sexta-feira, 12 de novembro de 2010

DO RACIONAL AO IRRACIONAL


Pequeno trecho do meu livro "A Coisa Mais Preciosa que Temos" publicado pela Gradiva e esgotado no editor (foi aqui ligeiramente ditado):

É fácil encontrar hoje cientistas cujo discurso toca as fronteiras do racional e, por isso, as fronteiras do irracional (fronteiras essas que não são fixas). Parece-nos até, com o avanço vertiginoso da ciência, que o racional e o irracional estão por vezes muito próximos. A ciência que se desejaria racional tem amiúde assomos de irracionalidade. Para só referir exemplos da física, no quadro da teoria da relatividade geral há quem fale de viagens no tempo e no quadro da teoria quântica há quem fale de comunicação instantânea à distância. Não se deve ficar preocupado com isso. Nem se deve, por causa disso, deixar a ciência.

Em primeiro lugar, não é possível fundamentar com a ciência toda a realidade. A ciência pode tratar de muitas coisas, mas não é tudo o que o homem é capaz. A arte e a religião são, por exemplo, duas grandes actividades humanas que pouco ou nada têm de científico apesar de, naturalmente, se cruzarem com as ciências. A ciência é um processo limitado de apreensão do mundo e do homem, e não lhe pedir mais do aquilo que ela pode dar. Por vezes ela tem a tentação de entrar onde não é chamada, procurando responder a anseios humanos.

Depois, há que procurar compreender a deriva para o irracional. No livro “As Derivas da Argumentação Científica” (Instituto Piaget, 2000), a filósofa francesa Dominique Terré efectua uma análise muito interessante daquilo que pode ser visto como a irracionalidade produzida por alguns cientistas. A autora fornece-nos abundantes exemplos, como o matemático René Thom, que aplicou ou deixou aplicar a noção matemática de catástrofe bem fora do seu contexto original, o físico Brian Josephson que depois de ter ganho o prémio Nobel da Física enveredou por caminhos do misticismo, o físico Fritjof Capra, que procurou ver semelhanças entre a mecânica quântica e a filosofia oriental, o químico Ilya Prigogine, que a partir da sua teoria dos fenómenos irreversíveis procurou construir toda uma cosmovisão, o biólogo Henri Atlan, que passou da auto-organização natural para o misticismo judaico, etc. Todos eles apresentam derivas da argumentação científica, todos eles parecem de certa maneira à deriva na sua argumentação.

Em quase todos esses casos trata-se de levar metáforas e analogias demasiado longe. A metáfora e a analogia são parte essencial do discurso científico, são criadoras de racionalidade, mas uma metáfora nunca é uma descrição completa e uma analogia nunca é uma equivalência. Assim, se não houver vigilância, tanto uma como outra podem também ser geradoras de irracionalidade. As metáforas e analogias, frutos da imaginação humana, são tão úteis como perigosas. Pascal, nos seus “Pensamentos”, referiu-se à imaginação como “essa mestra do erro e da falsidade, e tanto mais velhaca que nem sempre o é”.

8 comentários:

Anónimo disse...

Frente à ciência propriamente dita,
o mundo devassando em suas normas,
mais longe alcança a poesia escrita
sob as mais simples e diversas formas!

JCN

Anónimo disse...

Ultrapassar a fronteira
da própria realidade
é talvez da humanidade
das vantagens a primeira!

JCN

Anónimo disse...

Nada impede que a ciência
vista o véu da poesia
que em termos de alegoria
não lhe tira transparência!

JCN

pinto disse...

Academia das Ciências coloca na sua página Informação Complementar / Links Externos a Wikipédia

Exemplo
http://www.acad-ciencias.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=626

Um pouco estranho já que esta enciclopédia virtual contém inúmeros erros, será isto racional?

Anónimo disse...

Caro Pito:
Se não contivesse erros não valeria a pena consultá-la.

Rui leprechaun disse...

E por que não será "supra-racional" ou "meta-racional" em vez de irracional?!

Ou seja, que razão haverá para considerar não racionais essas especulações fora do campo estritamente científico, em vez de encarar a possibilidade de ultrapassarem os limites da racionalidade?

Afinal, é nisso que consiste a intuição ou "conhecimento directo não mediado pela razão", uma forma superior e mais perfeita de saber, acerca da qual ignoramos quase tudo.

Em suma, apenas balbuciamos e ainda mal gatinhamos, nesta primeira infância do conhecimento humano. Logo, permanecemos a esse nível socrático de nada saber, quiçá com a perigosa ilusão acrescida de que já sabemos muito!

Ora quando se confunde ainda o irracional com o supra-racional, que é o verdadeiro intellectus... che sappiamo?

Nulla, niente... veramente!

joão boaventura disse...

Caro Pinto

Se me permite, Academia das Ciências de Lisboa, só podia remeter para leitura complementar, a Wikipedia, com a certeza de que a enciclopédia livre não continha erros históricos relativamente à biografia de Moses Bensabat Amzalak, ou, possivelmente, até a tenha fornecido.

Uma instituição modelar, secular e séria, como é a Academia das Ciências de Lisboa, tendo a presidi-la o Prof. Doutor Adriano Moreira, nunca encaminharia nenhum leitor para sítios contendo erros factuais.

Posto isto, considero que a medida da Academia das Ciências de Lisboa, terá procedido bem, com a vantagem de permitir um conhecimento mais alargado sobre a biografia da figura de Moses Bensabat Amzalak, pelo que tomo a liberdade de também a indicar aqui, a quem estiver interessado no tema.

Caro Pinto, a sua participação foi útil, porque permitiu chamar a atenção para uma figura da economia nacional, a economia que tem feita a agrura deste país.

Cordialmente

joão boaventura disse...

Grandes Mistérios Habitam

Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.

Fernando Pessoa,
in "Cancioneiro"

"O PODER DA LITERATURA". UMA HISTÓRIA, UM LIVRO

Talvez haja quem se recorde de, nos anos oitenta do passado século, certa professora, chamada Maria do Carmo Vieira, e os seus alunos do 11....