terça-feira, 2 de março de 2010

D. MANUEL DO CENÁCULO, UM ILUMINISTA CATÓLICO


Foi o iluminista Voltaire que disse “Deus é um comediante a actuar para uma plateia assustada de mais para rir”. De facto, o espírito das luzes, que ganhou força na Europa no século XVIII, não conviveu bem com a religião dominante no Velho Continente. Mas houve muitos iluministas católicos e até um movimento com o nome de Iluminismo Católico que tentou trazer para dentro da Igreja, adaptando-o convenientemente, algum do espírito das luzes.

Um dos nomes maiores do Iluminismo católico português foi decerto D. Manuel do Cenáculo (1724-1814), que participou na Junta de Providência Literária que preparou a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra e que dirigiu a Real Mesa Censória, um alto cargo na governação do Marquês de Pombal, e que foi também Bispo de Beja e de Évora. A principal marca que nos deixou foi a criação de bibliotecas, como a Biblioteca da Real Mesa Censória, a Biblioteca da Diocese de Beja e a Biblioteca Pública de Évora, que em 2005 celebrou os 200 anos.

D. Manuel do Cenáculo, de seu nome completo D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas Anes de Carvalho, deixou resmas de manuscritos, incluindo pormenorizados diários e correspondência trocada com um grande número de personalidades da época, que em boa parte se encontram guardados hoje na Biblioteca de Évora. Uma pequena mas significativa amostra desses escritos saiu há pouco no volume coordenado por Francisco António Lourenço, professor de história na Universidade de Évora, com o título “D. Manuel do Cenáculo. Instruções Pastorais, Projectos de Bibliotecas e Diário”, que é o número 8 da colecção “Ciência e Iluminismo” da Porto Editora. Essa colecção é um verdadeiro achado, para os leitores, como eu, que têm particular interesse e simpatia tanto pela ciência como pelo Iluminismo (os dois estão, como é sabido, muito próximos). A série abriu com a publicação de documentos de um outro iluminista, cientista botânico, o Abade José Correia da Serra, e continuou com textos, entre outros, de Domingos Vandelli, o químico e naturalista que de Pádua veio para Lisboa e Coimbra, e Diogo de Carvalho e Sampayo, o autor do curioso embora desconhecido “Sistema das Cores”.

Vejamos, em mais pormenor, a biografia do prelado que tem o seu retrato, merecidamente em grande, na Biblioteca Pública de Évora. Nasceu em Lisboa de origem humilde (o pai era serralheiro de Constantim, arredores de Vila Real). Aos 16 anos entrou para a Ordem Terceira de S. Francisco, da qual viria a ser superior provincial. Forma-se em 1749 em Teologia na Universidade de Coimbra, onde ensinou até 1755, o ano do grande terramoto. O Marquês nomeou-o para o importante lugar de confessor e perceptor do príncipe D. José, filho de D. Maria I e neto de D. José (o livro aqui em causa contém uma lista de livros recomendados para a educação do príncipe). Este príncipe, que casou aos 15 anos com uma tia que tinha o dobro da idade, acabou por falecer de varíola aos 27 anos, permitindo que o trono real fosse ocupado por seu irmão mais novo, que se tornou D. João VI. Em 1770 D. Manuel do Cenáculo foi nomeado o primeiro bispo de Beja, já que a diocese foi criada nessa mesma data. A Junta de Providência Literária serviu para escrever os Estatutos da Universidade de 1772 (o livro em causa dá conta, na parte dos diários, das reuniões realizadas para esse fim). A Real Mesa Censória, fundada em 1768, e da qual D. Manuel do Cenáculo foi o segundo presidente, desempenhou um papel essencial no despotismo do Marquês. Os livros contra a religião eram sumariamente proibidos pela junta formada quase só por clérigos. Mas não eram só esses os livros proibidos: também os “livros que neguem obediência ao Santo Padre, os livros de astrologia, feitiçaria, que promovam a superstição, livros obscenos, os que deturpam as sagradas escrituras e ainda os dos pervertidos filósofos destes últimos tempos”. E até obras dos jesuítas foram alvo de censura, o que não admira sabido como é o ódio do Marquês aos jesuítas. D. Manuel do Cenáculo tentou lá criar uma biblioteca dos livros entregues, que de algum modo é precursora ainda que distante do Depósito Legal.

Com a morte de D. José, o Marquês caiu em desgraça. E o mesmo aconteceu com os seus mais próximos colaboradores. D. Manuel do Cenáculo deixou a política activa, recolhendo à sua diocese de Beja. Aí a sua pastoral desenvolveu-se no sentido da instrução básica do povo analfabeto e de uma instrução mais elevada para os clérigos. Para isso valorizou o papel dos livros e das bibliotecas. D. Manuel do Cenáculo era um bibliófilo, com conta aberta em vários livreiros a quem comprava compulsivamente tudo o que, na sua opinião, de melhor saía no país e lá fora. E coligiu antiguidades: foi um coleccionista e um arqueólogo avant la lettre. Em 1808, o Regente D. João lembrou-se do mestre do seu falecido irmão para a diocese de Évora (nesse tempo o poder temporal e eclesiástico não eram distintos como hoje) O novo bispo de Évora subiu um pouco mais a Norte no Alentejo, mas continuou a sua acção na mesma linha. Muitos objectos que trouxe de Beja fazem hoje parte do Museu de Évora. E, de novo, fundou uma Biblioteca, a de Évora, que bem podia ter o seu nome. O projecto da Biblioteca da Real Mesa Censória e os Estatutos da Biblioteca Pública de Évora encontram-se transcritos no livro em apreço. Tanto as colecções arqueológicas como as colecções de livros viriam a sofrer com as Invasões Francesas, quando o bispo de Évora já estava velho e alquebrado. Desterrado para Beja, resistiu como pôde. Morreu próximo dos livros.

Duas palavras mais sobre o iluminismo católico e a ciência. Um documento do livro coordenado por Lourenço Vaz é bem elucidativo da tentativa de conciliar fé e razão. Tendo havido dúvidas sobre a qualidade da água baptismal de uma certa pia, o bispo não hesitou em fazer ele próprio uma experiência:

“Fiz uma junta composta de dois teólogos, de dois médicos, e dois cirurgiões, todos práticos na matéria, e eu provei a água que vossa mercê me enviou em uma redoma: todos igualmente provámos, e cheirámos a mesma água. Não lhe achámos coisa alguma que a inabilitasse para o Sacramento.”

Por outro lado, como bem informa o presente livro, D. Manuel do Cenáculo estava a par das novas correntes científicas. Não deixou de criticar Voltaire, mas isso não o impediu de reconhecer o importante papel desse filósofo como divulgador das ideias de Isaac Newton, que marcaram o século das luzes: “Quis Newton, diz Voltaire, que a luz fosse conhecida, e conhece-se a luz”. E sobre o grande antecessor de Newton que foi Galileu Galilei escreveu:

“Favorece a Providência o empenho de Galileu na invenção do Telescópio. Desta sorte o artifício aumentou as luzes dos modernos para emendarem os erros, tanto negativos, como positivos, dos que não conheceram semelhantes instrumentos, nem souberam, nem puderam trabalhar como os Galilei, e os Cassini.”

- Francisco António Lourenço Vaz (introdução e coordenação editorial), “D. Manuel do Cenáculo. Instruções Pastorais, Projectos de Bibliotecas e Diário”, Porto Editora, 2009.

3 comentários:

Anónimo disse...

Neste retrato... nem parece ele! JCN

Filipe LF disse...

É sempre interessante conhecer a vida dos grandes vultos da nossa História e Cultura. Num País que nem sempre zela da melhor maneira pela sua memória, a divulgação destes temas reveste-se duma importância particular. Obrigado professor e bem haja.

Anónimo disse...

Boa tarde:

Fico contente por esta referência a um vulto do iluminismo português. Se possivel gostaria de saber onde encontrou a referência aos apelidos Anes de Carvalho como pertencentes a Frei Manuel do Cenáculo. Não encontro qualquer fonte que confirme esses apelidos,daí a curiosidade. Obviamente não pretendo com isto por em causa o que escreveu, apenas sei que tenho trabalhado algumas fontes respeitantes a este autor e esses dois apleidos são para mim um verdadeira surpresa, daí que não seja para mim um assunto dispiciendo.

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