quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Sobre o (polémico) cânone literário - 2

Na mesma linha de pensamento de Célia Mafalda Oliveira, Presidente da Associação de Professores de Latim e Grego de quem, em tempos recentes, republicámos um texto (ver aqui), Margarida Miranda,  professora de Estudos Clássicos, interroga o afastamento que tem sido feito da cultura humanista de matriz ocidental no currículo das universidades europeias e americanas. Tudo em nome do "politicamente correcto", que nada tem a ver com a liberdade de expressão, intimamente associada, em ambientes democráticos, à responsabilidade ética. Em vez de integrarmos no currículo escolar o conhecimento que tem valor, independentemente da sua origem, excluímos uma parte, aquela que formou, em grande medida, o nosso modo de pensar. Vale a pena ler, na íntegra, o segundo texto a que aludimos, cujo título é "No princípio era Homero…" (ver aqui).
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
"O assalto aos estudos humanísticos e a politização do ensino superior O desmantelamento do curriculum em nome de agendas políticas prejudica as próprias democracias, que deixam de ver respeitadas quer a liberdade cultural e artística, quer a independência das instituições de ensino superior.  

The Wall Street Journal informou recentemente que uma escola secundária pública no Massachusetts tinha retirado Homero do currículo, dando ocasião a que uma professora, Heather Levine, exprimisse a sua satisfação: “Muito orgulho em dizer que a Odisseia foi retirada do currículo este ano!”. 
Homero é um dos maiores monumenta do nosso passado. Não há área da criação humana, desde a poesia à retórica, desde a música à religião e às artes, desde a geografia à filosofia política, que não tenha recebido inspiração inicial dos heróis homéricos. No princípio era Homero… A tristemente célebre professora Levine não é caso isolado. Como reconhece a autora da peça no WSJ, está há muito em marcha um programa para substituir o que se lê na escola. 
O que acontece é que as redes sociais, mais propícias à retórica da emoção do que à da razão, intensificaram aleatoriamente o potencial daquele programa. Foi o que aconteceu com o movimento #Disrupttexts, que entrou no Twitter em janeiro de 2020 para “reconstruir o cânone literário numa perspectiva de crítica literária antirracista e anti discriminatória” e “criar um curriculum mais inclusivo…” ou seja, para combater o cânone literário tradicional, tido como instrumento de repressão. 
Se o cânone, que o próprio Harold Bloom defendeu, pretendia transmitir às gerações o melhor do que já foi pensado, escrito e representado, para os arautos da “revolução permanente” imposta pelo marxismo cultural, qualquer juízo de valor (implícito na escolha de ‘o melhor’) é visto como suspeito – a menos que resulte na acusação da cultura ocidental, branca, europeia, cristã e machista. Estabelecer um cânone fere os princípios democráticos. 
Assim, o cânone dito inclusivo exprime-se no repúdio de tudo quanto as humanidades tradicionalmente defenderam; projecta-se em programas voltados para a Pop Culture, em detrimento da impopularmente chamada alta cultura. Pretende, aliás, apagar a distinção qualitativa entre alta cultura e Pop Culture. Termos como humanismo e busca desinteressada da verdade afiguram-se esvaziados de sentido. 
Em lugar de Homero ou Virgílio, os estudantes de Pop Culture ocupar-se-iam da análise de videoclips da Madonna. E por fim, abandonar-se-ia o estudo das grandes obras da tradição ocidental para dar atenção a materiais secundários, de importância intelectual duvidosa – desde que ao serviço de certos objectivos políticos. O fenómeno não é novo: Roger Kimball descreveu-o em 1990 num livro famoso sobre Radicais nas Universidades (Tenured radicals: how politics has corrupted our higher education. Harper Collins Publishers) em que mostrou, com muita propriedade, como já então o debate académico reduzia todas as dimensões do homem e da cultura às “relações de poder” e ao “conflito de interesses”, ou seja, à política (...).
Ninguém nega que Literatura e Filosofia tratem de política; mas podemos reduzir a sua essência à política? Só uma visão politizada da educação e uma visão da universidade como palco de acção político-partidária permitem que o curriculum seja redefinido de acordo com as especificidades dos interesses de “raça, classe e género” – a nova versão do marxismo intelectual ou ecletismo de esquerda. Enquanto novos intelectuais denunciam a “hegemonia” da cultura ocidental, acusada de sexista, racista, reacionária e passivamente reverente, vemos a Escola abraçar ideologias intelectuais da moda, e a educação superior submeter-se a imperativos políticos. Diante do triunfo de radicalismos feministas, com a sua obsessão pela dominação masculina e pelo ‘género’ como categoria fundamental de análise literária, não é a Literatura que soçobra? 
A ideia de que o curriculum deva ser alterado de acordo com qualquer propósito partidário é uma perversão do ideal da universidade”, escreveu o filósofo de Berkeley John Searle, um dos maiores filósofos contemporâneos (The New York Review, 1991). “O objectivo de converter o curriculum em instrumento de transformação social (de esquerda, de direita, de centro ou o que seja) é o exacto oposto do ensino superior”. 
Dir-se-ia que, para a agenda política das Universidades, ensinar não é transmitir conhecimento, mas apenas gerar insatisfação. De facto, quanto mais cresce a politização das humanidades, mais cresce a ignorância do legado humanista. Mas os perdedores serão, em primeiro lugar, os alunos. O desmantelamento do curriculum em nome de agendas políticas é uma medida tirânica que os priva do melhor que foi pensado e dito. Com o tempo, ficarão as Universidades a perder, pois os alunos hão-de um dia descobrir que estas nada lhes ofereceram a não ser “treinamento ideológico, cultura pop e jogos herméticos de palavras” (Kimball, p. 31). E em última instância perdem as democracias, que deixam de ver garantida não só a liberdade da actividade cultural e artística, como até a própria independência das instituições de ensino superior. 
Veja-se o cancelamento neo-inquisitorial de contas de Twitter, Facebook, Youtube (a nova praça pública), de utilizadores dissidentes do mainstream. Esse atentado à liberdade de expressão não será já um fruto maduro do treinamento ideológico operado pelas Universidades?"

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