é até útil e formativo porque não estamos habituados a falar frontalmente, mas orientou os pensamentos, as argumentação e contra-argumentações num sentido que de algum modo as enviesa. Embora tenha a vantagem de pensar em aspetos e a de ver as coisas em perspetivas que talvez esquecêssemos ou não tivéssemos ocasião de desenvolver. Pelo menos comigo é o que está a acontecer.

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