«Sempre acreditei que a China só poderia mudar pouco a pouco.
Hoje dou-me conta de como foi rápida e brutal [abrupta] a transformação (...)
Não estou a falar dos penteados das raparigas,
mas das mentalidades e comportamentos».
Jia Zhang-Ke
Nunca na história um país mudou tanto, experimentou tantos modelos políticos, tão rapidamente. “Não interessa a cor do gato, é preciso é que apanhe ratos”, disse Deng. Mas persiste na generalidade dos comentários uma visão da China como ‘a China de Mao’. Estaríamos mesmo hoje perante a instalação de um novo déspota e, quiçá, na iminência de uma nova Revolução Cultural. Xi Jiping um novo Mao?
Bastaria uma informação mínima, inteligência comum, um olhar mundano, para se concluir da evidência do disparate. Vejamos o básico. Desde 1956, da ‘Revolução das Cem Flores’ (peripécia sangrenta a propósito da qual Mao, evocando Qin, o seu modelo, que enterrara vivos 460 letrados, se gabou de ter mandado matar 100 vezes mais intelectuais), que os líderes e os intelectuais chineses mais esclarecidos tentaram neutralizar o que começava a tornar-se ‘o Grande Timoneiro’.
Um ‘timoneiro’ que, num crescente delírio de poder pessoal que nunca foi possível conter, conduziria à morte milhões de seres humanos, deixando o país em cinzas. Delírio, convém não esquecer, que a imensa generalidade da inteligência europeia e caseira celebrou como anúncio redentor de um radiante e definitivo ‘mundo novo’.
O episódio Liu Shao Chi foi a tentativa que esteve mais perto do sucesso nessa determinação de afastar Mao. Mas a genialidade táctica deste, a sua total ausência de lealdade e de escrúpulos no uso dos meios mais cruéis, a adoração do povo que o identificava como o imperador que libertara a China dos monstros estrangeiros devoradores (ver o filme recente A Grande Muralha), garantiu-lhe o regresso e catalisou-lhe a loucura – já então, repito, absolutamente clara para a elite política e intelectual chinesa.
As manifestações dessa loucura foram inúmeras, tantas quantas as exaltações de louvor no Ocidente. Só o seu fim natural o neutralizou, em Setembro de 1976, entre um eclipse do Sol e um grande sismo, como era milenarmente assinalada cosmicamente a morte dos grandes imperadores...
Uma manifestação reveladora da índole de Mao e do então louvor dionisíaco no Ocidente (e caseiro) é uma confissão despudorada do déspota feita numa entrevista a Edgar Snow. Confissão que, no seu limitadíssimo conhecimento da língua e da cultura chinesas, este traduziu assim: «Sinto-me como um bonzo careca a passear à chuva com um guarda-chuva cheio de buracos». O leitor está a imaginar o orgasmo que tal metáfora induziu nos crentes caseiros e europeus! Pois, mas a questão é que se tratava de uma expressão idiomática chinesa, ignorada por Snow, que significa: «Sou um homem sem fé nem lei»! (1)
Mas essa é muitas outras lições não impediram que se continuem hoje a debitar asneiras de igual calibre sobre a China. A partir da consolidação da liderança de Deng Xiaoping, o objectivo maior foi precaver a emergência de um novo Mao e a possibilidade de algo que sequer lembrasse a Revolução Cultural. Probabilidade então fortíssima. Todos os actuais líderes chineses ou seus familiares sofreram o inaudito na Revolução Cultural. Sabe-se o que Deng várias vezes teve de suportar, o filho atirado de uma janela da universidade por um bando de libertadores guardas vermelhos. Guardas vermelhos então cantados entre nós por muitos dos especialistas que hoje anunciam temer um novo Mao.
Inúmeros quadros nos diversos níveis da Administração chinesa de hoje sofreram na pele a Revolução Cultural. Conheci alguns deles. E foi para afastar naquele período crítico a possibilidade de algum propósito ou ilusão de regresso à tirania que surgiu, entre outras, a medida – singular na História – do impedimento de os ex-Presidentes da República e dos ex-primeiros-ministros voltarem a poder exercer, depois de dois mandatos, qualquer cargo oficial no governo da China.
No espírito da concepção chinesa da História, informada pela visão ética-cosmológica que distingue radicalmente o pensamento chinês, identificado o ‘momento’ (shi 2) – que na concepção chinesa não é o instante ocidental mas ‘duração’ (2) – e decidida a ‘propensão’ (shi 4), isto é, a ocasião adequada para a intervenção humana (que não perturbe a ordem cósmica das coisas), essa solução foi então pragmaticamente considerada como a que devia ser adoptada.
E por que foi ela agora alterada, no último Congresso do (também explicavelmente) chamado PCC? Xi Xiping é o autor necessário escolhido para interpretar, externa e internamente, o novo acto, a nova etapa no processo de ‘rejuvenescimento’ da China (3). Objectivo traçado desde antes de 1911, de cuja concretização os grandes intelectuais e líderes políticos chineses nunca duvidaram. Acto escrito e a ser representado, com rigor e cuidado, com o pragmatismo milenar. Etapa já anunciada por Deng para quando... a ‘propensão’ permitisse o seu êxito.
Quando leio ou ouço os nossos maoístas arrependidos e sucedâneos a falarem sobre a China, sinto-me frequentemente como o Asterix se sentiria a ouvir a Sinfonia n.º 1 para Violino e Orquestra de Tchaikovsky executada pelo bardo da aldeia.
Guilherme Valente
NOTAS: (1) Contado por Simon Leys. (2) ‘Estruturação’, ‘estação’, no ciclo do devir das ‘coisas inumeráveis’, determinada pelo jogo dos cinco agentes cósmicos nucleares e das virtudes associadas a cada um deles. (3) Expressão usada desde 1911 por todos os PR chineses na sua tomada de posse. associadas. (4) Expressão usada desde 1911 por todos os PR chineses na sua tomada de posse.
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