Meu artigo no livro Geografias e Poéticas da Fronteira (Iberografias 39) publicado pela Âncora e pelo Centro de Estudos Ibéricos da Guarda:
O
conceito de fronteira começa por se referir a delimitações de países, mas tem óbvias
extensões: fala-se, por exemplo, de fronteiras como limites da descoberta
humana em terra, no mar, ou no espaço. Quando os alpinistas Edmund Hillary e
Tenzing Norgay chegaram ao cume do Evereste em 1953, quando os exploradores
submarinos Jacques Piccard e Don Walsh chegaram ao sítio mais profundo dos mares,
na Fossa das Marianas, no Pacífico, em 1960, ou quando os astronautas Neil Armstrong
e Buzz Aldrin chegaram à Lua em 1969, o ser humano chegou a novas fronteiras. Quando,
em 2013, a sonda da NASA Voyager 1, lançada em 1997, saiu da heliosfera,
cerca de 100 vezes mais longe do Sol do que a Terra, tornando-se o primeiro
engenho humano a aventurar-se no espaço interestelar, alargaram-se as
fronteiras do espaço alcançado por um artefacto tecnológico.
As
fronteiras entre os países aproveitam por vezes configurações naturais, mas,
outras vezes, não passam de convenções desenhadas a régua e esquadro. Quando
são naturais, assumem muitas vezes a forma matemática de fractal, um conceito
introduzido nos anos 80 do século passado pelo matemático francês Benoît Mandelbrot
no seu artigo de 1967 “Quanto mede a costa da Grã-Bretanha?” A resposta depende
do tamanho da régua: aumenta para infinito à medida que a régua diminui para
zero. As fronteiras fractais são muito entrecortadas, têm reentrâncias de
vários tamanhos. As linhas onde a terra acaba e o mar começa exibem uma
simetria de suto-semelhança: parte do rendilhado da costa é semelhante ao todo.
Já a fronteira entre a Terra e o espaço é bastante mais simples: fala-se de “linha
de Karman” para designar o limite a uma altitude de 100 quilómetros onde a
atmosfera é tão pouco densa que podemos dizer que a Terra acaba e o espaço
começa (de facto, não é uma linha, mas uma superfície). Deixamos de estar no domínio
da legislação terrestre para entrar no domínio da legislação espacial.
Podemos
falar não apenas de fronteiras do sistema solar, atravessadas pela Voyager
1, mas também de fronteiras da nossa Galáxia e do nosso grupo de galáxias.
Podemos até, indo muito mais longe, o mais longe que se pode ir, falar da
fronteira do Universo observável, que é uma esfera com cerca de 42 mil milhões
de anos-luz centrada na Terra (porque somos nós os observadores, mas a Terra
não tem nenhum papel especial no cosmos, pois qualquer outro observador noutra
estrela teria, ao olhar em seu redor, o mesmo limite). A luz está a
viajar desde há cerca de 14 mil milhões de anos desde o início do Universo (o Big
bang), pelo que já percorreu 14 mil milhões de anos-luz, mas, como o Universo
está em expansão, a esfera do observável é bem maior. Acreditamos que o
Universo se estende para além do observável, mas não sabemos se é finito ou
infinito. Mas, mesmo que seja finito, tal não significa que tenha fronteiras:
basta pensar numa superfície esférica, que é finita, mas onde um percurso pode
ser ilimitado.
O
conceito de fronteira vai, contudo, mais além do que o dos limites geográficos,
astronómicos ou cosmológicos. Quando falamos de fronteiras da ciência, estamos
a falar dos limites que separam o que se sabe do que não se sabe. Trata-se
neste caso de fronteiras imateriais e não materiais, portanto de uma ampliação
metafórica do conceito original. As fronteiras da ciência são móveis, pela
própria definição de ciência como processo de descoberta do mundo. As
fronteiras da ciência estão a avançar desde que a ciência começou. Hoje sabemos
mais do que ontem. E é legítima a esperança de que este processo continue, de
modo a que amanhã venhamos a saber mais do que hoje. Garcia de Orta escreveu de
forma lapidar no seu livro Colóquio dos Simples (Goa, 1563): “O que não sabemos
hoje amanhã saberemos.” A ciência alimenta-se desta atitude optimista de que há
e haverá mais para descobrir.
O
conhecimento científico está, portanto, em expansão, tal como o Universo que
ele procura descrever, graças à extraordinária capacidade do cérebro humano. Uma
ponte poética entre o cérebro e o espaço foi estabelecida pela americana Emily
Dickinson: “O Cérebro – é mais amplo do que o Céu –/ Pois – colocai-os lado a
lado –/ Um o outro irá conter/ Facilmente – e a Vós – também_–.“ Muitas dúvidas
que hoje persistem vão ser resolvidas pela criatividade humana. Novos territórios
vão ser explorados pois, após a resposta a uma dúvida, costumam logo surgir
outras interrogações. Tudo indica que o conhecimento científico é ilimitado… Esta
ideia de ciência como um empreendimento sem limites transparece do título do
relatório que o engenheiro e administrador americano Vannevar Bush enviou
em 1945 ao presidente Franklin Roosevelt: Science, The Endless Frontier, em
que pedia uma expansão do apoio público à ciência.
Além
do problema dos limites do conhecimento científico propriamente dito, há o
“problema da demarcação” da ciência, que consiste em distinguir entre o que é e
o que não é científico, uma questão do foro da filosofia da ciência. Há muitas
questões para além da ciência, como por exemplo, para além das da filosofia, as
da ética e as da arte. A acção humana, embora possa e deva basear-se no conhecimento
científico, não pode limitar-se à ciência. E a arte, embora possa contactar
fertilmente com a ciência, também é uma dimensão humana não científica. Há outras
formas de conhecimento para além da ciência e também elas parecem ser
ilimitadas.
5 comentários:
Um dos fascínios do conhecimento é que, sem conhecimento, não há nada.
B.Russel diria, parece que estou a ouvi-lo, "isso é uma estupidez, esta mesa existe mesmo que não saibas da sua existência". Eu respondo-lhe, existe para si, mas para mim não. Agora, que me disse que existe aí uma mesa, ainda que não esteja a vê-la e não faça nenhuma ideia de que mesa é, nem tenha qualquer prova de que exista, posso acreditar que existe e estou a acreditar em algo que não sei o que é, nem sei se existe.
B. Russel, tem a sua realidade e eu tenho a minha, não tenho a sua. Relativamente à mesa, até que uma investigação científica mo demonstre, não passa de algo imaginário e hipotético. Mas antes de B. Russel me ter dito que havia, ali, uma mesa, onde ele se encontrava, mas eu não, essa realidade (se existe, e vou supor que sim) não existia para mim, nem como mera fantasia.
A medida do meu conhecimento é a medida da realidade e não o inverso.
Se eu não tivesse conhecimento, não tinha realidade. Mas também não podia dizer que nada existia, porque não tinha conhecimento disso.
Isto não quer dizer que a pessoa que estivesse ao meu lado não tivesse conhecimento vasto sobre imensas matérias (aqui matéria é no sentido amplo de objecto de conhecimento) e que, portanto, a realidade existia independentemente de mim, só que, para mim, não.
Também é muito curioso e interessante constatar que o problema do conhecimento da realidade é sempre um problema do conhecimento da realidade como ela é. E todo o conhecimento, não só é uma redução da realidade à ideia, ao conceito, à imagem, à fórmula, ao enunciado, mas também um "congelamento", em slides ou formas, descontínuas, que nos não permitem, por exemplo, reproduzir os fenómenos da realidade, mas apenas representá-los, fixá-los em formas de linguagem e, quando muito, no método experimental, replicar ou simular algo muito semelhante.
Neste caso, a realidade naturalmente vivida, e mesmo a realidade subjectivamente percepcionada, é uma realidade que não coincide, nem pela densidade, nem pela natureza, nem pelo momento e/ou o espaço, com a realidade de que o conhecimento possa dar notícia, exprimir ou comunicar.
Todo o conhecimento é sobre o passado, sobre factos. Facto é passado.
Por outro lado, vemos B. Russel a insurgir-se contra os idealistas e os platónicos, enquanto defende um materialismo estrito, com argumentos que não podem deixar de ser metafísicos, quando diz, por ex., «o universo escolheu funcionar de um modo matemático e não do modo que os poetas e os físicos teriam desejado. Talvez isso seja lastimável, mas dificilmente se espera que um matemático o lamente.» (Bertrand Russel - Ensaios Céticos).
Aliás, na mesma linha de Galileu, quando este se refere ao grandíssimo livro da natureza escrito em linguagem matemática. Como se a linguagem, matemática ou verbal, ou outra, preexistisse ao homem, não seja criação sua e ele, meramente, a tivesse descoberto.
As ciências da vida, dão-nos conta de que a vida é uma espécie de linguagem, com a sua estrutura e os seus códigos e redes de comunicação. O conhecimento é uma estrutura explícita de uma linguagem cuja estrutura é determinada, ou formatada, pelo nosso cérebro e todo o sistema sensitivo e cognitivo.
As características do nosso pensamento, as formas como pensamos e como representamos a realidade e comunicamos, não foram, nem são escolha nossa, «nem do modo que os poetas e os físicos teriam desejado», para ironizar um pouco com B. Russel.
Tanto quanto sei, a natureza não produz formas geométricas, triângulos, etc., mas nós somos capazes de imaginar formas geométricas e parece que as estruturas mecânicas que somos capazes de construir têm sempre forma geométrica.
Também, sendo a realidade contínua mas não conseguindo nós pensar de modo contínuo, as nossas representações mentais são fruto dos nossos sentidos, integrados no nosso sistema neurológico, fragmentárias, parciais e uma sucessão de instantâneos, que seriam outras se outras fossem as formas de “interacção, conexão” entre nós e o mundo. Basta pensar, por momentos, no que observa, capta, conhece, um cego de nascença, por ex., quando entra numa sala cheia de gente.
E o que seria o conhecimento humano sobre o mundo se, por acaso, não tivéssemos olhos para ver. Onde se falaria em evidências?
Nos tribunais, por ex., fala-se em audiências.
Interrogo-me se temos possibilidade de pensar o todo, mesmo tomando como um todo apenas uma parte e, ao mesmo tempo, pensar as partes que o constituem. Somos capazes de analisar, mas parece que não temos capacidade para representar mentalmente uma síntese.
A própria linguagem verbal, até a que usamos correntemente, atingiu níveis de abstracção tais que se emancipou das suas referências significadas e funciona muitas vezes como uma espécie de matemática, ou moeda fungível, através da qual se podem fazer jogos e trocas infindáveis e operações sem limite, com largos espectros de significação e sentido, sem deixar de cumprir os requisitos de validade lógica.
O nosso equipamento natural, ou a nossa estrutura física, com os sentidos que possuímos e os recursos de racionalidade de expressão e de comunicação, mormente linguísticos, os códigos e o modo como tudo se processa no nosso organismo e nas redes neuronais individuais e sociais, em que estamos inseridos e conectados, têm as características e o potencial que têm e não outras, que desejássemos escolher.
O que acho verdadeiramente notável e espantoso é a nossa aptidão para criar geometrias, números e relações lógicas, símbolos e signos que nos permitem representar a realidade e tratá-la como se ela fosse uma forma, um número, um símbolo, ou uma ideia e, tantas vezes, tomarmos estas nossas criações abstractas como características da realidade concreta e objectivada.
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