O texto que abaixo transcrevo, escrito por Célia Mafalda Oliveira, presidente da Associação de Professores de Latim e Grego, abre o mais recente número do Boletim desta Associação (n.º 69, 2.ª série), que acaba de sair. Vale a pena lê-lo e retirar as devidas conclusões, num momento em que o "politicamente correcto" entra no currículo por onde pode e aí se instala, com consequências nefastas em várias áreas do conhecimento, nomeadamente na Literatura.
A nível da Cultura [em 2020] houve uma polémica que transbordou na imprensa e nas redes sociais: o cânone (literário). Muitos se questionaram, mais uma vez, de qual deve ser o verdadeiro cânone. Tal reacendimento foi trazido (...) pela publicação de O Cânone, com edição de António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen.
Escolhas, quiçá polémicas, fazem com que farpas tenham sido lançadas em distintos níveis de língua. Todavia o mais importante foi ter sido reacendida a temática em torno de literatura, leitura, escrita, autor e demais elementos relacionados.
Ora, essa publicação fez-nos recordar O Cânone Ocidental, de Harold Bloom (1997), livro que distingue os grandes livros e os escritores essenciais de todos os tempos (...). Bloom, à data da primeira publicação, professor de literatura na Universidade de Yale, entendeu ser necessário assumir-se contra o “mundo instruído” (pág. 10) em que os estudos literários eram ameaçados por “uma pura anarquia” prestes a ficar à solta. Referia-se ao contexto específico da vida cultural americana, com o seu agente principal na(s) universidade(s), os intelectuais dominados pelo “Politicamente Correto”, os “Roedores académicos” (academic lemmings off the cliffs). Sempre arrojado e sem receio de criar antipatias literárias, afirma, de forma muito convicta, o seguinte (pág. 43):
“Ler ao serviço de qualquer ideologia não é, em minha opinião, ler. A receção do poder estético torna-nos capazes de aprender a falar com nós mesmos e a nos suportarmos a nós mesmos. O uso autêntico que devemos fazer de Shaskespeare ou de Cervantes, de Homero ou de Dante, de Chaucer ou de Rabelais, é aquele que leva a expandir o eu mais interior de cada um. Ler o Cânone em profundidade não fará de alguém uma pessoa melhor ou pior, um cidadão mais útil ou mais nocivo. O diálogo que a mente mantém consigo mesma não essencialmente uma realidade social. Tudo aquilo que o Cânone Ocidental pode trazer a alguém é a própria solidão desse alguém, aquela solidão cuja forma final é o confronto de cada um com a sua própria mortalidade.”
Interessante e verdadeira a sua ideia de que se possuímos o Cânone é porque somos mortais, e também porque chegámos razoavelmente tarde (referindo-se ao séc. XX). Chega até a deixar a “prova real” para o leitor (pág. 43):
“Continua terrivelmente válido um antigo teste para encontrar o canónico: se a obra não pede releitura, então ela não possui os requisitos necessários.”
E é nesse jogo de referências intertextuais que encontramos os nossos autores clássicos: Homero, Hesíodo, Píndaro, Sófocles, Aristófanes, Platão, Aristóteles, Lucrécio, Virgílio, Horácio, Ovídio e Plutarco. Já no apêndice dedicado à Idade Teocrática, realça que não se encontram ali muitas das obras de grande valor pertencentes às literaturas grega e latina, justificando que “é pouco provável que o leitor comum tenha tempo para as ler” (pág. 517). Da sua eleição, elenca autores e algumas das suas obras (que prescindo de enumerar a fim de vos seduzir para a (re)leitura deste Canône de Bloom.
No que diz respeito aos autores, segue-se a enumeração: os Gregos Antigos (Homero, Hesíodo, Arquíloco, Safo, Álcman; Píndaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, Heródoto, Tucídides, os Pré-Socráticos: Heraclito e Empedócles, Platão e Aristóteles), os Gregos do Período Helenista (Menandro, Longino, Calímaco, Teócrito, Plutarco, Esopo, Luciano), os Romanos (Plauto, Terêncio, Lucrécio, Cícero, Horácio, Pérsio, Catulo, Virgílio, Lucano, Ovídio, Juvenal, Marcial, Séneca, Petrónio, Apuleio), a Idade Média (Santo Agostinho).
Desengane-se o leitor se julga que os “aconselhamentos” de leitura ficam só por este editorial. Num tempo de dicotomias assaz marcantes (certeza/incerteza, proximidade/distância, amor/desamor, saúde/ doença), a leitura é uma excelente parceira qualquer que seja o suporte escolhido! Dir-me-ão que estas dicotomias são de todos os tempos! Claro! São-no, com certeza! Mas este é o nosso tempo!
Que, em 2021, continuemos esperançosos na Educação e na Vida, capazes de revisitarmos as origens clássicas, lendo e relendo!
Célia Mafalda Oliveira
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