Minha entrevista a BEATRIZ DIAS COELHO
beatriz.coelho@ionline.pt que saiu ontem no jornal I:
No dia 13, um artigo publicado na revista
Scientific Reports, "Arrow of time and
its reversal on the IBM quantum computer",
ultrapassou as fronteiras da comunidade
científica e originou um mar de
títulos apelativos na imprensa: o britânico
Independent, por exemplo, escreveu
"Cientistas 'invertem o tempo' com um
computador quântico num estudo inovador"
(Scientists 'reverse time' with quantum
computer in breakthrough study).
O i quis saber se foi de facto assim e Carlos
Fiolhais prontificou-se a esclarecer a
questão. "Há uma lei da física- a Segunda
Lei da Termodinâmica - segundo a
qual é impossível voltar ao passado", refutou
o físico. A conversa foi além da polémica
e estendeu-se ao percurso do fisico
e à física quântica em geral.
Os investigadores conseguiram de
facto fazer o tempo voltar atrás?
Não, não fizeram uma viagem no tempo.
Tanto quanto sabemos, e apesar de muitas
especulações, é impossível voltar para
trás no tempo. Há uma lei da física - a
Segunda Lei da Termodinâmica - segundo
a qual é impossível voltar ao passado.
Nessa lei surge uma grandeza física - a
entropia - que, num sistema isolado, é
sempre maior no futuro do que no passado.
De resto, as viagens no tempo implicam
problemas lógicos, como o paradoxo
que consiste em evitar que o pai e a
mãe se enamorem um do outro... Eu sei
que desde o romance A Máquina do Tempo
de H. G. Wells há muitas obras de ficção
científica sobre o tema, mas a ciência
não permite concretizar nenhum desses
enredos. Modernamente, há quem
fale em viagens no espaço-tempo no cosmos
através dos chamados "buracos de
minhoca", mas as condições para cavar
esses buracos parecem impraticáveis. No
artigo em causa, uma colaboração entre
russos, americanos e suíços, o que se fez
foi uma simulação do recuo no tempo de
um eletrão realizada num computador
quântico. Mas é uma só partícula e tratou-
se de um cálculo. Para uma só partícula
a diferença entre passado e futuro
não existe. A teoria quântica mostra reversibilidade
no tempo. Não foi violada qualquer
lei da Física.
Falou sobre "buracos de minhoca". O
que são?
São túneis ou atalhos no espaço-tempo.
Exigem concentrações tremendas, impraticáveis,
de matéria ou energia (segundo
Einstein equivalentes), que deformam o
espaço-tempo. O filme Contacto, com
Jodie Foster, explorou o assunto.
O que significa fazer o tempo voltar
para trás num computador de fisica
quântica?
Um computador quântico em vez de
bits (zeros e uns nos registos) usa "qubits"
[bits quânticos], que podem ser sobreposições
de zeros e uns. Na teoria quântica
os estados podem ser de sobreposição:
como no famoso "gato de Schroedinger",
que só existe na imaginação,
que pode estar vivo e morto ao mesmo
tempo. Um eletrão num átomo pode
estar num estado que é a sobreposição
de dois estados de energia diferentes,
por exemplo o estado fundamental e o
primeiro estado excitado. Os computadores
quânticos, ao contrário dos clássicos,
executam processos reversíveis.
Nesta simulação, realizada num computador
quântico da IBM de acesso público
na Internet, foi calculado o comportamento
de um eletrão em sistemas de
dois e três qubits. Existe um grande controlo
do sistema. O sistema evoluiu na
simulação num certo sentido temporal
e, depois, por adequada manipulação,
fez-se regressar ao estado inicial.
Que importância tem esta experiência?
Não é uma viagem no tempo, mas tem
interesse teórico. Pode até ter interesse
prático, pois um dos problemas dos computadores
quânticos é que eles têm de
estar num ambiente muito frio e isolados
do exterior. Qualquer interação com
o exterior prejudica a irreversibilidade,
de modo que o algoritmo agora usado
poderá servir para detetor de erros devidos
a indesejada interação com o exterior.
Note-se que a teoria quântica é probabilista,
pelo que foram feitas várias
experiências. No sistema de dois qubits
conseguiu-se reversibilidade em 85% dos
casos e no sistema de três qubits apenas
em 50%. Quanto maior for o sistema, mais
difícil se torna assegurar a reversibilidade
do processo.
É possível a partir daqui pensar na
possibilidade de fazer o tempo
realmente voltar para trás?
Acho que não... Tenho muita pena, nem
a teoria quântica nem os computadores
quânticos fornecem esse sonho humano
que é voltar para a juventude.
Como definir a física quântica para
quem não está dentro do assunto?
A física quântica é a teoria que descreve
o comportamento de sistemas em pequena
escala, como eletrões, protões, núcleos
atómicos, átomos, moléculas, etc. Apesar
de se referir ao microcosmos, tem
consequências à nossa escala - por exemplo,
o fenómeno do magnetismo tem uma
origem quântica - e até à escala cósmica
- o nosso Sol vai acabar numa "anã
branca", uma estrela estabilizada por um
efeito quântico.
De que forma é que a fisica quântica
nos ajuda no dia a dia?
De facto, na nossa sociedade a teoria quântica
já está ao serviço das nossas vidas: é
usada nos transístores, que estão por todo
o lado nos telemóveis, computadores convencionais,
em equipamentos médicos
como a ressonância magnética, etc. Trazemos
de certo modo a teoria quântica
no bolso. A sociedade global onde a informação circula à velocidade da luz ou quase
está inteiramente assente nessa teoria,
que surgiu há mais de cem anos.
É um dos fisicos mais conhecidos por
cá. O que o levou a escolher a fisica?
Entusiasmou-me, quando era jovem - quero
dizer; quando era mais jovem -, a aventura
do conhecimento. Tive ótimos professores,
mas julgo que escolhi a fisica
pelos livros de divulgação científica que li
em adolescente, como os de Rómulo de
Carvalho, professor de fisica que escrevia
poemas com o nome de António Gedeão.
Essa foi uma das razões pelas quais criei
há dez anos - foi no passado, não posso lá
voltar! - o Rómulo - Centro Ciência Viva
da Universidade de Coimbra, que é basicamente
uma biblioteca da cultura científica.
Uma porta de entrada na ciência.
Ao longo da sua carreira, o que
destacaria do trabalho que tem vindo a
desenvolver?
Fiz bastantes trabalhos em Física Nuclear
primeiro e depois em Física da Matéria
Condensada, usando sempre a teoria quântica,
pois esta descreve tanto os núcleos
como os sólidos. Tenho um artigo que tem
mais de 18 mil citações, o que significa
que houve mais de 18 mil artigos que o
utilizaram. Também tenho trabalhado
sobre a História da Ciência, em particular
a História da Ciência em Portugal. E
tenho procurado levar a ciência às pessoas,
ao maior número de pessoas: seja
através dos livros (escrevi até hoje mais
de 60), seja de revistas e jornais, da rádio
e da televisão e através da Internet. Para
já não falar das muitas palestras em que
falo, as últimas foram sobre computação
quântica na Academia da Força Aérea e
sobre a música de Holst, "Os Planetas",
com a Orquestra Metropolitana de Lisboa
no Instituto Politécnico de Leiria.
Em que projetos está envolvido de
momento?
Oriento alguns doutorandos em História
da Ciência. Estou a trabalhar com o historiador
José Eduardo Franco num grande
projeto editorial, "Obras Pioneiras da
Cultura Portuguesa", no Círculo de Leitores,
formada por 30 volumes, onde se reúnem
as primeiras obras sobre qualquer
assunto escritas de raiz em português: por
exemplo o primeiro livro de física, o primeiro
livro de botânica, etc. Dirijo a coleção
"Ciência Aberta" da Gradiva, onde
tenho dado voz a cientistas portuguesas.
No Rómulo tenho vários projetos em curso:
o mais inovador é uma escola dentro
da Universidade, que permite aos alunos
do 4.º ano do concelho de Cantanhede passarem
uma semana em Coimbra. Também
lancei o Rómulo Digital, que disponibiliza
na Internet muitos documentos
da história e divulgação da ciência.
Tem vários livros no currículo, através
dos quais divulga ciência.
De onde vem
esse gosto?
Li e leio muitos livros. Sou um comprador
de livros compulsivo, chego a comprar
livros que já tenho. Já disse depois
de conferir na estante: "É tão bom que eu
já o tenho, vou dá-lo ao Rómulo..." Gosto
de falar dos livros como "máquinas do
tempo", porque eles trazem até ao presente
mensagens dos nossos antepassados.
Se escrevermos livros, teremos futuro,
porque, mesmo que seja daqui a muitos
anos, é possível que alguém nos venha
a ler. Ler um autor é escutá-lo, como se
ele estivesse a falar só para nós, ainda que
o autor esteja morto há muito tempo. Para
quem escreve é uma viagem ao futuro,
para quem lê é uma viagem ao passado.
Porquê divulgar ciência?
A ciência não é dos cientistas mas de
todos. É não só importante divulgar ciência
como imprescindível. A aventura do
conhecimento é de toda a humanidade,
pelo que é obrigação dos cientistas entregarem
a todos o que conseguem saber.
Sem a apropriação da ciência pela sociedade
seria impossível haver um sistema científico e tecnológico. Sem ciência e tecnologia
estaríamos mais pobres. Mais
pobres culturalmente, porque a ciência
é uma forma de cultura. Mas mais pobres
materialmente, porque não teríamos nem
computadores nem equipamentos médicos
nem nada... Entre nós, o Ciência Viva,
que tenho apoiado desde o início, tem feito
alguma coisa, mas pode-se fazer muito
mais e muito melhor.
A tabela periódica faz este ano 150
anos. O que seria de nós sem ela?
É
uma ferramenta indispensável?
A tabela periódica que celebramos este
ano resume a nossa informação sobre os
átomos que formam o mundo, incluindo
nós próprios. É uma síntese notável, tal
como a síntese de Newton entre os movimentos
na Terra e os movimentos no céu,
que nos permitiu há 50 anos ir à Lua, ou
a síntese de Darwin entre todos os seres
vivos, antigos e atuais, integrando-os
numa grande árvore de que somos parte.
Na tabela periódica estão os primeiros
118 elementos químicos - poderemos
descobrir mais, embora os elementos
mais pesados sejam instáveis. A tabela
periódica cabe numa folha A4 porque os
núcleos mais pesados se desintegram. A
teoria quântica explica por que razão a
tabela é periódica: tem a ver com a arrumação
dos átomos em níveis de energia.
E o átomo, é mesmo a base de tudo,
como se costuma dizer?
Sim, os átomos são os blocos organizados
do mundo material. Tudo na Terra
é feito de átomos. Nós por exemplo somos
essencialmente oxigénio, carbono, hidrogénio
e nitrogénio. O nosso corpo tem,
em massa, 65% de oxigénio, 19% de carbono,
10% de hidrogénio e 3% de nitrogénio.
O resto - cálcio, fósforo, etc. - são
só uns pozinhos. Já agora: o nosso oxigénio
e o carbono foram feitos nas estrelas,
nós somos "filhos das estrelas". Essa ligação
entre a Terra e o cosmos é uma das
grandes lições da Fisica Moderna, da qual
a teoria quântica faz parte.
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