terça-feira, 14 de outubro de 2014

Análise químico-forense do poema Os ratos de Fernando Pessoa


Três ratos foram encontrados mortos, supostamente por envenenamento acidental, e um outro sobreviveu a uma tentativa de suicídio, há um tempo indeterminado, mas que se pode situar como anterior a 1935. A possibilidade de acesso aos restos mortais e aos supostos meios envolvidos nos acontecimentos é remota. Não há também informação suficiente para localizar a mercearia onde tudo teria ocorrido. Só nos resta um texto em forma de poema, no qual o poeta Fernando Pessoa, com alguma graça, mas sem grande rigor científico-forense, teceu algumas hipóteses e conjecturas, de certa forma tendenciosas, que procuraremos analisar, com o objectivo de encerrar o caso.

Os ratos

Viviam sempre contentes,
No seu buraco metidos,
Quatro ratinhos valentes,
Quatro ratos destemidos,

Despertaram certo dia
Com vontade de comer,
E logo à mercearia
Dirigiram-se a correr.

O primeiro mais ladino,
A uma salsicha saltou,
E um bocado pequenino
Dessa salsicha papou.

Eu choro do rato a sina,
Que a tal salsicha matou,
Por causa da anilina
Com que alguém a colorou.

Confunde-se usualmente a anilina, que é um composto tóxico, com os corantes que são obtidos a partir desta molécula. Esses compostos sintéticos, em geral da família dos corantes azo, não são tóxicos nas quantidades usadas nos alimentos, sendo exemplos destes a tartarazina (E102, amarelo) e o amaranto (E123, vermelho). Este último pode ter sido usado na salsicha para lhes dar uma cor mais vermelha, mas o próprio tratamento das carnes com nitrito e nitrato já lhes dá alguma cor característica. Modernamente, usam-se também corantes como a hemoglobina e a mioglobina. Em qualquer dos casos, nenhum destes aditivos é venenoso. A morte do rato poderia, assim, ser devida ao uso criminoso de um corante tóxico como o mínio, um óxido de chumbo, ou o vermelhão, sulfureto de mercúrio, entre vários outros possíveis, mas em princípio não seria um corante da família das anilinas. Uma hipótese, mais provável para a morte do rato, poderá ser a intoxicação com a toxina do botulismo ou com salmonelas, em ambos os casos por deficiente conservação ou preparação da salsicha. Actualmente, os excessos nos aditivos, a falsificação, ou a contaminação biológica, poderiam ser detectados em análises de rotina. Em conclusão: provavelmente a acusação ao corante foi precipitada, sendo mais certa outra causa para o envenenamento.

O segundo, coitadinho,
À farinha se deitou,
E comeu um bocadinho,
Um bocadinho bastou.

Após comer a farinha
Teve ele a mesma sorte,
Pois o alúmen que ela tinha
Conduziu-o assim à morte.

O alúmen é um sulfato de alumínio e potássio com muitos usos tradicionais. Um destes, conhecido desde há vários séculos, era como aditivo da farinha, para facilitar a preparação do pão, funcionando talvez também como conservante. Actualmente, pode ainda aparecer em preparações de farinhas auto-levedantes (não consegui verificar). Não é, com certeza, um sal venenoso em pequenas quantidades (um bocadinho bastou), embora recentemente tenha havido alguma preocupação com a presença do alumínio, quando este foi injustamente associado à doença de Alzheimer. Para causar a morte do rato, ou o alúmen estaria numa quantidade inaceitável e facilmente detectável, ou ocorreu um erro relativamente comum até há alguns séculos: trocar o saco da farinha com o do óxido de arsénio (conhecido como arsénico) já que são ambos pós brancos! De novo a acusação é infundada, continuando desconhecida a razão do óbito.

O terceiro, pra seu mal,
Gotas de leite sorveu,
Mas o leite tinha cal;
Foi por isso que ele morreu.

A adição de cal ao leite numa quantidade que fosse perigosa é uma falsificação desconhecida pois o leite ficaria irremediavelmente alterado, provavelmente precipitando. São conhecidas várias falsificações do leite, algumas relativamente perigosas, mas, actualmente, este é um dos alimentos mais controlados, tanto em termos químicos como biológicos e isso seria imediatamente detectado. Em tempos idos, o leite não pasteurizado e não analisado poderia transportar doenças como a brucelose ou o carbúnculo, ter toxinas contaminantes como aquela que matou a mãe de Lincoln nos Estados Unidos, ou ainda sofrer adulterações químicas com dicromato, hipoclorito, água oxigenada ou bicarbonato, para ajudar à sua conservação. Não hoje: como referido anteriormente, todas estas possibilidades são analisadas de forma rotineira e, destas últimas, só o dicromato poderia oferecer algum perigo. Assim, conclui-se que a possibilidade do óbito ter sido causado pela cal no leite é muito remota.

O quarto, desmiolado,
A negra morte buscou,
E julgou tê-la encontrado,
Quando veneno encontrou.

E sorvendo sublimando,
Enquanto este gastava,
(Agora invejo-lhe o fado)
O feliz rato engordava.

É só cá neste terreno,
Que caso assim é passado-
Até o próprio veneno
Já fora falsificado!

Sublimado é o nome pelo qual era conhecido em Portugal o sublimado corrosivo, cujo nome moderno é cloreto de mercúrio II. Este composto é muito tóxico e foi usado como medicamento para infecções, em particular para a sífilis, numa altura em que não existiam antibióticos. Claramente, estamos na presença de uma falsificação também indeterminada. O rato não poderia engordar com a ingestão de cloreto de mercúrio, nem sobreviver às doses que estaria a tomar para tentar o suicídio. Para além disso, este composto é corrosivo e causaria queimaduras na garganta além de complicações físicas generalizadas. Assim, ou se tratava de uma falsificação, ou de um medicamento homeopático que de cloreto de mercúrio teria quase nada e de açúcar tudo.

O poema é muito interessante, mas a sua química forense é especulativa e na generalidade incorrecta. Caso encerrado de forma inconclusiva.

4 comentários:

António Piedade disse...

Artigo muito bom, muito interessante, aliás, como sempre Sérgio.

Sérgio Rodrigues disse...

Obrigado! O meu filho mais novo leu-me o poema e eu não resisti a analisá-lo um pouco mais.

Sílvia disse...

Parabéns pelo texto! Análise muito interessante.
Ao nível da poesia parece-me que este tipo de incorreções são admissíveis, o que me preocupa são as incorreções que surgem nos manuais e, por vezes, perpetuadas pelos professores no ensino das ciências. O ano passado deparei-me, no manual de Estudo do Meio de 1º ano do meu filho, com erros científicos relativos à flutuação.

Sérgio Rodrigues disse...

Sílvia,
Obrigado pelos comentários. As incorrecções da poesia são não só admissíveis como, muitas vezes, desejáveis, porque nos interrogam (ponde de lado aquele "E logo à mercearia/ Dirigiram-se a correr" que me soa mal). Neste caso permitiram-me chegar, a brincar, à questão muito séria da segurança alimentar e dos preconceitos que existem sobre a química. A questão das incorrecções nos manuais e no ensino é uma tragicomédia que partilhamos com outros países. Ele são as abelhas ácidas, a água que sobe quando se apaga a vela porque se consumiu o oxigénio, os vidros que escorrem ao longo dos séculos, entre outras tolices que se perpetuam ano após ano sem que que ninguém pareça notar. Mas temos de notar: se está errado devemos, educada e fundamentadamente, dizer às editoras e professores. A ciência só avança com a correcção dos erros.

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