Este é o início de um ensaio de George Steiner (de 1978) que está incluído num volume de ensaios como o mesmo título e que acaba de sair na editora Gradiva:
"Que queremos significar quando dizemos: «este poema, ou esta passagem deste poema, é difícil»? Como pode o acto de linguagem mais carregado do propósito de comunicar, de chegar a tocar o ouvinte ou o leitor no mais íntimo de si, ser opaco, resistir à evidência imediata e à compreensão, se é isso que queremos significar quando falamos em «dificuldade»?
A um certo nível, ao mesmo tempo óbvio e decisivo, esta pergunta é uma interrogação sobre a própria linguagem.
Que significa a experiência pragmática de um sistema semântico, lexicograficamente constituído e gramaticalmente organizado, poder ser gerador de impenetrabilidade e de indecidibilidades de sentido?
Não é possível apresentar qualquer resposta coerente sem um modelo completo, que não temos, das relações entre «pensamento» e discurso, e sem uma epistemologia total, que também não temos, da congruência ou incongruência das formas do discurso com um corpo «precedente» de intenção, de percepção e de impulso vocativo.
Nos termos de um modelo semelhante, a «dificuldade» seria, presumivelmente, um efeito de interferência entre a clareza subjacente e uma formulação obstruída. Tal é, a traço grosso, a leitura clássica e cartesiana da opacidade, uma leitura cuja inferência é necessariamente negativa. Mas todos os termos relevantes — «interior»/«exterior», «intencionalidade»/ «verbalização», e o decisivo «entre», com o seu inocente postulado de uma espécie de espaço mental — são manifestamente elusivos. Activam uma metáfora de separação e transferência acerca da qual nem a lógica nem a psicologia se puseram ainda de acordo.
A nossa questão inicial é mais estreita, ou, mais precisamente,s upõe uma sugestão da ordem do senso comum sobre a existência de continuidades entre a intenção linguística e o enunciado. O leitor individual ou um grupo de leitores descobre que não é capaz de entender esta ou aquela passagem de um poema ou, na realidade, o poema no seu todo.
Como pode ter lugar uma situação semelhante? Até mesmo uma reflexão cursiva sugere que quando dizemos «este texto é difícil» significamos, ou nos propomos significar, um certo número de coisas muito diferentes. A rubrica «dificuldade» cobre uma considerável diversidade tanto do ponto de vista material como dos métodos. Estes variam significativamente segundo o género literário e o momento histórico. Assim, talvez seja útil, a título preliminar, procedermos a uma tentativa de classificação, de tipologia, de alguns dos principais modos de dificuldade, tal como os encontramos na poesia — e, sobretudo, na poesia ocidental do Renascimento em diante.
Dessa classificação poderia extrair-se uma «teoria da dificuldade», que continua a ser um dos desiderata, que a prática do século XX torna urgentes, na estética mais geral das formas performativas.
Muitas vezes, provavelmente na grande maioria dos casos, o que queremos significar quando dizemos que um verso, uma estrofe ou o conjunto do poema é difícil não se reporta a uma dificuldade de ordem conceptual. O mesmo é dizer que a nossa observação não é portadora do mesmo peso, não tem o mesmo alcance, que teria, se disséssemos: «este argumento de Immanuel Kant, ou este teorema algébrico, é difícil». (Embora também não seja inteiramente claro, em termos epistemológicos pelo menos, o que queremos significar ao certo nestes últimos casos.
Se a álgebra é o desenvolvimento rigoroso de definições previamente axiomatizadas, se é uma tautologia dinâmica, que queremos nós significar quando dizemos que este ou aquele passo desse desenvolvimento é «difícil»?).
Mas é bastante evidente que existe uma diferença. Estaremos talvez a visar qualquer coisa de muito menos sólido ou «substancial» — termo escorregadio no que se refere à linguagem — do que o conceito.
A grande maioria das vezes entendemos por uma «dificuldade» alguma coisa que «precisamos de examinar». No que deve ser, estatisticamente, a esmagadora maioria dos casos, será uma simples palavra ou uma frase que não é, para nós, imediatamente inteligível (...)"
Georges Steiner
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