domingo, 31 de março de 2013

Um comentário em que se confundem as coisas "para a posteridade e mais além" (1)

(Fachada da ex-Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque de Lourenço Marques)

“O Homem pensa como o corpo todo” (Ernest Kerstchemer, psiquiatra alemão e “doutor honoris causa”em Filosofia).

Muito hesitei em responder ao autor do comentário aqui publicado, como o título “Para a Posteridade e mais Além” (31/03/2013), ao meu post ”Sobre a Ordem dos Professores e ‘In Memorian’ de João Boaventura’” (29/03/2013).Mas  para que não subsista a menor dúvida ou suspeita sobre o respeito que dedico a quem se valorizou cultural, profissional e eticamente pelo antigo ensino técnico sem necessidade de novas oportunidades ou licenciaturas e mestrados de puro oportunismo. Ou seja, quando o fez com  “sangue, suor e lágrimas” de um ensino exigente que não atribuía diplomas como quem distribui um bodo aos pobres.

Decidi-me a esta resposta, ademais, por não ser homem de virar a cara a ditos de humor grosseiro (ao invés de uma ironia subtil e inteligente).Exemplifico com este seu naco de prosa: ´”(…) é com este bauptista que acha que um pai é responsável por toda a inculcação educacional de um filho e deve sentir vergonha  quando ela falha”. Afincadamente procurei, neste post, onde teria dito tal coisa que me é atribuída. Debalde! Restou-lhe, portanto, a fidelíssima e castrense metáfora de me crismar de bauptista com o pensamento na história da revolução cubana.

Mas vamos ao cerne da questão que pouco abona pelo desrespeito dos seus comentários a um colega meu  que me levou a  escrever: “Na sua carta [de João Boaventura, a transcrever por mim brevemente]  subjaz o espírito de uma prosa suportada por uma cultura invejável (e como lhe assenta como uma luva o provérbio supracitado: ‘Cada velho que morre é uma biblioteca que arde’). Escreveu, por seu lado,  Abel Salazar, notável médico  e professor universitário do Porto : “Um médico que só sabe de Medicina, nem isso sabe”. “Mutatis mutandi”, um professor de Educação Física e Desporto que só sabe de desporto nem isso sabe. Mas João Boaventura, não se quedou pela matéria da sua vida profissional. Foi sócio fundador da Sociedade de Língua Portuguesa como prova da sua competência no domínio da língua materna, dominando-a com a destreza de quem bem  sabe escrever ( forma) e argumentar ( conteúdo).

Só uma mente apegada à dicotomia cartesiana de um ser pensante (“res cogitans”) a dominar um corpo escravo (“res extensa”) pode chegar à conclusão de que os músculos estão na razão inversa da inteligência, como costumo criticar. Um conceito enraizado em santa ignorância, ou mesmo em indivíduos que rescendem a falsa intelectualidade. Ignorantes para quem a destreza e a força físicas continuam a viver em resquícios de euzebiozinhos  retratados pela crítica social do imortal  Eça , em “Os Maias””. Por seu turno, Ramalho Ortigão  dedicou uma vastíssima obra de inegável valor literário  em defesa das práticas corporais, por ele próprio seguidas, quando, por exemplo,  escreveu: “Creio que nasci  para homem de forças, para Hércules de feira”. Em tempos mais chegados, Almada Negreiros, tido por Bigotte Chorão, “talvez, como a personalidade mais completa e complexa e fascinante da cultura portuguesa do século XX”, escreveu: “É preciso criar a adoração dos músculos". E os exemplos estão bem longe de esgotados.

Em paciência de Job, “last but not least”, cito, ainda, este seu naco de prosa em que, pelo andar da carruagem,  me  deseja incluído no  rol “de tipos que acham que os professores licenciados ou douturados  são superiores como professores a um mestre relojoeiro ou um electricista dum colégio de salesianos há umas décadas atrás”. Nem por sombras, e para o desdizer, nesse seu engano, ou simples precipitação, transcrevo, por comungar do ponto de vista, de Gustave Le Bon: “Grande número de políticos ou universitários, carregados de diplomas, possuem uma mentalidade de bárbaros e não podem, portanto, ter por guia na vida senão uma alma de bárbaros”.

Entendo que a este respeito, não devo, nem quero,  ser juiz em causa própria, limitando-me, como reforço,  a apresentar um testemunho  que mostra o meu respeito por diplomas do antigo ensino técnico. Escrevi, então  neste blogue, o seguinte post intitulado “A Mística da Escola Industrial de Lourenço Marques" (05/05/2012). Por acreditar, a exemplo de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1855), que “em todas as decadências o primeiro sintoma é o da decadência do sentimento da amizade”, reproduzo-o abaixo:

Como me competia, enviei um mail ao aluno Augusto Martins, que subscreve a mensagem que será reproduzida no fim deste texto. Nela solicitava-lhe autorização para a publicação de um valioso testemunho seu, sobre a “nossa” Escola Industrial de Lourenço Marques, prova viva de uma perfeita sintonia de amizade e respeito entre professores e alunos.

Clima este que não é demais enaltecer num período em que os  académicos, os políticos, os professores, os pais e o próprio homem comum, discutem a forma de inverter o que se passa de mal nas nossas escolas sem, por vezes, terem em  devida conta serem elas o  cadinho em que a sociabilização da juventude encontra um dos esteios mais sólidos  num mundo em declarada decadência de valores ancestrais e em plena convulsão em que, para utilizar uma imagem desgastada pelo (ab)uso, “ o ter se sobrepõe ao ser”.

O testemunho deste aluno transmite-nos a mensagem de que a  “Escola Industrial Mouzinho de Albuquerque”, de Lourenço Marques, foi um alforbre de valores caldeados na sã e constante  convivência estabelecida entre professores e alunos, para além do estrito cumprimento de horários (a toques estridentes de campainhas), de regras ditatoriais, obrigação em  debitar matéria e servidão a funções meramente burocrática, etc. Aliás, princípios teorizado por  Serras e Silva (1868-1965), professor catedrático de Medicina da Universidade de Coimbra, ao defender:

”A convivência dos mestres e alunos, fora das aulas, pode fornecer elementos valiosos, no sentido da formação moral, muito mais úteis que as noções repetidas pelos compêndios, durante as lições. Quantas vocações têm sido determinadas por esta convivência, de que os nossos mestres são avaros por costume, por falta de tempo e ocasião. O mestre digno deste nome, que se isola e se furta ao convívio dos discípulos, é valor que se perde, capital que não produz. Dar ao estudante o gosto das coisas nobres e delicadas, das coisas grandes, de grandeza moral, como o sacrifício, a invenção, a utilidade geral, é fazer obra patriótica, verdadeiramente nacional. A melhor influência do mestre não é a que se exerce nas aulas, não é a que incide na matéria do exame, é  a que forma o bom senso, o carácter, a que faz respeitar a lei moral”.

Devido à minha ignorância informática (hoje dá-se-lhe um nome bem menos agreste de iliteracia!) não chegou esse mail ao seu destino. A insistência minha, obtive a autorização para a sua publicação com interesse, para além de tudo o mais, que bem pouco não é, pela referência que faz à  mística de uma saudosa e sempre presente escola na vivência do nosso dia-a-dia. 

Sem mais delongas ou comentários que possam deslustrar por não estarem à altura da mensagem,  depois de obtida hoje essa autorização,  aqui estou eu, jubilosamente, a dela dar o devido destaque transcrevendo-a na íntegra:

“Prezado Professor Rui Baptista:

Quero começar por lhe endereçar os meus sinceros agradecimentos pela sua presença na nossa confraternização de sábado passado. Foi com particular emoção que tive o prazer de lhe dar um respeitoso abraço, com a consideração que lhe devo, pelo facto de o ter tido como meu professor. Um desses verdadeiros professores de antanho. Daqueles que, além da matéria prevista pelo respectivo programa escolar, tinham a capacidade de nos mostrarem os verdadeiros caminhos que nos estavam reservados pela vida. Acho que este almoço foi mais uma das ocasiões em que se provou o real valor da camaradagem e do reconhecimento dos alunos ao seu mestre. Desejo-lhe muita saúde e a força necessária para continuar a servir-nos de exemplo.
Peço que aceite os meus mais respeitosos cumprimentos.

Augusto Martins”.


E se a vida de amanhã é o que for a escola de hoje, como nos legou  António José Saraiva – segundo  Eduardo Lourenço, “uma referência  chave da cultura portuguesa"-  o exemplo dos alunos da“nossa”  Escola Industrial  comprova essa realidade pelos exemplos colhidos neste testemunho. Bem hajam, portanto, os alunos de um estabelecimento de ensino que formou gente que faz da gratidão um dos grandes  valores dos seus diplomas”.

Ponto final parágrafo sem antes, porém, não poder deixar de lhe pedir que leia com atenção, e sem qualquer “parti pris”, a carta de João Boaventura sobre a Ordem dos Professores por mim a transcrever brevemente.A partir dela melhor poderá ajuizar da injustiça de comentários por si feitos.

2 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Professor Rui Baptista;


Eu fiquei com a ideia que não; que o comentário não era dirigido ao Senhor Professor Rui Baptista.

Seria um grande desconhecimento - daquilo que é o seu trabalho, a sua "luta" -, se o comentário lhe fosse dirigido a sí, já para não falar da injustiça.

Esperemos que o seu autor se pronuncie.

P.S.:Eu tive a oportunidade de realizar comentários aos 'post' do Professor João Boaventura, e admirava-o, tinha muita sabedoria, e foi sempre amável comigo.
Deixa-me saudades.

Obrigado.


Rui Baptista disse...

Engenheiro Ildefonso Dias: Obrigado pelo seu comentário amigo, embora me atreva a pensar que se trata de uma perspectiva sua de que eu , infelizmente, não comungo: "esperemos que o seu autor se pronuncie".

Mas tudo bem! Só lamento ter evocado no meu post um nome que muito respeito me mereceu em vida e que perdura para além da sua morte: João Boaventura.

Mas, na sabedoria popular, "há males que vêm por bem".Refiro-me, evidentemente, ter sido compreendida a minha homenagem a João Boaventura pelas palavras que lhe dedica:"Eu tive a oportunidade de realizar comentários aos 'post' do Professor João Boaventura, e admirava-o, tinha muita sabedoria, e foi sempre amável comigo.
Deixa-me saudades".Bem haja!

Brevemente, publicarei a carta que ele escreveu no "Diário de Coimbra". Estou certo, que pairará na opinião do leitor o prazer de ler como a ironia pode ser acutilante sem descer às profundezas do ataque pessoal.

O QUE É FEITO DA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS?

Passaram mil dias - mil dias! - sobre o início de uma das maiores guerras que conferem ao presente esta tonalidade sinistra de que é impossí...