quinta-feira, 2 de outubro de 2014

"Todos os manuais anteriores foram retirados do mercado"

Uma das mudanças curriculares mais recentes e de maior impacto em Portugal é, à semelhança do que acontece noutros sistemas educativos, a definição de metas para cada disciplina (na anterior legislatura, designadas por metas de aprendizagem; na actual por metas curriculares).

Para uns, as metas constituem uma possibilidade de melhorar a aprendizagem e a prestação dos estudantes em provas nacionais e internacionais; para outros uma oportunidade de negócio; para outros, ainda, uma obrigação a cumprir. Vejamos, com recurso a dois textos, como estas perspectivas convivem (os destaque são meus):

- informação/publicidade constante na página de uma das maiores editoras portuguesas de manuais escolares, no "Espaço Professor" (aqui):
"A introdução de metas curriculares em várias disciplinas do ensino básico obrigou à atualização de manuais escolares que já tinham sido adotados em anos anteriores. Foi com base neste facto que a Porto Editora voltou a reunir com as equipas de autores, atualizando os seus manuais já adotados de acordo com as novas orientações curriculares definidas pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC). Todos os manuais anteriores foram retirados do mercado, permitindo, assim, que alunos e professores possam trabalhar com manuais iguais dentro de sala, já no arranque do próximo ano letivo. Esta atualização continuará a seguir o calendário definido pelo MEC em dezembro de 2012, abrangendo várias disciplinas do 1.º ao 12.º ano".
- extracto do Despacho n.º 15971/2012 de 14 de Dezembro:
"... as Metas Curriculares identificam a aprendizagem essencial (…) em cada disciplina, por ano de escolaridade ou, quando isso se justifique, por ciclo, realçando o que dos programas deve ser objeto primordial de ensino.”
Agora a confrontação:

1. Não é verdade que a introdução de metas curriculares tenha obrigado à actualização dos manuais escolares (que mantêm os títulos e a autoria) adoptados por um período de seis anos. E isto porque o principal referencial de ensino em cada disciplina é o programa, sendo que as metas decorrem dele. Os programas têm um carácter mais lato e conceptual, as metas têm um carácter mais circunscrito e operacional; estas surgem na sequência daqueles, mas não os esgotam.

A anterior afirmação é válida para as disciplinas em que os programas:
a) se mantiveram sem qualquer alteração (por exemplo, Português, História, Geografia do Ensino Básico), tendo as metas sido definidas a partir do que neles constava.
b) foram mudados (por exemplo, Matemática do Ensino Básico e do Ensino Secundário),  tendo as metas sido definidas a partir do que neles consta.
No sítio da Direcção-Geral de Educação encontram-se, ao acesso de toda a gente: (1) programa, (2) metas e (3) para algumas disciplinas, cadernos e outros materiais que podem apoiar o ensino (aqui).

São estes três tipos de documentos, e não os manuais, que constituem a base de trabalho de escolas e professores. Nessa base constam as informações necessárias e suficientes para a leccionação.

2. As editoras, ao alinharem os manuais pelas metas (como ufanamente ostentam nas capas em caracteres de tamanho gigante), estão a nivelar o ensino pelo patamar do "essencial" (das metas) quando o nível desejado é o "alargado" (dos programas). Mas, as editoras, como empresas, sabem que os lucros advêm de boas estratégias de marketing e, nesse sentido o que pode ser mais funcional do que anunciar o essencial num país em que o essencial basta? Não é a elas que imputo a maior responsabilidade.

3. Já o mesmo não posso dizer das escolas, pois a sua lógica não é a das empresas, nem pode, de maneira alguma, seguir a lógica das empresas; a sua razão de existir é a aprendizagem. Alguma sensibilidade para a débil situação económica de muitas pessoas poderia também ser demonstrada. Não aprenderiam menos os alunos se as escolas tivessem permitido que se aproveitassem manuais escolares de anos recentes, que pela lei estariam ainda em vigor, pelo menos das disciplinas em que o programa se manteve, porque, insisto, é esse o documento de referência para o ensino.

4. Temos ainda a tutela e os avaliadores de manuais, de quem nunca vi uma tomada de posição relativamente ao que acima referi. A tutela há muito que fecha os olhos a uma situação intolerável: produz documentos curriculares que são imediatamente "mastigados" e transformados em manuais-prontos-a-usar, aceitando que esses documentos, que tanto trabalho e despesa dão, fiquem numa espécie de limbo; os avaliadores, geralmente académicos, analisam o material que recebem do ponto de vista disciplinar, certificando-o sem se terem detido em princípios curriculares que os enquadram ou noutros aspectos de relevo que, em geral, desconhecem ou dizem não ser da sua competência.

Em suma, quando todos os manuais estiverem alinhados pelas metas, pelo essencial, os nossos alunos poderão ter melhores resultados em provas de exame e até podemos considerar isso um triunfo, mas muito se perderá daquilo que é importante saber.

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