Foi, há precisamente, meio século, num tempo em que os autocarros eram como o que se vê na Imagem.
Acabado de contratar como assistente, na antiga Secção de Mineralogia e Geologia, na Faculdade de Ciências de Lisboa, fui designado pelo então Instituto de Alta Cultura (IAC) para guiar três dezenas de geógrafos dinamarqueses, numa visita de estudo a Portugal. Acompanhados pelo professor Sofus Christiansen do Departamento de Geografia da Universidade de Copenhaga, este grupo visava conhecer as principais ocorrências geográficas e/ou geológicas do nosso território.
É certo que eu já percorrera estes locais nas excursões que fizera por todo o país, umas como aluno de geologia, outras, na companhia dos professores Orlando Ribeiro e Pierre Birot, estas dirigidas, sobretudo, à geografia física, sem descurar a vertente humana desta disciplina. É certo que conhecia menos-mal tais ocorrências e tinha, na memória, os itinerários que permitiam as suas convenientes observação e explicação do ponto de vista pedagógico. Mas uma coisa eram esses conhecimentos para meu uso pessoal, outra coisa era sabê-los a um nível que me permitisse expô-los a uma classe de gente com preparação certamente superior à minha.
O tempo de que dispunha para me pôr a esse nível era bastante curto, mas o hábito que trazia de fazer directas, enquanto estudante, duplicou-me, por assim dizer, as horas de preparação que me habilitassem a um tamanha responsabilidade. Numa semana, sempre a correr, os nossos simpáticos e interessados visitantes puderam observar e fotografar os múltiplos aspectos da geologia e da paisagem física e humana de um país tão pequeno como o deles, mas muitíssimo mais rico e variado nos referidos aspectos.
Das fragas do Gerês aos vinhedos do Alto Douro, passando pelos blocos soerguidos do Marão e do Alvão, e depois de percorrermos a longa depressão tectónica de Chaves, rumámos ao planalto da Guarda e à serra da Estrela, onde os vestígios do último período glaciário os deteve mais demoradamente. Cumprida esta parte do percurso no chamado Maciço Antigo, fomos explorar a Orla Mesocenozóica Ocidental, com começo na bela Ria de Aveiro, vasta laguna separada do mar por um cordão de areia, em tudo semelhante aos Haff-deltas, que estes meus companheiros bem conheciam no vizinho litoral alemão do Báltico.
Percorremos as terras baixas e arenosas da gândara e deparámo-nos com o denso empilhamento de estratos que marcam o Jurássico do Cabo Mondego (classificado como Monumento Natural desde 2007), quais páginas de um grande livro onde está escrito um importante capítulo da história da Terra, e onde nos confrontamos com a enormidade do tempo geológico. Daí, fomos dar aos férteis campos do Mondego e, ao cair da tarde, chegávamos à cidade dos doutores, onde atravessámos um “Basófias” de areia escura percorrida por um fio de água envergonhado [1].
Caminhando para Sul, subimos ao Maciço Calcário Estremenho, bebemos água nas Nascentes do Alviela e rumámos à lezíria do grande Tejo, com passagem por Muge, onde observámos demoradamente o concheiro mesolítico da Moita do Sebastião [2], uma montureira de cascas de moluscos ali usados na alimentação de uma comunidade humana nesta área ribeirinha do Tejo, há cerca de 7000 anos, muito semelhante aos celebérrimos Kjökkenmödings [3] existentes no país destes nossos visitantes.
Centrados em Lisboa para descansar ou fazer vida de turista, incluímos no programa os vestígios de um vulcanismo de há 70 milhões de anos e os aspectos geológicos da serra de Sintra, testemunho de um maciço sub-vulcânico com 85 milhões de anos, a tal “pérola lançada a porcos”, no dizer pouco atencioso de Lord Byron. E os porcos, segundo este poeta inglês de finais do século XVIII, começos do XIX, éramos nós, os portugueses.
Do programa traçado para fora da região de Lisboa constavam, ainda, a espectacular garganta epigénica das Portas de Ródão (classificada como Monumento Natural em 2009), a serra de São Mamede e as imensas planuras alentejanas, a serra de Portel e a escarpa de falha da Vidigueira. Seguiu-se a Orla Mesocenozóica Meridional, que é como quem diz, o Algarve, e o seu “penico”, ou seja, a Serra de Monchique. Importa esclarecer que, neste contexto, a palavra alude ao elevado nível pluviométrico (entre 1000 e 2000 mm/ano) neste relevo isolado, testemunho de um outro importante maciço sub-vulcânico com cerca de 900m de altitude.
Do muito que esta região do Sul do país tem para oferecer em termos fisiográficos, escolhemos a Ria Formosa, a ponta de Sagres e o grande Barrocal. No regresso a Lisboa, pelo litoral alentejano, demo-nos conta do contraste entre as arribas alcantiladas, cortadas no xisto, da Costa Vicentina, e as praias e dunas que se estendem para Norte de Sines até à grande restinga de Tróia. Como remate desta proveitosa excursão, aguardavam-nos a pequena cadeia alpina que é a Serra da Arrábida, uma Sesimbra que já desapareceu, e o majestoso Cabo Espichel.
No dia seguinte, no mesmo autocarro que nos conduzira por montes e vales, cidades e aldeias, acompanhei estes nossos visitantes ao aeroporto. Como sempre, sentado num dos bancos da frente e de microfone junto à boca, falei-lhes ainda do que fora a região de Lisboa, há uma dezena ou pouco mais de milhões de anos, quando por aqui andaram, entre outros, crocodilos e mastodontes.
Três anos mais tarde, estava eu em Paris a estagiar no Museum National d’Histoire Naturelle, o professor Christiansen convidou-me a visitar o seu belo e organizado territrório, numa espécie de gentil retribuição do acolhimento que lhes déramos. E foi assim que conheci o essencial da geologia e da geografia do país de Hans Christian Andersen, grandemente arrasado pelos glaciares, durante a última Idade do Gelo [4], onde o relevo mais acentuado não ultrapassa a altura de um simples outeiro na paisagem alentejana. Abundam por todo o território os calhaus e blocos de rocha de diversas naturezas, meio arredondados, embutidos num solo negro.
São elementos das incomensuráveis moreias [5] que, na periferia da imensa calote polar em transgressão sobre as áreas a Sul, ali ficaram, aquando do degelo que se seguiu.
A. Galopim de Carvalho
Notas:
[1] Nesse tempo o Mondego não estava ali represado como hoje se nos depara.
[2] Descoberto em 1863, por Carlos Ribeiro, e estudado pelo padre francês Jean Roche na segunda metade do século XX.
[3] Termo local que designa as ocorrências pré-históricas do mesmo tipo, existentes na Dinamarca.
[4] Referida na Europa por Würm e, na América do Norte, por Wisconsin. Com uma duração de mais de 50 mil anos, terminou há cerca de 18 mil.
[5] Reunindo os mais variados tipos de rocha do soco escandinavo, estas moreias atravessaram os terrenos hoje submersos pelo Mar Báltico e atingiram o Norte da Alemanha, da França e da Polónia, ao mesmo tempo que, em Portugal, o gelo deslizava nos vales glaciários das serras da Estrela e do Gerês.
1 comentário:
Diria de Lord Byron indelicado. Embora o conhecimento para compor da sabedoria seja necessária atenção e cito por via deste impecável texto, do estimado Professor Galopim de Carvalho. Diga-se das variáveis de experiência, conhecimento e causa, incluido também no tratamento da gramática. E, no ensejo a questão de nobreza, do Lord pois, cito com relação a gente desta procedência que nas redondezas da Bretanha, conhecida por Island Stronsay, traduzem-na por ilha da pedra, invocando a forma gaelica; pois de ledo engano.
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