Minha recensão do último romance de Don deLillo publicada no I de ontem:
No meu curso de Termodinâmica,
quando introduzo a escala Kelvin (que começa no zero absoluto, 0 K = -273,15
graus Celsius), costumo referir o romance Zero K (Sextante, 2016) do
escritor norte-americano Don DeLillo (nascido em 1936). É um livro sobre a
possibilidade de resistir à morte através da criopreservação, a preservação do
corpo humano perto do zero absoluto. A esperança de alguns é que os avanços da
biomedicina permitam um dia reanimar corpos apanhados por doenças que hoje são fatais.
É um livro de um tempo em que tentamos contrariar os nossos medos com esperanças
alimentadas pela ciência e pela tecnologia.
A ciência e a tecnologia estão
presentes neste e noutros romances de DeLillo por estarem omnipresentes na
nossa vida. Sendo um escritor moderno – para alguns pós-moderno (o próprio
autointitula-se “moderno, na tradição de James Joyce e William Faulkner”) – incorpora
nas suas obras elementos científico-tecnológicos que moldam a nossa modernidade.
Por exemplo, em The End Zone (1972, não traduzido) fala da guerra
nuclear. Em Ratner’s Star (1976, idem) há um matemático que tenta captar
uma mensagem extraterrestre. Em Cosmópolis (Relógio d’Água, 2003) uma limousine cheia de ecrãs de televisão e
de computador circula pelas ruas de Nova Iorque. Em Ruído Branco
(Sextante, 2009), o autor reflecte sobre a química no mundo de hoje, ao
descrever um acidente com um produto químico não especificado. O romance Submundo
(Sextante, 2010) aborda o problema dos resíduos civilizacionais.
A morte, os desastres e o fim do
mundo, por vezes associados à tecnologia, estão entre os temas de eleição de
DeLillo. Em Mao II (Sextante, 2009) fala do terrorismo internacional. Em
Libra (Sextante, 2013) trata, ainda que com ficção à mistura, do
assassinato de John Kennedy. Em O Homem em Queda (Sextante, 2007) aborda
o atentado das torres gémeas de 11 de Setembro. O título Ponto Ómega (Sextante
2011) remete para o fim do mundo do teólogo francês Teilhard de Chardin. O medo
está por todo o lado na sua literatura: Em Ruído Branco há mesmo uma droga
fictícia, o Dylar, que é um tratamento experimental contra o medo da morte.
O medo é individual e colectivo.
É muito nítido, para os leitores de DeLillo, que o indivíduo é facilmente levado
pelas multidões. A linguagem, que liga os indivíduos para formarem multidões, é
uma preocupação central do autor. Num estilo muito próprio, o romancista –
também dramaturgo e ensaísta – fala não só da comunicação no mundo moderno, mas
também da impossibilidade de comunicação quando o ruído prevalece.
O último romance de DeLillo, O
Silêncio, publicado em Nova Iorque em Outubro passado e quase ao mesmo
tempo em Portugal, é uma síntese de temas de outras obras do autor – estão lá a
ciência e a tecnologia, a morte, o fim do mundo, e o medo. A comunicação e a
incomunicação na nossa sociedade também lá estão. De facto, O Silêncio,
ao descrever uma catástrofe à escala global, foi de certo modo premonitório da crise
que hoje vivemos. É curioso que, num romance entregue semanas antes da eclosão
da pandemia, se fale do confinamento: “E não é estranho que certos indivíduos
pareçam aceitar resignadamente o confinamento, a cessação do fluxo? Será uma
coisa por que sempre ansiaram, subliminarmente, subatomicamente?”
O romance, o 18.º do aclamado
autor e o 13.º publicado entre nós, é curto. A acção situa-se em 2022. Os principais
personagens são cinco e a história conta-se em poucas linhas: Um casal, Jim e
Tessa, regressa de avião de Paris a Nova Iorque, esperando chegar a tempo de
assistir ao Super Bowl, a final de futebol americano e um grande espectáculo
televisivo, no apartamento de um casal amigo, Max e Diane. A anfitriã,
professora de Física já reformada, tinha convidado Martin, um seu ex-aluno,
também professor dessa disciplina, a juntar-se ao party doméstico. No Super Bowl todos os americanos estão em casa, pendurados
na televisão, com abundância de comidas e bebidas. O entretenimento é não só o
jogo, mas também o show no intervalo precedido
de muitos anúncios (lembro-me de um dia ter ficado acordado até altas horas
para ver a Lady Gaga, embora não saiba nada de futebol americano). O jogo está
prestes a começar…
Mas, de repente, dá-se um evento
inesperado: um apagão geral, que faz parar todo o sistema de comunicações. O
avião onde viajavam Jim e Tessa, perto do aeroporto, é forçado a uma aterragem
de emergência. Ao mesmo tempo, a televisão vai abaixo no apartamento de Max e
Diane. A Internet e os telemóveis deixam de funcionar. Não era apenas uma
avaria num edifício, mas em toda a cidade e quiçá no planeta. O autor não
explica o que aconteceu. Mas é uma espécie de fim do mundo. É como se o mundo subitamente
se calasse, ficando em suspenso.
Jim e Tessa conseguem chegar a
casa dos seus amigos, embora exaustos e desorientados, após se terem salvo na
queda do avião. Ainda passam por um hospital com longas filas de espera para
tratar um lanho na cabeça dele (para aliviarem a tensão, fazem rapidamente sexo
numa casa de banho do hospital). Estando a televisão calada, resta a conversa
no pequeno grupo, desligado das massas. Se o mundo se calou, aquelas pessoas
não se calam. O silêncio do mundo é a oportunidade para elas falarem, em
diálogo e em monólogo. Aquelas pessoas exteriorizam pela linguagem os seus
medos. O que poderá ter acontecido? O que vai acontecer?
O livro interessou-me, em
particular, pelo interesse de DeLillo pela física. Será que o cataclismo veio
do espaço? Martin, uma voz do autor, está obcecado por Einstein: andou a ler O
Manuscrito da Teoria da Relatividade de 1912, um resumo da teoria da
relatividade restrita que Einstein escreveu nesse ano. Começa, por isso, por falar
dessas rupturas do espaço-tempo que são os buracos negros. Refere um telescópio
no centro-norte do Chile que tem por objectivo mapear todo o céu visível que
está hoje em construção para ser inaugurado em 2022. Mas tudo isso são
mistérios.
O professor de Física declara
mais à frente: “Ninguém lhe quer chamar Terceira Guerra Mundial, mas é disso
que se trata”. O livro abre precisamente com uma frase de Einstein sobre essa
guerra: “Não sei com que armas se irá travar a Terceira Guerra Mundial, mas sei
que a Quarta Guerra Mundial se irá travar com paus e pedras”. Há muitas frases apócrifas
de Einstein a circular na Net. O meu “polígrafo” é o livro The Ultimate Quotable
Einstein (Princeton University Press, 2011): Uma frase semelhante foi, de
facto, dita por Einstein numa entrevista que deu perto do fim da vida, mas o
dito já circulava nessa época da guerra fria.
A tradução de Paulo Faria, que já
tinha traduzido seis outros romances de DeLillo, pareceu-me bem feita, embora
tenha falhas em termos científicos. Por exemplo diz-se “teoria da relatividade
restrita” e não “teoria especial da relatividade”. Diz-se “teorema da adição
das velocidades” e não “teorema adicional das velocidades”. Quase no fim, onde
está “Teoria Especial, datada de 2012”, fiquei sem perceber se há um erro do
autor, pois essa teoria é, de facto, de 1905.
Mas o livro não é sobre a
ciência, mas sobre o medo. Neste aparente fim do mundo, as pessoas falam de religião
(Einstein é mais uma vez citado, por ter referido a “figura luminosa” de Jesus).
Falam de experiências que tiveram, como uma visita às igrejas e palazzi de Roma. E pensam em
experiências que não tiveram, como é patente num flirt entre a professora
e o ex-aluno.
Terá o apagão uma origem
terrestre, por exemplo uma sabotagem da Internet? O normal para um americano é
culpar os chineses. Diz Martin: “Pode ser que um algoritmo tenha tomado as
rédeas. Os Chineses. Os Chineses veem o Super Bowl. Jogam futebol americano. Os
Beijing Barbarians. Juro que não estou a gozar. Quem faz figura de urso somos
nós, eles desencadearam um apocalipse selectivo da Internet. Estão a ver o jogo
e nós não.” Seja lá o que for as pessoas sentem-se órfãs da ciência e da
tecnologia. Diz Diane, em diálogo com Martin: “Todas as pessoas de olhos
pregados no ecrã ou sentadas como nós, perplexas, abandonadas pela ciência,
pela tecnologia, pelo bom senso”.
Uma funcionária do hospital que
atende Jim e Tessa expressa a vox populi: “Uma coisa vos digo. Seja lá o
que for que se passa, esmagou a nossa tecnologia. O mundo em si parece-me desactualizado,
perdido no espaço. Onde está o voto de confiança na fiabilidade dos nossos dispositivos
seguros, das nossas capacidades de encriptação, dos nossos tweets, trolls e bots?“ E
dá conta do seu medo: ”Gosto muito deste meu cubículo, mas não quero morrer
aqui.”
Por sua vez, Tessa profere um
monólogo filosófico: “Então e se nós não formos o que pensamos ser? E se o mundo
é aquele que conhecemos e estiver a ser completamente reorganizado no preciso
momento em que estamos aqui parados, a olhar, ou sentados, a conversar?”. E,
noutro passo, perguntando sempre: “O que nos está a acontecer? Quem nos está a
fazer isto? Os nossos cérebros terão sido remasterizados digitalmente? Seremos
uma experiência que, quis o acaso, está a correr muito mal, um esquema posto em
marcha por forças fora do alcance da nossa compreensão? Não é a primeira vez
que alguém faz estas perguntas. Os cientistas disseram coisas, escreveram coisas,
os físicos, os filósofos.”
Martin remata no fim: “O mundo é
tudo. O indivíduo não é nada. Será que todos entendemos isto?”
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