Texto do Professor Galopim de Carvalho, com os agradecimentos do De Rerum Natura.
Definindo francofonia como a adopção da língua francesa como língua de cultura, ou como língua franca por quem tem outro idioma como vernáculo, podemos afirmar que Portugal foi um país francófono, numa tradição vinda da Europa de séculos atrás.
No meu tempo de Liceu, o francês era a segunda lingua obrigatória, ao passo que o inglês podia pemutar com o alemão.
Nos meus anos de Faculdade, como aluno e como assistente, o francês dominava nas relações académicas e nos livros da especialidade, nos compêndios e nos manuais de estudo.
Quem, da minha geração, não matou os olhos nas 1523 páginas dos dois volumes (mais de três quilos de papel) dos “Príncipes de Géologie”, de Paul Fourmarier? Quem é que não se perdeu no “Manuel de Paléontologie Animale” e no de ”Paléontologie Végétale”, com cerca de mil páginas de informação sobre a vida do passado?
Nesse período áureo da penetração da inteligência gaulesa na nossa vida cultural e científica, em particular, no ensino superior e na investigação, a maioria dos estágios dos nossos assistentes e jovens investigadores tinha lugar em França, muitos deles em Paris. São numerosos os nomes dos grandes autores francófonos sobre os quais assentou o essencial da preparação dos universitários da minha geração, da medicina à física e química, da zoologia e botânica à mineralogia e geologia. A par das obras francesas, as alemãs, que as havia de grandes autores, pouco entravam nas estantes das nossas bibliotecas, mercê de uma língua que só um ou outro dominava.
Com maior divulgação, mas não tanta quanto a dos livros em francês, havia os dos autores que faziam uso da língua inglesa, em especial, americanos, britânicos e uns tantos do Norte da Europa.
Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial (1939–1945) deram hegemonia ao inglês, em grande parte por influência dos Estados Unidos da América, situação que se acentuou com a globalização de múltiplos sectores da actividade dos povos deste planeta, já referido, por alguns, por “aldeia global”.
Nos três anos que vivi na “Cidade da Luz”, de 1962 a 1964, no seio de uma comunidade de geólogos e geógrafos, participei em algumas reuniões internacionais e, condição imposta e assente, o francês era a via de comunicação inter pares. Mas a hegemonia de língua de Molière tinha os dias contados.
Um caso paradigmático desta evolução de que fui testemunha, passou-se com o livro “Géologie des Argiles”, de George Millot, editado em Paris, pela Masson, em 1964. Obra notável e pioneira deste que foi meu mestre, abriu-me o caminho aos estudos que empreendi, permitindo que me antecipasse, aos meus pares americanos e ingleses, nas conclusões a que cheguei, dada a pouca penetração do francês no universo anglófono. As concepções deste ilustre professor de Estrasburgo só tiveram a divulgação, que se impunha, e a correspondente penetração na comunidade dos geólogos, a partir da edição deste seu livro, em inglês, sob o título “Geology of Clays”, na Springer-Verlag, N.Y., em 1971.
Uma influência da francofonia na nomenclatura petrográfica foi a que, em minha opinião, deu origem a uma imprecisão que ainda hoje persiste em muitos manuais de ensino e, até, em textos científicos. O petrógrafo francês, Alfred Lacroix (1863-1948), que dedicou muito de seu estudo às rochas magmáticas portuguesas, usava a expressão rocha eruptiva, como sinónima de rocha magmática ou ígnea. O qualificativo magmática indica, e bem, que a rocha resultou da solidificação de um magma, isto é, um material rochoso total ou parcialmente no estado de fusão e, portanto, incandescente ou ígneo, de que temos exemplo na lava saída de uma erupção vulcânica. Neste caso, a rocha que se forma, o basalto, por exemplo, é, de facto, eruptiva.
Outras rochas magmáticas, como granito, resultam da solidificação em profundidade, na crosta, de magmas que nunca brotam à superfície e que, portanto, não dão origem a erupções. Designar estas rochas por eruptivas é, de facto, um erro.
Os grandes petrógrafos franceses do princípio do século XX foram beber esta imprecisão aos seus antecessores alemães, da segunda metade do século XIX, eles, sim, os criadores do termo germânico, Eruptivgestein, aplicado a qualquer rocha magmática, eruptiva ou não, e, daí, a expressão roche éruptive dos autores franceses. Foi, sobretudo, a partir destes que a expressão rocha eruptiva, com o mesmo significado de rocha magmática, entrou, erroneamente, na terminologia geológica portuguesa.
Há uma vintena de anos, ao tempo do Presidente François Mitterand, veio a Lisboa um seu enviado especial, com o propósito de contactar a comunidade dos nosso cientistas especializados em França e, desses contactos, concluir sobre as medidas a serem tomadas pelo seu governo, no sentido de reactivar a francofonia, já então, em franca regressão. O sujeito, cujo nome se me apagou da memória, ouviu de nós recomendações, entre as quais, recordo, as relacionadas com o preço das edições francesas e a necessidade de se aumentar o número de bolsas de estudo a subsidiar pelo seu governo. Posto isto, regressou à pátria e nunca mais ninguém ouviu falar dele nem do problema que o trouxera até nós.
Hoje em dia, os investigadores científicos portugueses e espanhóis, à semelhança de franceses, belgas e outros francófonos, quaisquer que sejam os seus domínios de especialização, escrevem os respectivos trabalhos (papers) na língua de Shakespeare. Isto, se quiserem que os seus resultados tenham a divulgação que pretendem dar-lhes e, o que também é considerado importante, sejam indicados internacionalmente no exigente e selectivo Scientific Citation Index.
Galopim de Carvalho
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1 comentário:
Outrora dissera a canção - Lisboa não sejas francesa.
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