terça-feira, 26 de março de 2019

"Trazemos de certo modo a teoria quântica no bolso"

Minha  entrevista a BEATRIZ DIAS COELHO beatriz.coelho@ionline.pt que saiu ontem no jornal I:

 No dia 13, um artigo publicado na revista Scientific Reports, "Arrow of time and its reversal on the IBM quantum computer", ultrapassou as fronteiras da comunidade científica e originou um mar de títulos apelativos na imprensa: o britânico Independent, por exemplo, escreveu "Cientistas 'invertem o tempo' com um computador quântico num estudo inovador" (Scientists 'reverse time' with quantum computer in breakthrough study). O i quis saber se foi de facto assim e Carlos Fiolhais prontificou-se a esclarecer a questão. "Há uma lei da física- a Segunda Lei da Termodinâmica - segundo a qual é impossível voltar ao passado", refutou o físico. A conversa foi além da polémica e estendeu-se ao percurso do fisico e à física quântica em geral.

 Os investigadores conseguiram de facto fazer o tempo voltar atrás? 

Não, não fizeram uma viagem no tempo. Tanto quanto sabemos, e apesar de muitas especulações, é impossível voltar para trás no tempo. Há uma lei da física - a Segunda Lei da Termodinâmica - segundo a qual é impossível voltar ao passado. Nessa lei surge uma grandeza física - a entropia - que, num sistema isolado, é sempre maior no futuro do que no passado. De resto, as viagens no tempo implicam problemas lógicos, como o paradoxo que consiste em evitar que o pai e a mãe se enamorem um do outro... Eu sei que desde o romance A Máquina do Tempo de H. G. Wells há muitas obras de ficção científica sobre o tema, mas a ciência não permite concretizar nenhum desses enredos. Modernamente, há quem fale em viagens no espaço-tempo no cosmos através dos chamados "buracos de minhoca", mas as condições para cavar esses buracos parecem impraticáveis. No artigo em causa, uma colaboração entre russos, americanos e suíços, o que se fez foi uma simulação do recuo no tempo de um eletrão realizada num computador quântico. Mas é uma só partícula e tratou- se de um cálculo. Para uma só partícula a diferença entre passado e futuro não existe. A teoria quântica mostra reversibilidade no tempo. Não foi violada qualquer lei da Física.

 Falou sobre "buracos de minhoca". O que são? 

 São túneis ou atalhos no espaço-tempo. Exigem concentrações tremendas, impraticáveis, de matéria ou energia (segundo Einstein equivalentes), que deformam o espaço-tempo. O filme Contacto, com Jodie Foster, explorou o assunto.

 O que significa fazer o tempo voltar para trás num computador de fisica quântica?

 Um computador quântico em vez de bits (zeros e uns nos registos) usa "qubits" [bits quânticos], que podem ser sobreposições de zeros e uns. Na teoria quântica os estados podem ser de sobreposição: como no famoso "gato de Schroedinger", que só existe na imaginação, que pode estar vivo e morto ao mesmo tempo. Um eletrão num átomo pode estar num estado que é a sobreposição de dois estados de energia diferentes, por exemplo o estado fundamental e o primeiro estado excitado. Os computadores quânticos, ao contrário dos clássicos, executam processos reversíveis. Nesta simulação, realizada num computador quântico da IBM de acesso público na Internet, foi calculado o comportamento de um eletrão em sistemas de dois e três qubits. Existe um grande controlo do sistema. O sistema evoluiu na simulação num certo sentido temporal e, depois, por adequada manipulação, fez-se regressar ao estado inicial.

 Que importância tem esta experiência? 

 Não é uma viagem no tempo, mas tem interesse teórico. Pode até ter interesse prático, pois um dos problemas dos computadores quânticos é que eles têm de estar num ambiente muito frio e isolados do exterior. Qualquer interação com o exterior prejudica a irreversibilidade, de modo que o algoritmo agora usado poderá servir para detetor de erros devidos a indesejada interação com o exterior. Note-se que a teoria quântica é probabilista, pelo que foram feitas várias experiências. No sistema de dois qubits conseguiu-se reversibilidade em 85% dos casos e no sistema de três qubits apenas em 50%. Quanto maior for o sistema, mais difícil se torna assegurar a reversibilidade do processo.

 É possível a partir daqui pensar na possibilidade de fazer o tempo realmente voltar para trás? 

 Acho que não... Tenho muita pena, nem a teoria quântica nem os computadores quânticos fornecem esse sonho humano que é voltar para a juventude.

 Como definir a física quântica para quem não está dentro do assunto? 

 A física quântica é a teoria que descreve o comportamento de sistemas em pequena escala, como eletrões, protões, núcleos atómicos, átomos, moléculas, etc. Apesar de se referir ao microcosmos, tem consequências à nossa escala - por exemplo, o fenómeno do magnetismo tem uma origem quântica - e até à escala cósmica - o nosso Sol vai acabar numa "anã branca", uma estrela estabilizada por um efeito quântico.

 De que forma é que a fisica quântica nos ajuda no dia a dia? 

 De facto, na nossa sociedade a teoria quântica já está ao serviço das nossas vidas: é usada nos transístores, que estão por todo o lado nos telemóveis, computadores convencionais, em equipamentos médicos como a ressonância magnética, etc. Trazemos de certo modo a teoria quântica no bolso. A sociedade global onde a informação circula à velocidade da luz ou quase está inteiramente assente nessa teoria, que surgiu há mais de cem anos.

 É um dos fisicos mais conhecidos por cá. O que o levou a escolher a fisica? 

Entusiasmou-me, quando era jovem - quero dizer; quando era mais jovem -, a aventura do conhecimento. Tive ótimos professores, mas julgo que escolhi a fisica pelos livros de divulgação científica que li em adolescente, como os de Rómulo de Carvalho, professor de fisica que escrevia poemas com o nome de António Gedeão. Essa foi uma das razões pelas quais criei há dez anos - foi no passado, não posso lá voltar! - o Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, que é basicamente uma biblioteca da cultura científica. Uma porta de entrada na ciência.

 Ao longo da sua carreira, o que destacaria do trabalho que tem vindo a desenvolver? 

 Fiz bastantes trabalhos em Física Nuclear primeiro e depois em Física da Matéria Condensada, usando sempre a teoria quântica, pois esta descreve tanto os núcleos como os sólidos. Tenho um artigo que tem mais de 18 mil citações, o que significa que houve mais de 18 mil artigos que o utilizaram. Também tenho trabalhado sobre a História da Ciência, em particular a História da Ciência em Portugal. E tenho procurado levar a ciência às pessoas, ao maior número de pessoas: seja através dos livros (escrevi até hoje mais de 60), seja de revistas e jornais, da rádio e da televisão e através da Internet. Para já não falar das muitas palestras em que falo, as últimas foram sobre computação quântica na Academia da Força Aérea e sobre a música de Holst, "Os Planetas", com a Orquestra Metropolitana de Lisboa no Instituto Politécnico de Leiria. 

Em que projetos está envolvido de momento?

 Oriento alguns doutorandos em História da Ciência. Estou a trabalhar com o historiador José Eduardo Franco num grande projeto editorial, "Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa", no Círculo de Leitores, formada por 30 volumes, onde se reúnem as primeiras obras sobre qualquer assunto escritas de raiz em português: por exemplo o primeiro livro de física, o primeiro livro de botânica, etc. Dirijo a coleção "Ciência Aberta" da Gradiva, onde tenho dado voz a cientistas portuguesas. No Rómulo tenho vários projetos em curso: o mais inovador é uma escola dentro da Universidade, que permite aos alunos do 4.º ano do concelho de Cantanhede passarem uma semana em Coimbra. Também lancei o Rómulo Digital, que disponibiliza na Internet muitos documentos da história e divulgação da ciência. Tem vários livros no currículo, através dos quais divulga ciência.

 De onde vem esse gosto?

Li e leio muitos livros. Sou um comprador de livros compulsivo, chego a comprar livros que já tenho. Já disse depois de conferir na estante: "É tão bom que eu já o tenho, vou dá-lo ao Rómulo..." Gosto de falar dos livros como "máquinas do tempo", porque eles trazem até ao presente mensagens dos nossos antepassados. Se escrevermos livros, teremos futuro, porque, mesmo que seja daqui a muitos anos, é possível que alguém nos venha a ler. Ler um autor é escutá-lo, como se ele estivesse a falar só para nós, ainda que o autor esteja morto há muito tempo. Para quem escreve é uma viagem ao futuro, para quem lê é uma viagem ao passado.

 Porquê divulgar ciência?

 A ciência não é dos cientistas mas de todos. É não só importante divulgar ciência como imprescindível. A aventura do conhecimento é de toda a humanidade, pelo que é obrigação dos cientistas entregarem a todos o que conseguem saber. Sem a apropriação da ciência pela sociedade seria impossível haver um sistema  científico e tecnológico. Sem ciência e tecnologia estaríamos mais pobres. Mais pobres culturalmente, porque a ciência é uma forma de cultura. Mas mais pobres materialmente, porque não teríamos nem computadores nem equipamentos médicos nem nada... Entre nós, o Ciência Viva, que tenho apoiado desde o início, tem feito alguma coisa, mas pode-se fazer muito mais e muito melhor.

 A tabela periódica faz este ano 150 anos. O que seria de nós sem ela? 

É uma ferramenta indispensável? A tabela periódica que celebramos este ano resume a nossa informação sobre os átomos que formam o mundo, incluindo nós próprios. É uma síntese notável, tal como a síntese de Newton entre os movimentos na Terra e os movimentos no céu, que nos permitiu há 50 anos ir à Lua, ou a síntese de Darwin entre todos os seres vivos, antigos e atuais, integrando-os numa grande árvore de que somos parte. Na tabela periódica estão os primeiros 118 elementos químicos - poderemos descobrir mais, embora os elementos mais pesados sejam instáveis. A tabela periódica cabe numa folha A4 porque os núcleos mais pesados se desintegram. A teoria quântica explica por que razão a tabela é periódica: tem a ver com a arrumação dos átomos em níveis de energia.

 E o átomo, é mesmo a base de tudo, como se costuma dizer?

 Sim, os átomos são os blocos organizados do mundo material. Tudo na Terra é feito de átomos. Nós por exemplo somos essencialmente oxigénio, carbono, hidrogénio e nitrogénio. O nosso corpo tem, em massa, 65% de oxigénio, 19% de carbono, 10% de hidrogénio e 3% de nitrogénio. O resto - cálcio, fósforo, etc. - são só uns pozinhos. Já agora: o nosso oxigénio e o carbono foram feitos nas estrelas, nós somos "filhos das estrelas". Essa ligação entre a Terra e o cosmos é uma das grandes lições da Fisica Moderna, da qual a teoria quântica faz parte.

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...