Partilho, em baixo, a minha recensão ao livro "Apanhados pelo Vírus", que foi inicialmente publicada no site da COMCEPT.
David Marçal e Carlos Fiolhais, “Apanhados pelo Vírus – factos e mitos acerca da COVID-19”, Gradiva, Lisboa, 2020
David Marçal é bioquímico e comunicador de ciência e Carlos Fiolhais é professor de Física na Universidade de Coimbra. Esta dupla quase que dispensava apresentações ou não fossem já conhecidos – e reconhecidos – pelo seu trabalho de divulgação científica através de livros, textos em jornais, oradores em palestras e participação em programas televisivos. Declaração de interesses: são também associados da COMCEPT.
O livro mais recente destes autores é intitulado “Apanhados pelo Vírus – factos e mitos acerca da COVID-19” e encontra-se dividido em três partes: “O que se sabe”, “Infodemia” e “Ciência em directo”.
No primeiro capítulo contextualizam o que se sabe sobre o vírus e a doença. Focando-se na família dos Coronavírus, descrevem a estrutura do SARS-CoV-2 e dos receptores (ACE-2) a que se ligam nos órgãos, abordam as vias de transmissão, dão exemplos de avaliação de risco e explicam o que levou à reviravolta relacionada com a sugestão oficial do uso de máscaras, apontando que máscara deve ser usada. Também identificam os grupos de risco, relembram o funcionamento do sistema imunitário, explicam como são feitas as vacinas, que tipos de testes existem e a diferença entre especificidade e sensibilidade dos testes. A saber: especificidade refere-se à capacidade de detectar sequências específicas de ARN e sensibilidade significa que se consegue detectar esse material em quantidades muito pequenas. Além disso, abordam ainda a evolução de casos e de mortes ao longo do tempo assim como as medidas políticas adoptadas para lidar com esta situação excepcional.
Este capítulo não é só um resumo histórico do que aconteceu, ao descrever a evolução do conhecimento sobre o que primeiro foi assumido como uma pneumonia desconhecida até ao que, na altura da publicação, se sabia sobre a pandemia. De facto, creio que este capítulo perdurará no tempo como uma memória descritiva, um registo que será útil para memória futura.
O segundo capítulo é dedicado ao tema da infodemia que é definido como “excesso de informação sobre terminado tema por vezes incorrecta e produzida por fontes não verificadas ou pouco fiáveis que se propaga velozmente”. Como os autores relembram, a infodemia precedeu a pandemia, uma vez que a desinformação já circulava abundantemente nas redes sociais, embora no actual contexto a COVID-19 tenha sido um alvo de desinformação pelas mais variadas razões (desconhecimento, oposição às medidas oficiais, crenças em teorias da conspiração, etc.). Por falar em teorias da conspiração, as mesmas recebem destaque neste capítulo, enfoque particular na associação que alguns movimentos fizeram entre o 5G e a doença. Por esse motivo, os autores aproveitaram para desmistificar um pouco esta tecnologia de modo a tornar compreensível ao leitor do que realmente se trata. As redes sociais não são os únicos veículos de transmissão rápida de desinformação, pois o caso piora quando governantes que deveriam ser responsáveis utilizam o seu mediatismo para propor falsos tratamentos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos.
A terceira parte é dedicada ao avanço das técnicas e da tecnologia - da física à biologia - e como isso foi importante para o estudo e combate a esta doença. Os autores explicam como é feita a ciência e contextualizam os desenvolvimentos e resultados a que temos assistido em direto a partir do televisor ou da internet. Lembram que os resultados apresentados são sempre provisórios, até porque incompletos (devido a baixas amostras, tratamento de dados pouco rigoroso, efeitos confundidores, etc), e que com o tempo surgirão outros melhores, uma vez que a ciência se vai autocorrigindo. O tempo é um dos factores extremamente importantes em ciência, por ser necessário para fazer investigação e para testar as terapêuticas. Outro dos factores essenciais é, claro, o financiamento, seja ele público ou privado. Informam os autores que em Portugal o investimento em ciência é apenas 1,4% do PIB enquanto a média da União Europeia ronda os 2,1%. Contudo, para a pandemia houve um maior investimento da Europa para desenvolver vacinas e fármacos contra esta doença. Foi precisamente graças ao forte investimento europeu e à mobilização dos cientistas que se conseguiram testar terapêuticas e desenvolver vacinas em tão pouco tempo. Mas também por o período temporal de investigação ser reduzido, quando comparado com uma situação normal, é que existem tantos estudos preliminares e publicações por validar, devido à reduzida possibilidade de escrutínio e replicação de resultados perante a avalanche de conhecimento produzido. Isto leva ao papel da dúvida em ciência, também abordado no livro.
Assim, concluímos que este livro trata de um registo da
evolução do conhecimento médico e científico sobre o vírus e a doença, mas
também de algumas políticas dos governos para lidar com a pandemia, assim como
também do modo como parte da população entendeu e lidou com este evento
sanitário, criando e disseminando boatos, desinformação e teorias da
conspiração. Podemos dizer que, de certo modo, é aqui feito um retrato social
de um período específico da pandemia – desde o início até à data da publicação.
Se bem que este aspecto possa ser uma limitação, por o livro ter sido publicado
ainda durante o acontecimento e por isso possa vir a estar rapidamente
desatualizado relativamente a certos aspectos (por exemplo, as vacinas ainda
estavam em desenvolvimento), por outro lado representa um registo contemporâneo
e com valor para análise histórica no futuro, para além do indubitável valor informativo
que tem já no presente.
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