Se o leitor se interessa pela educação escolar (a educação escolar interessa, afinal, a todos), sugiro-lhe que o abra (aqui) e o "folheie", mas sem os pré-conceitos que se apoderam de qualquer um quando se depara com tão esmagadora apresentação, tendendo logo a pensar que se trata de um documento inquestionável.
Começo pela ideia central, destacada num esquema inicial, Innovative pedagogical practices ou, em português, Práticas pedagógicas inovadoras (página 2).
Propõe-se a inovação, que, afinal, não o é: ideia antiquíssima, que se tornou, nas últimas décadas, gasta e vazia. Mas, para quem nunca pensou no historial e no significado de inovação, nas relações que estabelece com a tradição, nem na sua pertinência, nem em coisa nenhum, esta é daquelas palavras encantatórias que gera, de imediato, concordância, e se isso não acontecer, faz-se saber ao dissidente que está desalinhado, fora do contexto, que tem de se reconverter.
Estas considerações são válidas para o resto do esquema: empreendedorismo, redes sociais, redes com o mundo real, estilos de aprendizagem, aprendizagem formal e não formal, inclusão social e equidade... Tudo segundo o estilo clássico de uma certa linha de conceber a escolaridade.
Detenho-me em três aspectos que me são caros: currículo, aprendizagem e ensino. No currículo leio (tinha de ser!) inteligência emocional; de seguida, multi e transdisciplinaridade, recursos abertos e actividades significativas. Quanto às práticas de aprendizagem, leio: aprender através da exploração, da criatividade, auto-regulação, colaboração entre pares, aprendizagem personalizada; e quanto às práticas de ensino Competências transversais, potencialidades individuais, modos de pensar múltiplos, estilos de aprendizagem múltiplos.
Juntando as diversas partes do esquema, adivinhe o leitor: a inovação pedagógica traduz-se nessas palavras e concretiza-se através das novas, das novíssimas TIC (por extenso tecnologias de informação e comunicação) que mais se aproximam da realidade das crianças e dos jovens. Têm de entrar na escola e na sala de aula telemóveis, tablets, etc.; de se usar Google, Skype, Dropbox, Facebook, Twitter; de se recorrer a jogos, a laboratórios virtuais... E tudo isto urge porque, imagine-se, há muitas salas de aulas por essa Europa fora onde os estudantes ainda não usam o computador!
Até aqui, só (belas) declarações; não se pode ficar por elas, é preciso estratégia. A estratégia é tudo! A sociedade está convencida (é isto que acha bem e que quer para a educação dos seus filhos, netos e sobrinhos) mas tem se insistir junto de quem tem poder, para que... mande; e manipular (perdão, formar) os professores. Não sou eu que o digo, está lá...
“... este relatório proporciona informações valiosas e orientação para os responsáveis políticos e dirigentes escolares sobre a necessidade de recorrer a recursos digitais e abertos... É fundamental trabalharmos para a melhoria das competências digitais e o acesso aos recursos digitais abertos, para reforçar a qualidade do ensino e para criar modelos educativos flexíveis, tornando assim mais fácil a aprendizagem ao longo da vida", disse a Comissária Europeia da Educação, Cultura, Multilinguismo e Juventude.Tudo isto deve ficar caríssimo. Pois fica, mas, não nos preocupemos, será financiado por programas e fundos europeus. Uma parte substancial é, já se sabe, para "formar" os professores... online, claro!
Portugal, cujo sistema educativo está como está, destacou, pela voz de representantes da Comissão Europeia, a palavra "premência" na adopção destas medidas. Reconheceu as nossas limitações, mas declarou-as "solucionáveis”. Ficámos descansados!
A avaliar pelas notícias de jornal, ficámos mesmo descansados; nenhum sobressalto transparece nelas. Não há entre os nossos jornalistas quem desmonte este tipo de discurso e do que ele implica na aprendizagem dos nossos alunos!?
Nota. Além do documento citado, para escrever este texto, usei duas notícias de jornal: aqui e aqui.
6 comentários:
Pois é... só que, com a tendência para o exagero, estamos a caminhar para um ensino do "não saber pensar". Estes estudos têm esse defeito, levam os governos a pensar que a educação é só isso, que as tecnologias resolvem tudo. E o raciocínio? E a reflexão? Caminhamos assim para um ensino em que o professor ajuda o aluno a usar todas essas tecnologias, mas não o ensina a usar a tecnologia mais importante: o cérebro. Ligados à máquina para tudo acabamos por criar uma sociedade desumanizada, onde o contacto com o outro, a discussão "olhos nos olhos", a observação das emoções, já não têm valor, porque à distância nada disso se vê.
Os nossos antepassados usaram o cérebro e foi por causa disso que chegámos à tecnologia.
O horror é que realmente me sinto excluído, estou excluído no meio de tanta inclusão.
O horror é tanta inclusão.
Pergunta a Srª se não haverá "entre os nossos jornalistas quem desmonte este tipo de discurso e do que ele implica na aprendizagem dos nossos alunos". Pois, se calhar, o(s) jornalista(s) que poderia(m) fazer esse trabalho, já deve(m) ser uma espécie em extinção ... dado o tipo de ensino que tiveram, rolando sempre em rampa descendente produzindo formados sem capacidade própria de pensar.
Recentemente, no concurso de TV “Quem quer ser milionário?”, foi efetuada uma pergunta do género “Em que década do séc XX se deu a grande fome na Ucrânia, conhecida por Holodomor?” (Hipóteses de resposta – 30, 40, 50, 60)
O concorrente decidiu utilizar a ajuda telefónica.
Quando estava a meio da leitura da pergunta ao telefone, a sua “ajuda” pede-lhe para ler mais devagar (certamente para poder digitar no google palavra por palavra, que é o que todos fazem hoje em dia, sem pensar em mais nada).
O concorrente lá foi lendo, palavra por palavra, mas é óbvio que, quando se acabou o tempo limite (30s), nem sequer tinha acabado de ler toda a pergunta!...
O que mostra este exemplo? Várias coisas:
1 - Mostra que o concorrente não era muito versado em história recente (embora, em função da questão em causa, isso pudesse não ser considerado particularmente grave);
2 - Mostra que a “ajuda” padecia da mesma condição do concorrente;
(a partir de agora é mais grave)
3 - Mostra que a “ajuda” era analfabeta funcional, pois não era capaz de reproduzir em escrita uma frase completa que tinha acabado de ouvir, necessitando que lha ditassem palavra por palavra!;
4 - Mostra que a “ajuda” não sabia fazer pesquisas na net, dado que, em vez de escrever frases completas, devia procurar por palavras o mais especificas possíveis (neste caso concreto, a palavra “Holodomor” dar-lhe-ia de imediato a chave para o que procurava…mas seria um problema – teria de se ditar a palavra letra por letra!…);
5 - Mostra que a “ajuda” deposita a responsabilidade pela supressão da sua ignorância numa tecnologia que nem sequer domina, o que é natural: Se não se esforçou para eliminar a primeira, é natural que não se esforce para dominar a segunda;
6 - Mostra que a “ajuda”, ao contrário de Sócrates (do original), nem sabe que nada sabe…
O concorrente acabou por escolher a hipótese “60” (ainda por cima) e perdeu…
Outro exemplo recente, no mesmo concurso, foi a pergunta “Em que estado americano se localiza a cidade de Corpus Christi?”
Como explicar em 30s à ajuda telefónica como se escreve “Corpus Christi”? O que é “latim”?! O que é “Corpo”?! O que é “Cristo”?!...
Enfim, todo um mundo por descobrir, mas a Comissária Europeia diz que não há problema porque existe toda uma “aprendizagem ao longo da vida”…esperemos que a vida seja longa, porque o atraso é muito!
Recursos digitais abertos – mentes cada vez mais fechadas!
Dervich
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