quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O ESPÍRITO DE CRISTAL

 

Do poeta e ensaísta Eugénio Lisboa recebemos este belo texto que assinala a entrada em livre circulação das obras de George Orwell: 

Acabam de ser postas no domínio público as obras desse grande escritor e grande cidadão que foi George Orwell, um dos mais destemidos e autênticos defensores da liberdade, mas de uma liberdade incontaminada pelos miasmas que frequentemente a pervertem. 

Conceitos como “democracia” e “liberdade” e outros igualmente egrégios foram abusivamente apropriados e conspurcados pelos habituais promotores de infernos concentracionários.

Arriscando a própria vida, no meio da guerra civil espanhola, combatendo ao lado dos republicanos, ironicamente, viu-se mortalmente perseguido, não pelos fascistas, mas sim pelos comunistas. É o preço que pagam os intrépidos espíritos de cristal, cujo verbo diamantino não se prostitui no uso das palavras em sentido perfidamente distorcido. Em forma de homenagem, transcrevo, a seguir, passagens de um artigo que publiquei, em 1984, assinalando a publicação do livro cujo título é, precisamente: 1984. 
Como muitos privilegiados, Eric Blair – era esse o seu verdadeiro nome – frequentou Eton, mas não teve o benefício de estudos universitários: em vez disso, foi polícia na Birmânia, teve, por algum tempo, um gosto (amargo) do império, e regressou, por fim, à Europa, onde passou fome e solidão, entre Londres e Paris. 
Como tantos intelectuais ingleses (e não só), nos anos trinta, foi socialista. Mas, ao contrário da maioria deles, nunca o seduziu a «tentação totalitária». Combateu em Espanha, ao lado dos republicanos, foi seriamente ferido na garganta e escapou, por um triz, às purgas que os «camaradas», teleguiados de Moscou, desencadeavam, com desenvoltura, nas hostes que combatiam Franco. O seu antifascismo vinha de longe e era de boa cepa. 
O percurso de Orwell não foi nunca o de uma típica desilusão de amor [isto é, não veio para o socialismo libertário, por rotura com a ortodoxia comunista]: o seu socialismo foi, desde o começo, o de um intemerato amante da liberdade. Homage to Catalonia (Homenagem à Catalunha) é, além do mais que também é, um impressionante documento e um livro que foi difícil a uma certa esquerda digerir. 
Admirado pela sua coragem e lucidez, Orwell pagou, em boa e amarga medida, o preço da sua vontade de chamar as coisas pelo seu nome. A sua prosa foi sempre de uma beleza difícil de definir, simples, clara, directa, um perfeito instrumento de comunicação de ideias, sem a hipocrisia febril das circunvoluções. 
Num famoso ensaio sobre Swift, o autor de 1984 afirmará que o criador de Gulliver “não desperdiça palavras” e, noutro ponto do mesmo ensaio, fala de “todo o poder e simplicidade da prosa de Swift”. Elogios que a ele próprio assentam como uma luva. Da leitura, tanto dos romances, como da sua vasta obra de jornalista e ensaísta, desprende-se um dos mais fortes aromas de integridade intelectual, de firmeza, de convicção, de quase aterradora lucidez, que me tem sido dado confrontar, no decurso de um já longo percurso de leituras. 
Dizia um escritor francês, deste século, que não sabia como era o espírito de um canalha do baixo mundo, mas que sabia muito bem como era o espírito de um homem honesto: era simplesmente aterrador (...). 
Num seu texto célebre, Politics and the the English Language, Orwell devastava, nestes termos, a hipocrisia linguística dos políticos e da intelligentsia inglesa da época: 
“No nosso tempo, o discurso e a escrita dos políticos são largamente a defesa do indefensável. Coisas como a continuação do domínio britânico na Índia, as purgas e deportações na Rússia, o lançamento de bombas atómicas no Japão, podem realmente ser defendidas, mas só com argumentos que são brutais para que a maior parte das pessoas os consiga encarar, e não dizem bem com os objectivos que os partidos políticos dizem visar. Por isso a linguagem política tem que viver largamente de eufemismos (...) e de puras vacuidades nebulosas. Bombardeiam-se, do ar, aldeias indefesas, empurram-se os seus habitantes para o campo aberto, metralha-se o gado, deita-se fogo às cabanas com balas incendiárias: chama-se a isto pacificação. Roubam-se as quintas a milhões de camponeses e mandam-nos trotar para as estradas apenas com aquilo que levam nas mãos: chama-se a isto transferência de população ou rectificação de fronteiras. Metem-se pessoas na cadeia, durante anos, sem julgamento, ou dá-se-lhes um tiro na nuca ou mandam-nos morrer de escorbuto em campos de madeira no Ártico: chama-se a isto eliminação de elementos que não merecem confiança. Uma tal fraseologia é necessária quando se quer nomear as coisas sem trazer ao espírito a clara fotografia delas. Considere-se, por exemplo, um confortável professor de inglês defendendo o totalitarismo russo. Não poderá dizer abertamente: “Eu acho que é aconselhável liquidar os nossos adversários, se com isso obtivermos bons resultados.” Por conseguinte, dirá provavelmente qualquer coisa como isto: “Conquanto conceda livremente que o regime soviético exibe certos aspectos que os humanistas podem sentir-se inclinados a deplorar, devemos, penso eu, concordar que uma certa redução do direito à oposição política é uma componente inevitável de certos períodos de transição e que os rigores de sofrimento a que o povo russo tem sido submetido têm sido amplamente justificados na esfera dos resultados concretos conseguidos.” 
Orwell acreditava, e com razão, que a clareza do discurso se perverte sempre que o totalitarismo se propõe avançar. Ou, por outras palavras, que a liberdade política e a simplicidade de linguagem estão, por força, interligadas. A simplicidade do discurso é própria de quem nada tem a esconder (…) Por isso observava Vauvenargues que “a clareza é a boa fé dos filósofos”. 
Dela, com efeito, só têm medo os pervertidos, os opressores e os charlatães. O contorcionismo linguístico é sempre um sinal de doença: a má fé anicha-se, de preferência, no enredado e no arrendado das palavras. (…) A limpidez da linguagem é a maior homenagem que o homem livre pode oferecer ao homem livre. 
Por isso, a uma amiga a quem se declarava, Orwell informava-a, com lisura e candura, de tudo quanto nele era pouco recomendável, concluindo: “Falei-lhe de modo chão porque sinto que V. é uma pessoa excepcional.” 
Toda a obra de Orwell é, portanto, na sua cristalina inteireza, uma declaração de apreço pelo leitor. (…) 
À memória de um amigo que conhecera nos primeiros dias da sua estadia em Espanha, Orwell dedicou um poema que concluía assim: Mas àquilo que vi no teu rosto nenhum poder pode fazer mal: não há bomba, por mais que rebente, que destrua o espírito de cristal. 
O seu “espírito de cristal”, a sua intrépida lucidez, o magnetismo potente do seu falar inteiro, o seu ódio saudável ao Newspeak [a odiosa e mentirosa “novilíngua” dos opressores] (…) – são, afinal, o seu melhor e mais durável legado. Como ele próprio dizia, não há bomba que destrua o espírito de cristal. 
Eugénio Lisboa

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