Imagem recolhida aqui (GETTY IMAGES) |
Imagine um país onde, para poder fazer um seguro, matricular um filho numa escola privada ou comprar um bilhete de TGV, o cidadão vê a sua vida escrutinada ao mais ínfimo pormenor.
Os sítios de internet que consulta, o que faz nos tempos livres, como se saiu nos exames médicos, que jornais compra, como se comporta ao volante, se costuma dar sangue - tudo é levado em linha de conta na hora de autorizar ou rejeitar o pedido. Esse país já existe - é a República Popular da China - e essa forma de intrusão cívica está em acelerada concretização, através do Sistema de Crédito Social, um mecanismo de pontuação dos cidadãos que ora os recompensa ora os penaliza em função de comportamentos.
Muitas horas a jogar no computador podem rotular alguém de ocioso. Se atravessar a rua fora das passadeiras pode passar por indisciplinado. Já comprar artigos para bebé contribui para uma imagem responsável. Andar a pé indicia hábitos saudáveis. E há que ter cuidado com os amigos das redes sociais: maus exemplos podem prejudicar quem apenas os tem na lista. A Baihe, maior plataforma chinesa de encontros, já permite que os utilizadores publiquem a sua pontuação. A aplicação Honest Shanghai, onde são avaliadas experiências - como comer num restaurante caro, por exemplo -, já usa tecnologia de reconhecimento facial.
De iniciativa governamental, este projeto ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da chamada China Continental - para já, Macau e Hong Kong ficam de fora.
Este tipo de controlo - efetuado por agências estatais e por empresas privadas - não é uma inovação da liderança de Xi Jinping. No passado, cada cidadão tinha um ficheiro pessoal permanente (dang’an) que descrevia todo o seu percurso, nomeadamente a nível escolar e profissional. Hoje, a mais-valia é a tecnologia e «a capacidade de analisar grandes quantidades de dados em todo o país de uma forma mais holística e rápida», explica Meia Nouwens. «Ainda não existe um sistema nacional único - é uma tarefa muito grande. Mas está decerto a ser testado».
Em várias localidades chinesas, há programas-piloto a serem experimentados. Um dos laboratórios é a cidade de Rongcheng, na ponta leste da China. A cada um dos 740 mil residentes adultos é atribuído um crédito de 1000 pontos, que vai aumentando ou diminuindo consoante o seu comportamento. Uma multa de trânsito desconta cinco pontos. Atos heróicos acumulam 30 pontos. Na via pública, há retratos enormes dos ‘cidadãos-modelo’.
Um deles é a viúva Yuan Suoping, de 55 anos, que continuou a cuidar da sogra acamada após a morte do marido. Em Shenzhen, no sul, há câmaras de vigilância com tecnologia de reconhecimento facial que identificam, por exemplo, peões que atravessam as ruas fora das passadeiras. Instantaneamente, são enviadas multas por mensagem. A tecnologia é desenvolvida pela startup local Intellifusion.
Na aldeia de Jiakuang Majia, no Leste, a pontuação é gerida de forma mais artesanal. Há fichas em papel onde funcionários do Estado vão fazendo contas: montar novos cestos no campo de basquetebol, oferecer uma televisão ao centro cívico, fazer voluntariado ou ter um filho a servir no Tibete dão pontos. A nível nacional, este sistema já deixou em terra 5,4 milhões de chineses que pretendiam viajar em comboios de alta velocidade. Outros 17 milhões foram impedidos de comprar bilhete de avião.
Em 2013, a justiça chinesa aprovou uma «lista negra» de devedores e estima-se que seja esse ranking que esteja na origem dessas proibições. Para Pequim, há que promover a confiança na sociedade e na economia. Samantha Hoffman faz outra leitura: «O crédito social está ligado ao conceito de ‘construção espiritual da civilização’. A sua origem remonta à propaganda dos anos 1980 em resposta à desilusão popular com o PCC e à atração por ideias estrangeiras». O objetivo é «impedir que versões alternativas da ‘verdade’ ameacem o poder do partido»
«O Sistema de Crédito Social não é ficção científica, existe realmente», diz ao Expresso a investigadora Meia Nouwens, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres. «Através dele, uma grande quantidade de informação pessoal, registos, geolocalização com recurso a câmaras e check-ins, transgressões da lei ou maus comportamentos diminuem a pontuação de um indivíduo. Nalguns casos, as pontuações decorrem de registos, noutros são calculadas por algoritmos, embora não haja transparência em relação à forma como os algoritmos fazem os cálculos.»
«A melhor forma de descrever o que o crédito social faz é dizer que é uma forma de tecnologia aumentada de ‘gestão social’», diz Meia Nouwens.’
«O crédito social é uma ferramenta que torna o controlo político do Partido Comunista Chinês [PCC] inseparável do desenvolvimento económico e social da China», explica ao Expresso a analista de política chinesa Samantha Hoffman, colaboradora do Instituto Australiano de Políticas Estratégicas. «Foi planeado para supervisionar, moldar e classificar comportamentos através de processos económicos e sociais.»O Ocidente está muito distante desta realidade? Não, não está.
Podemos fazer alguma coisa? Sim, podemos.
E são os educadores, com destaque para os professores, que mais podem fazer alguma coisa.
De resto se não forem eles, quem o fará?
E como o poderão fazer? Robustecendo os alunos em termos cognitivos, com base em conhecimento escolar. Refiro-me ao conhecimento, organizado em disciplinas, que a humanidade construiu e que dá conta do progresso civilizacional, não obstante todas as dificuldades, contrariedades e, até, retrocessos que bem sabemos. Daí a importância de a instrução (apropriação do conhecimento e desenvolvimento de capacidades que lhe estão associadas) se aliar à formação (apropriação dos valores éticos fundamentais e condução da acção em função deles). Isto não é ideologia nem doutrinamento é educação. Se quisermos, educação do cidadão, daquele que vive com outros, que co-existe e que assume a responsabilidade disso mesmo.
Ainda que os leitores saibam que o "direito à vida privada" está consagrado na Declaração Universal do Direitos Humanos e na Constituição da República Portuguesa, reproduzo abaixo alguns dos seus artigos, apenas para recordar as suas palavras, as quais não devem sair da nossa cabeça.
Declaração Universal do Direitos Humanos
Artigo 12.º - Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação (...)
Artigo 26.º - 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.
Constituição da República Portuguesa
32.º - São nulas todas as provas obtidas mediante (...) abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.
35.º - A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.
8 comentários:
Assim compreendo porque em tantos sítios nos pedem a identidade, como para entrar numa estação de metro, pontos turísticos, etc. apesar de ter gostado muito de visitar o país em novembro passado.
Não andamos quase todos a pedir mais transparência?!
Está enganado! Tem que haver transparência nas camadas do poder!, não nas do cidadão comum!
Transparentes são os vidros!...
Barómetros também há muitos, mas os verdadeiros só servem para medir a pressão atmosférica!
Outrora, estas coisas ensinavam-se na escola. Agora já não, porque os filhos da classe operária sairiam amplamente prejudicados no confronto competitivo pelas notas, com os filhos da burguesia, habituados, desde a mais tenra infância, a lidarem com quantias avultadas de papel dinheiro. A solução, economicamente mais viável, é retirar o ensino e a aprendizagem das escolas, mantendo nos seus lugares os alunos, ricos e pobres, e os professores pobres!
Está enganado! Nem todos os vidros são transparentes.
E o termo barómetro tem várias aceções (os preguiçosos continuam a escrever com "p")!
Não percebi o resto da sua algaraviada. Imagino que seja professor e com ideologia bem vincada.
Tenha uma boa semana.
No fundo o que nos pedem é que eduquemos para termos seres altamente submissos e acabem por acharem normal vir a ter um chip, muitos dos professores de TIC nem acham mal, é o progresso, o futuro. Eu coloco a pensar e à luz das leis levo-os a questionar o uso dos cartões que registam tudo o que fazem dentro da escola, as câmaras de vigilância que nos dão uma falsa sensação de segurança, os perigos da internet e dos dados.
Não é por acaso que a História está reduzida a algo parecido com a engorda de patos para "foi gras".
Estou-me nas tintas, levo o programa ao ritmo dos alunos, explico-lhes os sistemas comparo-os, levo-lhes noticias actuais para compararem com documentos de outras épocas.
Hoje a aula era sobre o New Deal falei-lhes também , por comparação do actual Green New Deal e as propostas de Bill Gates para os impostos sobre a riqueza . Do mesmo modo que falo do TTIP ou da Greta Trunberg e a necessidade de também eles se empenharem na defesa dos seus interesses.
Se a História não servir para fazer cidadãos críticos e actuantes serve para quê? E, por favor, acabem com a tal de Cidadania e Desenvolvimento que é um embuste feita por qum não tem a mais pálida ideia para que serve a História,além de muitos dos que a leccionam CD nem sabem o que andam a fazer. Devolvam esse tempo à História!
Talvez os meus alunos nem se saiam bem na prova de aferição que ninguém sabe o que vai ser ; às tantas não, mas sabem diferençar um regime absolutista de outro parlamentar e as suas vantagens , sabem que as árvores de copa larga são autóctones e nos protegem melhor dos incêndios, que devem comprar garrafas reutilizáveis para trazer a água de casa, da necessidade de preservarem o ambiente se querem ter futuro.
Eu não sou uma amanuense, por muito que me queiram reduzir à mínima expressão, sou educadora .
As realidades da escola e as realidades da educação e as realidades da sociedade...Estamos perante "geringonças" que muitos desejariam que fossem comboios ou máquinas de produzir "crepes", ou "patins", ou "heróis". Estes são o terror da escola e dos educadores e dos alunos, mas muito benquistos nas "capelas" dos "inquisidores", dos que confundem "inquisição" com ciência. A ciência do 2+2=4, que é absolutamente falso, como diria um aluno "destituído" de capacidades cognitivas, mas que é atributo exclusivo da "inquisição".
Quem educa quem? Porquê? Quem ensina quem, o quê, para quê, porquê?
E quem é educado e ensinado? Que perguntas pode fazer? E que escolhas/opções tem?
Querem dar-nos respostas sem termos feito perguntas?
Prezada Professora
Depois de publicar um texto, li o seu comentário. Não poderia estar mais de acordo consigo. De resto quase se pode dizer que a plagiei.
Não foi o caso, o que acontece é que o raciocínio é o mesmo. Faço votos de que não desista de educar.
Cpms.
MHDamião
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