Tenho uma boa colecção de banda
desenhada e ela ficou há semanas enriquecida com a adição de uma obra muito original.
Intitula-se “Einstein, Eddington e o
Eclipse Impressões de Viagem,” são suas
autoras Ana Simões e Ana Matilde Sousa e a editora é a Associação Chili com Carne,
uma cooperativa de jovens artistas fundada em 1995.
A maior originalidade está no tipo de obra:
Não é uma mera banda desenhada, pois inclui um ensaio de história da ciência,
de Ana Simões, estando tanto o texto da banda desenhada como o do ensaio em
português e em inglês (o que lhe amplia bastante
o potencial público leitor). A banda desenhada, de Ana Matilde Sousa, está inserida
entre o ensaio em português e a sua tradução em inglês: vai da p. 63 à 194 de
um total de 247 páginas. O ensaio e a competente ilustração aos quadradinhos descrevem
um dos eventos mais emblemáticos da ciência do século XX: o eclipse total do
Sol que ocorreu a 29 de Maio de 1919, observado por uma expedição de astrónomos
britânicos com uma equipa na ilha do Príncipe, no Golfo da Guiné, que nessa
época era um território colonial português, e outra equipa no Sobral, Ceará, no
Nordeste brasileiro, do outro lado do Atlântico. Essas observações permitiram
confirmar a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, elevando-o ao patamar de Isaac Newton, um físico
cuja mecânica só em parte se encaixava na mecânica relativista, falhando no
domínio das grandes velocidades e dos campos gravitacionais muito intensos. Segundo
Newton, os raios de luz de estrelas por detrás do Sol, encurvar-se-ia ao passarem
perto da superfície do Sol de um certo valor, mas segundo Einstein o valor
correcto deveria ser o dobro. Só com o Sol tapado se poderia observar tal
encurvamento.
Foi com o apagamento do Sol observado
pelos astrónomos ingleses – com o famoso Arthur Stanley Eddington na equipa do Príncipe
- que Einstein ganhou as luzes da ribalta no mundo científico e não só. Como já
alguém disse, o Príncipe foi o princípio de Princeton, a Universidade
norte-americano onde Einstein haveria de ser professor. O Nobel seguir-se-ia
logo em 1921, embora não tenha sido atribuído por aquela sua teoria. Mas logo
depois do anúncio público dos resultados da expedição britânica, em Novembro de
1919, o físico suíço (nascido na Alemanha) ganhou um enorme reconhecimento
mediático, que é exemplificado pela escolha da revista “Time” no ano 2000 como
a “pessoa do século.” Quis a fortuna dos astros que um feito maior da Física do
século XX tivesse sido verificado em terras de expressão portuguesa. Einstein, quando visitou o Brasil em Março de
1925 (passando, embora despercebido, por Portugal), afirmou a um repórter
brasileiro, esquecendo o Príncipe, talvez por simpatia para com o seu
interlocutor: "O problema que a
minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil."
O livro
tanto pode ser visto como um ensaio científico com um longo apêndice que mostra
o texto integral de fontes históricas ilustrados com um estilo impressionista
moderno (a palavra “impressões” do subtítulo foi bem agarrado pela artista)
como pode ser visto como uma bela obra de arte, salpicada de cores fortes, que é
complementada em prefácio e posfácio por uma explanação do “enredo.” Ana
Matilde de Sousa apenas usa nos seus “balões” (de facto não são redondos, mas
rectangulares, amarelados à laia de post-its) textos escritos pelos
intervenientes, incluindo algumas cartas de Eddington à sua mãe. Por fezes não
são precisas palavras, como no ápice que é a representação do eclipse nas páginas
160-161. Einstein, cujo nome abre o título, só aparece - e de costas – nas páginas 175 e 188. A capa, em tons azuis, negros e
brancos é magnífica: uma tartaruga – elas vêm desovar às praias do arquipélago
de S. Tomé e Príncipe – busca a claridade, como que uma lua que se interpõe
diante do Sol.
A dupla
das duas Anas contrasta pela idade, indicada na pormenorizada ficha técnica. Não é apenas um encontro de ciência e arte,
mas um encontro de duas gerações. Enquanto Ana Simões é catedrática na Faculdade
de Ciências da Universidade de Lisboa e, desde 2018, presidente da Sociedade Europeia
de História das Ciências, a outra Ana é doutoranda na Faculdade de Belas artes da
mesma Universidade, estando a estudar um tema do moderno design japonês. A talentosa artista não é a primeira vez que ilustra
obras de história da ciência: embora com distribuição restrita já tinha feito
um livro para um público infanto-juvenil sobre o médico português Garcia de
Orta, que foi distribuído pelas criança do Hospital Garcia de Orta (Ana Matilde
de Sousa; Maria Paula Diogo e Palmira Fontes da Costa, consultoras científicas,
“As Aventuras de Garcia de Orta”, Lisboa: Colibri, 2014).
Além da notável
originalidade da junção de dois registos – um científico e outro artístico,
neste caso a história da ciência casa-se com a “nona arte”, que costumam andar apartados, - a obra é também original
pela sua rara qualidade. O ensaio, que
foi pensado tendo em conta leitores desconhecedores da matéria, sendo claro, é absolutamente rigoroso, indicando as fontes para
os factos relatados (não tem notas de rodapé, mas sete páginas de notas
finais). Na banda desenhada, delimitada
pelos registos epistolares ou diarísticos, a imaginação já voa, mas o registo não
deixa de ser rigoroso: vê-se que a artista se procurou documentar sobre os
cenários que descreve visualmente, tendo consultado o material fotográfico disponível.
Fugindo ao realismo, faz-nos entrar na atmosfera da época.
O volume é original pela qualidade da produção.
A Chili com Carne, beneficiando dos patrocínios recebidos, esmerou-se. Não é só
a capa, mas todo o miolo que atrai a vista e o tacto. O papel é bom, assim como o design geral e a impressão. Eu
já tinha alguns dos livros da colecção de viagens “Low Cccost”, assim mesmo com
c triplo, da Chili com Carne (destaco os dois últimos “Deserto/Nuvem,” sobre a Cartuxa
de Évora, e “Berlim, Cidade sem sombras”, respectivamente de Francisco Sousa Lobo e de Tiago Baptista;
pena que que a editora no final, na p. 247,
não tivesse indicado os nomes dos autores). O formato de obra em apreço é
especial, maior do que as outras, o que valoriza sobremaneira as ilustrações. Não me admirou nada que tivesse atribuído o Prémio de
Melhor Publicação Nacional com Distribuição Comercial, uma das categorias dos
Prémios Banda Desenhada 2019, atribuídos pelo site português “Bandas
Desenhadas”. Bem merecido, mas a obra merece decerto uma distinção internacional.
Bons olhos a vejam…
O
livro saiu pela altura do centenário do eclipse, estando relacionado com uma exposição
que Ana Simões organizou no Museu Nacional da História Natural e da Ciência, na Rua da Escola
Politécnica, no centro de Lisboa. Vários livros saíram em todo o mundo por
ocasião desta efeméride, não só porque o tema é aliciante, mas porque há sempre
novas contribuições a dar: como irrompe uma prova de uma previsão científica? No
caso a comunidade científica quis ter redundância (observações simultâneas no Príncipe
e no Sobral, o que se revelou útil dado o surgimento de uma chuvada tropical no
primeiro sítio à hora do eclipse que quase impediu o registo fotográfico), mas
que confiança deve dar uma prova, baseada em observações singulares? Que papel
desempenham as convicções dos protagonistas? No caso parece evidente que
Eddington pendia à partida para o lado de Einstein. Há aqui aspectos humanos muitos
curiosos, que aliás costumam estar presentes nos grandes momentos da história
da ciência. Por exemplo, pode o preconceito conduzir a erros?
Ana Simões,
que aborda tanto o Príncipe como o Sobral (a mesma expedição dividiu-se na ilha
da Madeira), mas enfatiza o que se passou na ilha do Príncipe, uma vez que
parte dos relatos de Eddington e este é tomado como personagem principal (era,
de resto, o mais categorizado dos astrónomos expedicionários). Não se esquece
de referir as ideias quakerianas de Eddington, que lhe valeram a não participação
na Primeira Guerra Mundial, mas também o “cacau escravo” do Príncipe (isto é, o
cultivo de cacau nas roças, aproveitando de modo indigno mão de obra negra). Sobre a realidade
colonial portuguesa, Eddington faz prudente silêncio: não quereria decerto
desagradar aos seus hospedeiros. Há aspectos muito pitorescos: nas cartas à mãe,
o astrónomo inglês fala das suas experiências gastronómicas na ilha da Madeira (incluindo
a ingestão de bananas, uma dúzia ao dia, e de nêsperas, fruta que ele nunca
tinha provado), da ida ao casino no Funchal para ver o jogo de roleta, que era
ilegal, do jogo de ténis e da caça aos macacos na ilha do Príncipe, etc. Eddington
escreveu à mãe, após o eclipse: “Mas a placa melhor que medi deu um resultado em concordância
com Einstein e acho que consegui uma pequena confirmação de uma segunda placa.” Einstein,
por seu vez, também escreveu à mãe, todo
contente, logo que soube da boa nova da confirmação da sua teoria: “Boas
notícias hoje… as expedições britânicas provaram de facto a deflecção da luz
nas proximidades do Sol.” Assim se vê como as mães dos cientistas podem ser testemunhas
relevantes: nos dois casos foram as duas as primeiras interlocutoras.
Einstein
usava muita vez Deus como sinónimo de harmonia do Universo. Há quem diga que
professava uma “!religião cósmica”, da qual ele seria o único fiel. Ana Simões não o refere, mas Einstein terá respondido
a uma doutoranda em Berlim, Ilse
Rosenthal-Schneider, quando ela lhe perguntou o que diria se os resultados das
observações tivessem sido negativos: “Nesse
caso teria tido pena do Bom Deus. A teoria está correcta de qualquer modo.”
Ana Simões
já escreveu vários artigos o evento que celebrizou Einstein. Em 2009, publicou
um em que falava da participação portuguesa. Essa participação, como fica agora
mais uma vez claro, não passou de uma assistência logística. Neste novo ensaio,
a autora faz notar que os expedicionários
do Príncipe fazem agradecimentos mais pessoais que institucionais, como se as
autoridades científicas portuguesas estivessem ausentes (há correspondência
anterior, de preparação, mas não parece haver correspondência posterior, partilhando
a experiência). A mim sempre me preocupou
o eclipse da ciência portuguesa que o eclipse solar de algum modo simboliza.
Não só Einstein não foi reconhecido em Lisboa, mesmo após ter já recebido o Nobel,
como, ao contrário do que aconteceu no Brasil, não houve cientistas portugueses
que tenham acompanhado a expedição á colónia portuguesa. Eram muito poucos os
cientistas nacionais na época, assim como eram muito poucas as suas publicações
(basta consultar as bases de dados internacionais para perceber que a ciência portuguesa
pedia meças às da maioria dos países europeus). Pelo contrário, no Brasil houve
uma forte presença institucional. Os expedicionários britânicos no Sobral beneficiaram
bastante da ajuda de um astrónomo de origem francesa, Henrique Morize, que era director
do Observatório Nacional e Presidente da Academia das Ciências do Brasil (nascido
em França, Morize, engenheiro de formação, naturalizou-se brasileiro aos 24
anos, após se ter fixado em terras de Vera Cruz). A professora de História da Ciência
não elabora muito sobre o quadro científico português da época. A ciência estava
relativamente apagada nesses tempos difíceis após o assassinato de Sidónio Pais
(que era professor de Matemática em Coimbra e amigo de Egas Moniz, que chamou para cargos diplomáticos).
Uma nota
final de elogio, para um tom que a historiadora assume: a de história global. Como
se pode ver pelo mapa que vem na badana da capa, este foi um evento que teve
lugar em três continentes. Lisboa e o Funchal estiveram no caminho entre a
Inglaterra e os dois lados do Atlântico, o Príncipe e o Sobral. O papel português
teve muito a ver com o seu posicionamento no globo. Não era a primeira vez que
isso acontecia: no século XIX, quando a globalização se deu através do
telégrafo eléctrico, a Madeira, Cabo Verde e os Açores foram importantes nós de
tráfego de dados no Atlântico (como Ana Simões de resto refere; é bem conhecido,
que Lord Kelvin andava a instalar cabos no Atlântico e 1873 quando encontrou no Funchal
a que viria a ser Lady Kelvin). E, no século XX, foi a localização privilegiada
dos Açores para a previsão meteorológica na Europa que permitiu à criação de
uma Estação Meteorológica Internacional no Faial, em 1929, a pedido das instâncias
meteorológicas europeias. Para já não falar do facto de ter sido pela Madeira
que passaram as duas expedições pioneiras ao pólo Sul em 1910, as do inglês Robert
Scott e do norueguês Roald Amundsen, este último vencedor.
Portugal pode estar na periferia da Europa, mas em certas ocasiões foi central para a ciência mundial.
Portugal pode estar na periferia da Europa, mas em certas ocasiões foi central para a ciência mundial.
Em resumo. Se o leitor não tiver este livro não saberá o
que perde. Mas eu sei: perde conhecimento precioso do que é para muitos o evento
mais notável da história da ciência no século e perde também uma obra de arte da
BD nacional. Parabéns às duas Anas!
- Ana Simões e Ana Matilde Sousa, “Einstein, Eddington e o Eclipse Impressões de
Viagem”. Lisboa: Chili com Carne, 2019.
1 comentário:
https://www.youtube.com/watch?v=gMBc10eatKs
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