sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

O ESTILO É O PRÓPRIO HOMEM

 


Novo texto do escritor Eugénio Lisboa sobre George Orwell, desta vez contrastando estilo deste com o de Gonçalo M. Tavares, autor de um recente prefácio de "1984":


Le style est l’homme même.

Buffon, Discours sur le style


Ainda Orwell. Em vários órgãos da comunicação social, tem-se procurado, com justiça, assinalar o facto de as obras deste grande escritor terem passado para o domínio público. Ainda bem que assim foi: relembrar este intemerato campeão da liberdade e do pensamento claro e não mentiroso é sempre oportuno. Mas nem sempre a homenagem prestada foi certeira, isto é, algumas vezes foi até o oposto do que se visava. Por exemplo, num longo e penoso artigo, ocupando duas largas páginas e mais uma aparatosa coluna da revista do Expresso, o louvadíssimo, premiadíssimo e traduzidíssimo Gonçalo M. Tavares deu-se ao trabalho de celebrar o autor de 1984, fazendo, ao elogiá-lo, exactamente o contrário do que Orwell toda a vida recomendou. De facto, o aclamado e vilipendiado autor de Animal Farm sempre aconselhou que se tivesse como modelo a prosa limpa de Swift, onde não há uma palavra desperdiçada: uma prosa lúcida, bela na sua simplicidade, escorreita, directa, certeira, não rendilhada nem enredada, em suma, um potente veículo para transportar ideias. Gonçalo M. Tavares, pelo contrário, serve-se de uma prosa arrebicada, contorcida, pretensiosamente oracular, própria de uma pitonisa em elevado grau de intoxicação. Provincianamente cheia de palavras “técnicas” e muito sonoras que me fazem voltar a um delicioso “récit” de André Gide, com um título roubado a Molière: LÉcole des Femmes (A Escola das Mulheres). Nessa saborosa narrativa, sob a forma de um diário escrito por uma mulher, esta observa, a certa altura, que o seu pai gostava muito de polvilhar a sua conversa de palavras difíceis ou pouco habituais, como “habitat”, talvez para provar a si mesmo que não tinha medo delas. Tavares, no texto que agora nos ocupa, utiliza, intrepidamente, por bem mais do que uma vez, o termo “algoritmo”, para deixar bem claro, a si e a quem o lê, que a palavra o não amedronta. Mas, por acaso, deveria até intimidá-lo um bocadinho, o que o teria tornado mais cauteloso e o impediria de o empregar, desastradamente, a despropósito, tendo-lhe previamente investigado o significado. 

Orwell, como romancista, como jornalista, como extraordinário ensaísta, sempre deu o exemplo daquilo que aconselhava: uma prosa de cristal impoluto, uma prosa de uma beleza que se nutria de despretensão e muito devia a uma tremenda honestidade. Tavares, a pretexto de o elogiar, passa o tempo a traí-lo, com a sua prosa que parece bebida no que há de mais doentiamente obscuro numa certa filosofia alemã. Aquela filosofia que levava o acutilante Nietzsche a dizer que, sempre que via um alemão, mesmo a grande distância, se lhe atrasava a digestão. Na mesma ordem de pensamento, afirmava também, com acinte, que nunca um bebedor de cerveja ascenderia jamais à dignidade de um pensamento subtil. Mas Tavares parece seguir, obedientemente, tanto estes alemães que obstruíam a digestão fluente do autor de A Origem da Tragédia, como também os imoderados bebedores de cerveja, incapacitados de produzir subtileza. 

A prosa oracular, pretensiosa, indigesta e, por fim, provinciana, de Tavares, parece ser muito apreciada em certos meios lusíadas. Mau sinal, acho eu, para o estado mental da nossa grei. Por detrás de muita prosa pomposa, esconde-se muitas vezes uma enorme trapalhada. Bertrand Russell, grande lógico/matemático, denunciava, na aclamadíssima filosofia de Sartre, um mero e patético acervo de “extravagâncias linguísticas”. Tavares cultiva muito este universo de puras extravagâncias linguísticas. E, por favor, não me respondam com argumentos de autoridade, do género: ele é muito traduzido. Paulo Coelho e Barbara Cartland também o são. Qualquer bom oficial de relações públicas consegue milagres. 

Dizia Buffon que o estilo é o homem. Aconselharia, de bom grado, a Tavares, que não fosse o homem que o seu estilo inculca. Mude de estilo e seja, de caminho, outro homem. Leia a prosa lavada de Descartes, de Voltaire, de Stendhal, de Julien Benda, de Bergson, de Bertrand Russell, do admirável historiador inglês A. J. P. Taylor (cito quase ao acaso), de Benjamin Constant, de António Sérgio, de Sílvio Lima, de Antero, de Orlando Ribeiro… Deite fora a gordura e a caspa que lhe sujam o estilo. Deixe entrar sol na sua prosa e fuja do escuro insalubre das cavernas: nestas, tropeça-se e contraem-se doenças de cura difícil e demorada. Leia Orwell com olhos de ver e não como simples pretexto de pseudo-filosofar, no pior alemão que já se congeminou. Olhe que há outro alemão mais nobre e mais luminoso: o de Goethe, o de Schiller, o de Schopenhauer, o de Thomas Mann. Orwell detestava a prosa oracular, pastosa e obscura, boa para uso de tiranetes e charlatães. 

Resumindo muito, eu diria que a maior parte do que GMT escreve não se entende (e olhe que sou um leitor treinado) e o que se entende é pior. Para ser franco, nunca percebi bem se o que ele escreve é alemão arcaico ou volapuque, a língua que falava o Minotauro, com o qual Jorge de Sena quis tomar café em Creta. De qualquer modo, tudo quanto posso dizer é que, ao ler GMT, coloca-se entre mim e ele uma distância de vários algoritmos, tenha isto o significado que tiver, se é que tem algum, mas é, de certeza, uma enviesada homenagem ao estilo peculiar do autor de Viagem à Índia. O qual parece ter grande aceitação, junto de uma vasta camada de jovens lusíadas, que nada entendem do que ele diz mas têm fortes palpites de que aquilo seja profundo.

Eugénio Lisboa

2 comentários:

Unknown disse...

Eu já tentei ler GMT mas não consigo.
Como não sou muito treinada, pensava q o problema era meu.
Marta

Unknown disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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