Texto do Professor A. Galopim de Carvalho, que, muito agradecemos.
O afecto, palavra que fomos buscar ao latim “affectus”, afigura-se-me como um sentimento marcado por uma natural, espontânea e notada dose de ternura na relação com o outro, que tanto pode ser uma pessoa, um animal ou, mesmo, um objecto.
No seu último livro “Sentir & Saber”, editado em Novembro do passado ano, António Damásio, de que ainda só li algumas passagens, numa entrevista que deu a José Cabrita da Silva, do jornal I (mas que irei ler com toda a atenção, como fiz com alguns dos seus anteriores livros), veio reforçar uma convicção muito enraizada em mim, segundo a qual o afecto é fundamental em todos os domínios da nossa vida em sociedade.
Damásio diz que as “capacidades afectivas são fundamentais porque são as primeiras”. São, diz ele, “os alicerces da nossa mente, daquilo que é o nosso ser”. E acrescenta que “é sobre essas capacidades que se vão colocar as capacidades cognitivas”.
“Esse Penso, logo existo, de Descartes, - continua o autor a dizer - é profundamente erróneo, porque vem de uma ideia de que aquilo que é o ser humano e aquilo que é mais valorizável no ser humano é o pensamento, mas um pensamento concebido no nível cognitivo puro”.
Contrapõe a seguir, dizendo que “o fundamental, o alicerce de tudo isto, é aquilo que tem a ver com o nosso próprio corpo, com a vida que está a manifestar-se no nosso próprio corpo, e cujo estado (bom ou mau) é transmitido através do sentimento. Para Damásio, “as capacidades afetivas têm sido sistematicamente menosprezadas pela nossa cultura, pelo melhor da nossa cultura, não apenas hoje, mas na cultura filosófica tradicional”.
Há 25 anos, em O Erro de Descartes, já o autor denunciava “a sobrevalorização das capacidades cognitivas puras, em detrimento das capacidades afectivas”.
Para o autor de “Sentir & Saber”, o fundamental é que se perceba que aquilo que é ser humano não é redutível aos aspetos cognitivos da mente. Pelo contrário. É preciso alicerçar essa mente no que é fisiológico, naquilo que é a vida, naquilo que é o corpo. Não é dizer que somos só corpo, isso seria um disparate. O que não se pode é tentar perceber o que é o ser humano sem perceber o corpo, a fisiologia, e a expressão dessa fisiologia nos sentimentos.
Para este neurocientista “aquilo que é a nossa vida, aquilo que é a nossa história e a nossa identidade, não é puramente cognitivo. É cognitivo misturado com o afecto. A vários níveis”.
Estas sábias palavras de quem há, décadas, estuda a anatomia do cérebro e a sua relação com os fenómenos da consciência, vêm ao encontro de uma convicção muito enraizada em mim e que posso expressar, servindo-me, em parte, das suas palavras, dizendo que aquilo que foi e ainda é fundamental no meu trabalho e no meu pensamento tem a ver com a mistura do que é afectivo com o que é puramente racional.
Tenho plena consciência de todos os êxitos no muito trabalho que desenvolvi, para além do empenho e da persistência que neles coloquei, foram ditados, sobretudo, pela afectividade que sempre caracterizaram o meu relacionamento com as pessoas, quaisquer que sejam as suas posições no tecido social, dos Presidentes da República ao mais humilde dos cidadãos, dos ministros aos contínuos dos ministérios, dos patrões aos assalariados, dos generais e almirantes aos soldados e marinheiros.
Na árdua e prolongada luta que travei pela salvaguarda da jazida com pegadas de dinossáurios de Pego Longo (Carenque), tive oportunidade de me relacionar intensamente com a comunicação social escrita, falada e televisionada. Nesse relacionamento fiz tantos apoiantes e amigos quantos os media com quem privei, em número de algumas dezenas, entre os seniores mais prestigiados e influentes e os mais simples e apagados estagiários que, com o passar dos anos, se fizeram respeitados profissionais.
Percorri os corredores do Poder e, sem nunca me afastar das causas que abracei e pelas quais me bati e dei a cara, fiz amigos e estabeleci relações de muita simpatia com alguns ministros e, o que sempre foi muito importante, com os chefes de gabinete e com as respectivas senhoras secretárias. Outro tanto aconteceu no universo da Assembleia da República, independentemente das filiações partidárias, dos líderes das diferentes bancadas parlamentares aos deputados de todos os partidos. Tem sido assim nas muitas Câmaras Municipais, à margem das respectivas cores políticas, com as quais iniciei e tenho mantido estreita cooperação, sempre a título gracioso, nunca remunerado (pro bono), condição essencial que sempre garantiu e garante a minha não dependência desse outro poder e me não inibe de exercer livremente o meu juízo crítico e de procurar levar a bom termo os projectos em que me tenho envolvido. Criar pontes de afecto com presidentes ou directores e funcionários, dos mais categorizados aos mais humildes, nas mais variadas instituições públicas e privadas com as quais tive de me relacionar, profissionalmente ou apenas como cidadão, agilizou grandemente todo o trabalho que desenvolvi numa fase da minha vida em que estive ligado ao Museu Nacional de História Natural.
Devo dizer, em abono da verdade, que sem o suporte institucional deste museu e sem o apoio de alguns dos seus funcionários eu não teria tido nem a voz nem a visibilidade que os “media” me deram. Nas duas décadas em que tive responsabilidades na Universidade de Lisboa e, em particular, no Museu Nacional de História Natural, de que fui director, beneficiei, da estima e do afecto dos quatro reitores que nos tutelaram nesses anos, nomeadamente os Profs. Rosado Fernandes, Meira Soares, Barata Moura e Sampaio da Nóvoa.
Na Faculdade de Ciências, onde exerci a docência entre 1961 e 2001, ano em que me jubilei, a vida correu-me bem. Pode dizer-se que tive uma carreira sem dificuldades de maior, que me permitiu viver em paz comigo, com os colegas e com a instituição, num ambiente de grande afectividade e simpatia.
Foi prova deste viver a numerosa assistência, nunca vista (cerca de 800 pessoas, entre amigos, colegas, alunos e ex-alunos), à minha última lição, “Geologia e Cidadania”, em 30 de Maio de 2001, no grande auditório da Faculdade. Afectividade influenciou, certamente, as muitas distinções e honrarias de que fui e ainda sou alvo.
É verdade que, praticamente, tudo o que experimentei a fazer ou fiz, foi feito com amor, algumas vezes com paixão. Foi assim em criança, em que, brincando, fui aprendiz atento de muitas artes.
Como estudante, só fui bom aluno com os professores com quem estabeleci relações de afecto. Com os outros fui sofrível ou, mesmo, mau.
Como professor que fui durante quatro décadas pude confirmar que a relação de afecto entre o aluno e o professor constitui uma componente fundamental para o sucesso escolar. Como divulgador de conhecimento que também fui durante esse mesmo período, mais os vinte anos que se seguiram à jubilação, diz quem me ouve ou lê, que as minhas palavras tocam a afectividade e que, muitas vezes, têm sabor de poemas.
E eu sei que é verdade, posto que, ainda hoje, as minhas madrugadas são trocas de afectos com os meus quase 19 000 leitores, aqui no Facebook, nos bloques em que participo e nos livros que, entretanto, escrevi.
A. Galopim de Carvalho
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