terça-feira, 26 de março de 2019

BIO-REXISTASIA

Deixei passar o Dia Mundial da Floresta que se celebrou no passado dia 21. Peço, pois, perdão a Silvano, o deus romano das florestas, a Pã, o seu equivalente na mitologia grega, e aos meus habituais leitores. Em remissão desta falta, deixo-vos aqui uma teoria particularmente simples, bela e certeira que não vejo ter o lugar que devia no ensino das ciências da Terra.

Esta teoria tem, ainda, particular importância na visão geo-biológica das alterações climáticas, de que muito se fala actualmente.

É sabido que os nazis se apropriavam de tudo o que pudessem de bens culturais (obras de arte de museus e de colecções particulares) e científicos. Contava André Cailleux, meu professor e orientador de tese na Universidade de Paris, que Henri Herhart (1898-1982), da Universidade de Estrasburgo, o feliz autor desta teoria, trabalhava nela aquando as tropas de Hitler invadiram a França, em Maio de 1940. Receoso de ser espoliado do muito material de investigação que tinha em mãos, escondeu-o entre as pedras de uma parede de uma velha casa, indo busca-lo após a libertação, em 1944.

Eu frequentava, por essa altura (1962-1964), o 3ème Cycle de Sédimentologie, (o equivalente ao nosso Mestrado), na Universidade de Paris e lembro-me que a teoria de Herhart estava, como se costuma dizer, na ordem do dia.

Ei-la, em traços muito gerais.

Numa concepção do solo como um fenómeno geológico, introduzida pelo geólogo americano Cutis Fletcher Marbut (1863-1935), o geógrafo francês Henri Herhart publicou, em 1956, uma interessante e original teoria “La genèse des sols en tant que phénomène géologique: Esquisse d'une théorie géologique et géochimique, biostasie et rhexistasie”, com uma segunda edição na Masson, Paris, em 1967.

Segundo o autor francês, certas regiões do globo estiveram ou estão numa situação que referiu por BIOSTASIA, (do grego bios, vida, e státis, estabilidade) isto é, uma situação de equilíbrio biomorfológico, expresso principalmente por uma muito vasta e densa cobertura vegetal, de longa duração e estável. Tal acontece porque, durante milhões de anos, não se verificaram variações sensíveis das condições ambientais sob as quais essa cobertura se desenvolveu, situação exemplificada pela actual floresta quente-húmida amazónica. O equilíbrio biológico próprio deste tipo de cobertura vegetal protege o solo da erosão mecânica, mas é favorável à alteração química em profundidade e subsequente evacuação dos materiais solubilizáveis. O período biostásico é sempre um intervalo de tempo longo, à escala geológica, e de pedogénese intensa.

Por outro lado, REXISTASIA (do grego rhexis, rotura, e státis, estabilidade) refere, ao contrário, um tempo muito mais curto, caracterizado pela rotura daquele equilíbrio e consequente destruição da cobertura vegetal, com exposição do solo à erosão mecânica. As causas desta interrupção são geralmente devidas a mudanças climáticas, mais ou menos acentuadas e bruscas, quer no sentido do arrefecimento, quer no da elevação da temperatura, acompanhada de secura, conduzindo à desertificação.

Durante os longos períodos biostásicos, a manutenção de condições de humidade e de temperatura relativamente elevadas e estáveis, associadas à exuberância da cobertura vegetal dela dependente, conduzem a intensa alteração das rochas e a profunda evolução dos solos, proporcionando, contudo, acentuada protecção destes materiais, face aos agentes de erosão mecânica. Praticamente, só os produtos solúveis resultantes da decomposição são mobilizados e arrastados pelas águas de infiltração, no trabalho de lavagem que exercem ao atravessá-las antes de atingirem os cursos de água. Neste contexto, poderá falar-se de erosão química.

Com efeito, ricos de substâncias químicas em solução (iões como Ca2+, Mg2+, K+, Na+, CO3H-, CO2-, PO4H2-, SO42-, etc., e moléculas como SiO2) os rios promovem o seu transporte até aos locais de sedimentação, onde esta se processa por mera precipitação química destas substâncias ou através da acção de seres vivos que, previamente, as incorporam na construção dos seus esqueletos, isto é, por via bioquimiogénica. Tal é o caso de bivalves, gastrópodes, foraminíferos, algas coralinas e outros construtores de esqueletos carbonatados, ou de radiolários, diatomáceas e outros construtores de esqueletos siliciosos.

Em síntese e por outras palavras, diremos que, no que se refere à sedimentogénese em períodos de biostasia, a sedimentação terrígena é reduzida, ao contrário da sedimentação química e/ou bioquímica. O material terrígeno resultante da alteração neste tipo de ambiente e que tinge a água dos rios é, predominantemente argiloso, impregnado de óxidos de ferro.

Nos períodos de desnudação da cobertura vegetal, resultante das crises rexistásicas, a floresta deixa de proteger a superfície do solo que, em consequência do período anterior, está profundamente alterado e, portanto, facilmente atacável pela erosão. Os materiais postos em jogo no transporte e sedimentação subsequentes são essencialmente detríticos e reflectem, na parte inferior das séries sedimentares que alimentam, os produtos da capa de alteração (a primeira a ser erodida) e, na parte superior, os materiais não alterados do substrato desnudado, sujeito, sobretudo, a desagregação e erosão mecânicas. O período rexistásico é um período de morfogénese intensa, não necessariamente longo, e a ele se associam escassez de sedimentação química e/ou bioquímica, em contraste com a grande importância de sedimentação detrítica, muitas vezes de carácter torrencial bem marcado e sempre revelador de maior ou menor imaturidade.

A dialéctica biostasia “versus” rexistasia, tal como a concebeu Ehrart, reforçou a dimensão geológica dos solos, na medida em que estes são também testemunhos das paisagens continentais suas contemporâneas, quer nos aspectos físicos (relevo, clima) quer biológicos, em particular, a vegetação. Os constituintes minerais do solo (areia, argila) ficam, muitas vezes, com marcas características dos ambientes a que estão submetidos. O mesmo acontece com os solos do passado que, na sequência da erosão, acabaram por transitar essas marcas para as rochas sedimentares detríticas, hoje patentes em sequências estratigráficas nas quais, como nas páginas de um livro, as procuramos ler e interpretar.
A. Galopim de Carvalho

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