Falar de mim, na primeira pessoa, não é, talvez, o protocolo que melhor me convém. O homem é menos ele próprio, quando fala em seu próprio nome, sugeria o pérfido e certeiro Oscar Wilde. Nos desvãos da pouca poesia que escrevi e no romanesco clandestino em que me escondo como quem se revela, quando escrevo ensaios, está talvez algo de mim que é mais fundo e genuíno, nesse “fingimento”, do que em textos que dão abertamente voz ao nu e “haïssable moi”. Por outro lado, dizer muito em 8500 caracteres... Tentarei.
Descobri o incrível e improvável milagre de existir, na antiga Lourenço Marques, uma das mais bonitas cidadezinhas do continente africano. Não nasci num berço de ouro e quase dou graças aos deuses por esse dom que me ofertaram o da pobreza. Meu pai, natural de Alcobaça, era um homem altamente inteligente e um estudioso cheio de iniciativa mas, tendo apenas a instrução primária, começou a vida como pequeno funcionário dos CTT de Moçambique. Por mérito, chegaria a Director mas, em 1930, quando nasci, o funcionário era ainda pequeno e o salário ainda mais pequeno, o que me fez vir ao mundo com estatuto de quase marginal. Vi a luz num bairro limítrofe e paupérrimo – o Quebra Bilhas – numa casa de madeira e zinco, que o sol sub-tropical aquecia impiedosamente. Este estatuto de outsider, em outros pelouros, iria permanecer comigo pela vida fora.
Ser pobre tem vantagens eminentes: ganha-se um gosto prodigioso pelas coisas que se quer ter. Leva-se mais tempo a consegui-las e, enquanto se não conseguem, passa-se o tempo a namorá-las. Quantas horas não passei a cocar, com desejo sofreado, as montras da Minerva Central, de onde me desafiavam "O Retrato de Dorian Gray", "O Moinho à Beira do Rio" ou os "Filhos e Amantes". Os meus colegas mais ricos tinham belos estojos de desenho, imponentes godés, pastilhas para aguarelas e abundantes bisnagas para “gouaches”, dicionários novos e reluzentes, livros de Salgari e Júlio Verne. Iam ao Scala e ao Gil Vicente ver tudo quanto havia de bom e de mau no cinema. Eu ficava-me pelas “borlas” do Scala e invejava, de longe, os filmes da Metro e da "20th Century Fox", que passavam só no Gil Vicente. Mas, a mim, sabia-me melhor e mais fundo o pouco que ia conseguindo e com que sonhara muito, antes de conseguir.
Na escola primária, tive óptimas professoras: a D. Ernestina Machado, na Infantil e na 1ª classe – grande pedagoga que nos pôs a ler e a contar com uma energia fácil e bondosa – e a D. Laurinda Magalhães que, com a sua voz um pouco rouca e calorosa, nos metia no coração e nos fazia gostar da gramática e de outras coisas. Era uma espécie de mãe substituta, bondosa sem pieguice e bastante competente. E não gostava de nos bater. A escola era a Paiva Manso e ficava no extremo pobre da Avenida 24 de Julho, ao lado do Esquadrão de Dragões, que nos fascinava por causa dos cavalos. Ali não havia meninos ricos e o director, de cabelos já brancos, era o Sr. Garradas, espécie de avozinho passa-culpas, a quem as mães pediam, em vão, que nos “chegasse”. A campainha estridente e amiga anunciava os intervalos libertadores: a meio da manhã, eu comia um pãozinho de forma circular e massa fofa, com manteiga, e bebia uma garrafa de leite com "Toddy". A minha mãe lá se arranjava para esticar o parco dinheiro e nos permitir esses luxos. Da escola à casa – que ficava no Alto Mahé, isto é, na Lourenço Marques “profunda” – ia a pé, por caminhos quase só de areia.
A escola e, depois, ainda mais, o liceu eram lugares sagrados e os professores uns senhores veneráveis que olhávamos com um misto de respeito e inveja. Deviam saber muito e, desse muito, ensinavam-nos apenas umas pepitas avaras, para não nos magoarem demasiado.
O Liceu, que se chamara 5 de Outubro e passou a chamar-se “Salazar”, no ano em que nele entrei – 1940 – ficava no extremo afluente da 24 de Julho, entre esta e o Cabo Submarino. Foi aí que entrei num Novo Mundo. Muitos dos meus colegas eram obviamente bem aviados de finanças: tinham bonitos relógios de pulso, vestiam com algum requinte, sobraçavam pastas com as quais eu nem sonhava e os pais vinham buscá-los de carro, no fim das aulas. E, à tarde, tinham as chamadas “aulas de estudo”, pagas, durante as quais lhes davam “explicações” e os ajudavam a fazer os deveres. E comiam amendoim torrado, que dava, ao ambiente das aulas, um cheirinho forte que ainda hoje me “atinge” a memória bem mais fundo do que todas as pífias madeleines de quantos Prousts haja por aí.
Os meus colegas afluentes não eram diferentes só pelo que tinham e eu não tinha: sentiam-se sobretudo à vontade com um certo vocabulário sofisticado que, para mim, vindo dos subúrbios, era chinês. Lembro-me, em particular, da estranha palavra “ironia”, para a qual eles se voltavam com desenvoltura e eu à rasca sem saber o que aquilo queria dizer. Talvez, por isso, mais tarde, para me desforrar e ir mais longe do que “eles”, pus-me a aprofundar a “ironia transcendente” do Antero e a “ironia trágica” do Jaime Franco, isto é, do Régio (rindo-me, à sucapa, da pífia ironia “deles”). Dizia implicitamente, com os meus botões: “Só queria que eles me vissem agora, a saber mais de ironia do que eles todos juntos!” Recalques... Mas, em suma, sabia que andava a travar uma luta desigual: eles, equipados até aos dentes, eu, com armas desadequadas que escondia, envergonhado. Por isso, melhor me soube a vitória – de que nunca me jactei – quando me comecei a destacar como aluno. Tive, no liceu, professores inesquecíveis: o Reis Costa, imprevisível, perigoso, cultíssimo e sedutor (meu professor de Francês), o Jaime Rebelo (também de Francês, exímio pedagogo e ex-futebolista, além de oposicionista convicto), o Vieira Júnior (excepcional professor de Matemática que nos transformou a todos em “viciados” em problemas de álgebra e geometria), o Duarte Marques, o “caçador” (declamatório, enfático, falando com itálicos sublinhadíssimos mas entusiasta genuíno de literatura, com um poder de comunicação quase exaltante - só lhe não perdoo ter preferido Balzac a Stendhal...), a Maria Luísa Soares, a “mamba” (mulher sábia e brilhante, professora de “tudo” e, no meu caso, de Filosofia, de que me tornei, para sempre, freguês), o Cardigos dos Reis (fascinante, sardónico, “poseur”, pronto no bote, ecléctico, geógrafo, jurista, historiador, encantador de serpentes, provocador, no melhor sentido, fazia-nos pensar: “Quero ser como ele...”), tantos outros! Foram anos de aprendizagem e descoberta. Mesmo sem grandes meios, acabei por ler muito: meu Pai, sabendo-me esfomeado, baratinava a minha Mãe e comprava-me livros à sorrelfa. Por outro lado, os colegas de meu Pai, que iam de licença graciosa à metrópole, por vários meses, deixavam as suas estantes com livros em nossa casa e eu ia-me refastelando. Melhor ainda: em viagem de Lisboa para Lourenço Marques, muitos dos livros encomendados pelas livrarias “apanhavam” água nos porões e chegavam imprestáveis para venda e iam para o refugo. Mas ficavam legíveis. Foi assim que me chegou um dia às mãos, todo estragado mas convidativo, cheio de luzes e buzinas, o romance de Stendhal, Le Rouge et le Noir, numa primorosa tradução de José Marinho. Apaixonei-me logo pela Senhora de Rênal para o resto da minha vida e tomei como modelo sedutor a vivacidade, a clareza, a frontalidade e a acutilância da prosa de Stendhal. Li Voltaire, Charlotte Brontë, Thomas Mann, Lawrence, Plutarco, Platão, Panait Istrati, Balzac, Edgar Poe, Hemingway, Conrad, Saroyan, Martin du Gard e "tutti quanti" e, em 1947, despedindo-me de Lourenço Marques e do Nero, embarquei para Lisboa, que me desapontou, mas a que me fui habituando (o principal defeito de Lisboa era não ser Lourenço Marques). Fiz o curso de engenharia que começou por ser civil mas passou a electrotécnica, no 4º ano, fui a Paris, em Volkswagen de amigos, em 1953 (retive, dessa viagem, dois “highlights”, o Museu Rodin e o quadro de Leonardo, “A Virgem, Santa Ana e o Menino”, e, é claro, os grandes "boulevards"), retomei o serviço militar que tinha começado em Moçambique, num período que ali passei, em 1952, fui colocado, como oficial miliciano, em Portalegre (por mau comportamento em Mafra) e, aproveitando para meu bem o mal que os deuses fazem, conheci ali – e frequentei-os assiduamente – o Régio, o Dr. Feliciano Falcão e o inesquecível capitão Carlos Saraiva (hoje, coronel Saraiva, reformado, mas, para mim, o incomparável, discreto, bondoso, compreensivo, subtil e empenhado Capitão Saraiva – que me salvou de tantas tropelias e “protegeu”, com riscos óbvios”, as minhas idas a Lisboa para concluir o último ano da licenciatura).
Em 1955 regressei a Moçambique, onde tinha nascido e onde fiquei até 1976. Foi um período cheio, a que se sucederam a Suécia, Londres e, de novo, Portugal. Mas isso é outra história que aqui não cabe... Em tudo o que tenho dito e escrito, procurei usar sempre daquela “surpresa do natural” de que falava Pascal. Tem custos mas vale a pena.
Eugénio Lisboa
Na imagem: O ensaísta Eugénio Lisboa.
6 comentários:
"Vale a pena"... para quem, senhor Eugénio Lisboa? JCN
Ternura.
Em termos de ternura tudo bate certo! Ai dos poetas... se assim não fosse! JCN
Vale sempre a pena ler Eugénio Lisboa.
onésimo almeida
Que é que não vale a pena... se a alma não é pequena?! JCN
Que coincidência, pois também fiz serviço militar em Portalegre, entre 1945 e 1948, como oficial miliciano, também conheci o José Régio de vista e ao longe, de esquivo que era, misantropo, e isolado como eu.
Também fui, de certa maneira, um Capitão Saraiva, porque tinha um colega que andava a estudar na Faculdade de Direito, mas tinha autorização para deslocar-se a Lisboa para os exames, desde que alguém o substituísse, e eu ofereci-me sempre para o fazer, até quando tinha de se concentrar para estudar as matérias, quinze dias antes. Licenciou-se e vi o seu nome nos jornais, ocupando cargos, mas nunca nos encontrámos. Cada um tinha tomado o seu rumo. Também me lembro do nome mas, por recato, não o cito.
Depois tive um certo desencanto do Régio porque numa aula, no Liceu Mouzinho da Silveira, de Portalegre, porque um aluno, que era alto, não soube responder a uma pergunta, disse-lhe "homem grande, espeto de pau". O aluno ripostou "homem pequenino, ou velhaco ou dançarino", porque, como é de ver, José Régio era baixinho. Aí o professor denunciou-o ao Reitor porque tinha lhe faltado ao respeito, e o aluno - a quem o professor tinha faltado ao respeito - foi suspenso por dois dias.
Isto é o que me faz lembrar a citação de Eugénio Lisboa, que conheci pessoalmente em Lourenço Marques, quando referiu ter feito serviço militar em Portalegre.
Foi uma espécie de "se bem me lembro", o genérico das preciosas charlas de Vitorino Nemésio na RTP.
Já agora, e a talhe de foice, tive um colega que era oficial do quadro, o alferes Saraiva que se apaixonou por uma senhora mas, como Salazar não autorizava casamentos de oficiais com pelintras, porque tinha a consciência de que pagava mal, teve que ir a Badajoz para oficializar o enlace.
Como saí de Portalegre em 1948, o Saraiva com a patente de Alferes, ignoro se será o mesmo oficial já com a patente de Capitão, o que é muito provável. E lembro-me que era um colega discreto mas muito bom rapaz, o que condiz com a descrição que Eugénio Lisboa dele agora faz.
A história era assim, quando quis casar tive de entregar uma certidão comprovativa de que a minha mulher também trabalhava, porque Salazar tinha a consciência de que pagava mal aos professores. Mas, como a minha mulher também era professora, aí Salazar aquiesceu.
Depois era preciso que a minha mulher pedisse autorização para usar o meu apelido, mas aí mandei eu e disse-lhe para nem pensar nisso duas vezes, porque só conhecia uma lei geral e não a particular. E aí está como a minha mulher não tem o meu apelido, porque aquilo já me cheirava mal, tanta lei mesquinha.
Hoje, passados tantos anos, verifico que Portugal não mudou. Continua com leis mesquinhas.
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