sábado, 21 de janeiro de 2012

George Bernard Shaw e os "interesses britânicos"



Com muito agrado do DRN, e provável desagrado dos súbditos de Sua Majestade, aqui se publica mais um texto do ensaísta e crítico literário Eugénio Lisboa:

Na última cimeira europeia, o primeiro ministro britânico, David Cameron, auto-excluíu-se do processo em curso, alegando estar ali apenas para defender os sagrados “interesses britânicos”. Quando um primeiro ministro de Sua Majestade britânica invoca este poluído cliché, já se sabe que o faz por estar a ter, no seu próprio país, problemas graves, que ameaçam a sua continuação no poder. O toque de clarim destinado à mobilização nacional tenta descortinar um inimigo comum, que desvie, por algum tempo, a atenção dos eleitores, dos graves problemas internos, para supostos inimigos externos. Os “interesses britânicos” costumam surtir grande efeito, em situações como estas. É xenófobo, egoísta e um tanto reles, mas os políticos de Sua Majestade não costumam hesitar: apelar para a defes adesses “interesses” é um verdadeiro grito de “Às armas!”, que anula, instantaneamente, toda a racionalidade e decência e une os cidadãos até aídivididos, dispondo-os, na sua grande maioria, a apoiar o ministro, que, até há pouco, quereriam derrubar.

George Bernard Shaw, o grande dramaturgo irlandês, que conhecia os ingleses como ninguém – os irlandeses conhecem bem os ingleses, pelas piores razões possíveis – não os poupava, desmascarando-lhes as intenções torpes, por debaixo da nobreza dos princípios invocados. Era, precisamente, o autor de Pigmaleão quem observava, com tiro certeiro: “Um inglês faz tudo, invocando princípios: luta contra ti, ao abrigo de princípios patrióticos; rouba-te, invocando princípios de negócios; escraviza-te, alegando princípios imperiais.” Tudo – porrada, roubalheira, opressão – sob a alçada de um discurso nobilíssimo e alevantado.

O recurso a um chauvinismo nacionalista, em pleno palco de uma cimeira europeia, que deveria, por isso mesmo que é europeia, fazer esbater todos os pruridos nacionalistas, dá bem a medida do modo de ser insular daquela curiosa e, aliás, corajosa gente. “O nacionalismo”, observava um romancista de entre as duas guerras (Richard Aldington), “é um galo tonto a cacarejar no seu próprio chiqueiro.” Eis um anglo-saxão lúcido e sem medo de dar o nome aos bois. Outro – Robert Snayerson– oferece-nos esta medalha bem polida: “O orgulho nacional é a forma moderna do tribalismo.” Eis o que o inglês médio, mesmo no século XXI, ainda não compreendeu: de aí, persistir, absurdamente, na libra, na condução pela esquerda e no ódio ao sistema decimal. Admirável coerência, se quiserem, mas alimentada em pura obtusidade.

Voltando a Cameron, típico produto do pior conservadorismo inglês, é mais do que provável que o primeiro ministro britânico tenha julgado “necessário”, para salvaguardar o seu futuro político, recorrer ao chauvinismomais desbragado. Mas todos sabemos onde podem levar as chamadas “necessidades políticas”. O já citado George Bernard Shaw, persistente Nemésis dos vícios disfarçados dos ingleses, notava, provavelmente a pensar nestes, que “as necessidades políticas se revelam, por vezes, erros políticos.

A invocação inoportuna dos “interesses britânicos”, particularmente no contexto de uma cimeira europeia, trouxe-me irresistivelmente à memória uma passagem célebre de uma das peças mais famosas do grande dramaturgo irlandês: Santa Joana. Numa reunião em que se congeminava o julgamento de Joana d’Arc, estando presentes o bispo Cauchon, Lord Warwick e um sanguíneo capelão inglês, Cauchon adverte: “Eu não sou meramente um bispo político: a minha fé é, para mim, o que a vossa honra é para vós; e se houver uma saída por onde esta baptizada filha de Deus possa esgueirar-se para obter a salvação, guiá-la-ei nessa direcção.” Isto irrita os ingleses, que querem “despachar” o julgamento e levar, rapidamente, a Donzela à fogueira. Iracundo, o capelão inglês reage, chamando “traidor” ao bispo francês, que se exalta e responde altivamente, nestes termos: “Vós mentis, padre. Se vos atreverdes a fazer o que esta mulher [Joana d’Arc] fez – pôr o vosso país acima da Santa Igreja Católica – ireis para a fogueira com ela.” Warwick, pragmático, conciliador, dirige-se, apreensivamente, ao bispo: “Meu Senhor: peço-vos desculpa pela palavra [traidor] usada por Messire John Stogumber. Não significa em Inglaterra o mesmo que em França. Na vossa língua, traidor significa aquele que trai: alguém que é pérfido, traiçoeiro, desonesto,d esleal. No nosso país, significa simplesmente alguém que não é totalmente devotado aos nossos interesses ingleses.”

Esta flecha envenenada, atirada por Shaw aos ingleses, desvela bem as grandes prioridades da pátria de Shakespeare, que se escondem um pouco por detrás daquele hipócrita “simplesmente” – os “interesses” são tãos agrados que o não total empenho na sua defesa seria – e é – nada menos do quealta traição, mais grave, de longe, do que o estupro ou o assassínio. Vem, a propósito, citar o romancista Malcolm Bradbury, quando dizia: “Gosto dos ingleses. Têm o código de imoralidade mais rígido do mundo.” E, também, digo eu, o mais original...

Os ingleses estão tão convencidos da sua superioridade em relação ao resto do mundo, que Cecil Rhodes afirmava que ter nascido inglês era o mesmo que ganhar a taluda, na lotaria da vida. E um personagem de uma peça de Shaw não hesita em afirmar: “Nós não fomos lealmente batidos, my Lord. Nenhum inglês é jamais lealmente batido.”

Há neste convencimento cego uma estreiteza, uma espécie de incesto sufocante e grotesco de que toda a gente se apercebe, menos o singleses. O romancista e historiador H. G. Wells, espírito universalista e, sob tantos aspectos, tão pouco inglês, bem avisava: “A democracia ateniense sofreu muito devido à estreiteza do patriotismo, que é a ruína de todas as nações.” Mais malcriados e directos, os franceses dizem-no de outra maneira: “O casamento produz cornudos e o patriotismo produz imbecis” (Paul Léautaud, Journal). Mas foi, afinal, Bernard Shaw (sempre ele!) quem disse o óbvio: “O patriotismo é a nossa convicção de que o nosso país é superior a todos os outros, por termos nascido nele.

David Cameron e os ingleses, em geral, deviam meditar nestas verdades simples e humildes, para evitarem falar de “interesses britânicos”, em ocasiões em que o tom apropriado seria coesão e solidariedade. O anúncio recente de estarem a preparar uma grande armada para repescarem súbditos britânicos de uma alegadamente falida Europa continental vai direitinho para um exigente antologia de disparates de dimensão galáctica!

Eugénio Lisboa

Na fotografia: David Cameron.

1 comentário:

guna disse...

Basicamente, o autor está a criticar o PM por ter sido honesto. O mesmo texto podia ter sido escrito para qualquer país (europeu). O europeus nunca se sentiram Europeus. Na UE, a diferença é que uns ainda podem bater o pé, outros só podem baixar as calças!

p.s.: "...persistir, absurdamente, na libra, na condução pela esquerda e no ódio ao sistema decimal" - mas o marco alemão é a melhor moeda para RU? Aproximadamente 1/3 do planeta conduz pela esquerda. Conhece alguma escola no reino que não ensine no S.I.?

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