Sabendo-se que a leitura de qualidade tem uma importância fundamental ao nível das aprendizagens escolares e da própria formação da pessoa, diversos sistemas de ensino têm, nos últimos anos, investido na sua promoção.
Os discursos em torno do que se entende por "leitura de qualidade" e do "modo como se deve promover a leitura" não são, porém, sempre convergentes.
Para se pensar neste assunto, deixamos ao leitor do De Rerum Natura algumas opiniões de intelectuais, investigadores e professores que se têm debruçado sobre o assunto.
Começamos com um extracto de uma entrevista de Anne Rapin a Daniel Pennac (na imagem) professor e escritor francês empenhado em, como ele próprio afirma, "reconciliar as crianças com a leitura".
"Na sua obra sobre a leitura Como um Romance, o senhor promulga os dez direitos imprescindíveis do leitor, um dos quais é não ler, como meio de reconciliar alguns jovens com os livros?
Regra número um: não envergonhar os iletrados. Durante toda a minha vida trabalhei em ritmo de urgência nessa área. Tive contacto constantemente com crianças que estavam não apenas aborrecidas com a escrita, mas também socialmente ameaçadas. A leitura, além disso, é para elas algumas vezes ameaçada pela maneira como a escola a apresenta, que é puramente "médico-legal" e que funciona muito bem com "os que sabem ler", mas não com as crianças em dificuldade escolar. É urgente portanto reconciliar essas crianças com a leitura. Eu, pessoalmente, faço isso nas aulas, lendo em voz alta, falando-lhes de literatura, "contando-lhes histórias". Como um Romance tinha a função de apresentar a minha prática nessa área, sem a pretensão de transformá-la em "método". O problema das crianças que vivem nos inumeráveis círculos da periferia não é mais o facto de serem iletrados, nem é o de perderem o gosto pela leitura, mas o facto de nem mesmo dominarem a linguagem oral, por não terem a quem falar. A oralidade é a primeira coisa que se perde na periferia, onde os garotos são “encerrados” em blocos, onde se organizam necessariamente em bandos, onde a linguagem está reduzida a códigos de reconhecimento próprios ao bando, portanto à sua mais simples expressão (…).
A escola preenche então o seu papel de promover uma abertura?
Antes de mais nada, ela é obrigada a fazer o papel de promotora da reinserção social. O professor que chega até essas crianças deve, antes de as ensinar a ler e escrever, ensinar-lhes primeiro a se comportar, em segundo lugar a falar, ou seja a se comunicar, a levar em conta a presença de um interlocutor... Esse já é, por si só, um trabalho enorme que precede a simples transmissão de um saber.
A seu ver, o que seria necessário modificar em matéria de pedagogia e educação?
Não tenho uma posição teórica sobre essas questões, porque estou bem situado para saber que, seja qual for a opinião que tenhamos, existe sempre um momento, no dia 6 ou 7 de Setembro, no reinício do ano escolar, em que nos vemos sós diante de 35 indivíduos que vão constituir uma entidade realmente particular, diferente da classe ao lado e de todas as que tivemos antes. E dentro dessa entidade existem 35 individualidades que eu preciso obrigatoriamente de levar em consideração individualmente se quiser fazê-las progredir seja em que área for. A ginástica intelectual do professor consiste em criar uma dinâmica no interior desse grupo sem jamais negar qualquer uma das individualidades que a compõem; o que não faz parte do que se ensina aos professores, mas é a realidade quotidiana do seu trabalho. Porque, se eu nego um aluno como indivíduo, ou se, ao contrário, dou atenção demais a ele, o ambiente da turma ir-se-á desestabilizar. O professor deve portanto administrar, como se diz hoje, e de maneira instintiva, esse tipo de problema que não é, para falar a verdade, problema de ordem pedagógica, mas comportamental e afectivo. Se essas dimensões não forem levadas em consideração, se não nos ocuparmos dos "bons" alunos, a pedagogia vai-se tornar uma espécie de mecânica cega que alcança apenas 10% das crianças escolarizadas. Nós, professores, deveríamos poder dar provas de atenção real, de paciência, e também de uma certa gratuitidade nas nossas relações com os alunos. Talvez seja isso que eles chamam respeito.
Mas a transmissão dos conhecimentos na escola é cada vez menos desinteressada.
É verdade. Nós, professores, temos tendência, para nosso próprio conforto metodológico e para atingir os objectivos "rentáveis" que nos são determinados, a comportar-nos como usurários: é preciso que haja rendimento, e o mais rápido possível! Eu ensino-lhe uma lição hoje à tarde e você tem de a recitar amanhã. Isto, evidentemente, é necessário para criar nas crianças o hábito da regularidade no trabalho, mas é perfeitamente insuficiente para me dar a garantia de que essa lição será assimilada e que restará alguma coisa dela em dez anos. Da mesma forma, para fabricar verdadeiros leitores é preciso de vez em quando recorrer à informalidade. Por exemplo: na minha turma de 1.º ano do 2.º grau, das seis horas de francês por semana, eu reservava sistematicamente duas horas para falar da literatura em si mesmo, para ler romances com o entusiasmo de leitor. Fora do programa e sem qualquer exigência de restituição. De tanto ler, de relatar romances, de propor livros aos alunos e de os fazer circular na classe, no final do ano os 35 alunos tinham necessariamente encontrado um romance, um autor e, consequentemente, outros romances do mesmo autor, outros autores da mesma família literária, etc. Se raciocinarmos em termos objectivos, como professor de letras o meu objectivo é duplo: preparar os alunos para o baccalauréat (...) e, se me conseguir organizar, dedicar o meu tempo a fabricar leitores a longo prazo. Esperando, com isso, fabricar ao mesmo tempo homens e mulheres capazes de uma boa conversa e que saibam aproveitar para pensar um pouco por si próprios. Mas esse ensino só pode passar através do exemplo e da valorização de uma certa gratuitidade."
Mais da entrevista pode ser lido aqui.
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3 comentários:
Fazem o favor de enviar esta entrevista ao Senhor Alberoni. Talvez aprenda alguma coisa sobre Geografia.
LOL!!!
Do que sei e li de Alberoni, ele por certo que adorou esta entrevista. Aliás, no papel de professor universitário não o vejo a assumir outra pose que não seja a dessa gratuitidade nas nossas relações com os alunos. Pelo menos, é isso que ressalta em inúmeros textos, muitíssimo críticos e acutilantes, que escreveu sobre o ensino em Itália.
Aquilo que contudo mais me chamou a atenção nesta entrevista foi a ligeira mas subtil referência à autêntica tragédia da monodocência, ou a cultura de separação que a escola tradicional sempre promoveu e que continua ainda a cultivar o mais possível, pese embora os discursos inclusivos e cooperativos. Aliás, falando do caso português, uma "avaliação" inter pares é mesmo a proverbial cereja no bolo bem amargo do maquiavélico divisionismo, que se alimenta do velho espírito da competição retrógrada e saloia, à perfeita medida política de quem se rege pela cartilha da submissão ao tonitruante poder do cifrão!
...no reinício do ano escolar, em que nos vemos sós diante de 35 indivíduos que vão constituir uma entidade realmente particular, diferente da classe ao lado e de todas as que tivemos antes.
Esta "violência simbólica" do isolamento pedagógico ainda passa ao lado de muito professor e pedagogo. E, contudo, eles não faltam por aqui, há alguns neste blog. Que dizem ou fazem na sua prática de ensino, estimulam a cooperação na partilha do saber ou o isolamento e a competição do mais parecer?
A propósito dos direitos do leitor, eis o 1º enunciado por alunos de uma escola onde não temos turmas, não temos alunos separados por classes (...) não temos campainhas separando o tempo, não temos provas e notas.
Toda a criança tem o direito de não ler o livro de que não gosta.
Daniel Pennac compreende-o e concorda, Alberoni por certo também. Mas quantos professores respeitam ou sequer admitem um tal direito, ou ainda, para quantos professores o aluno é MESMO uma pessoa autónoma, livre e responsável?
Desta geografia sabe o Alberoni, ó Manel, mas estou curioso em saber qual é a que ele ignora! :)
Caro Rui.
Eu conheço a obra de Alberoni. De facto, não me pronunciei, num comentário anterior, sobre a obra de Alberoni, mas sobre uma recente entrevista aqui publicada na qual não consegui reconhecer Alberoni. Eis aqui a questão crucial.
Como já aqui desenvolvi a propósito do itinerário crítico que desabou sobre Caim de Saramago, uma obra não legitima uma ocorrência.
Face à súbita constatação de que o sistema de ensino em Portugal, bem como em muitos outros tópicos do território europeu, começa a dar indícios de que é incapaz de realizar os seus fins, desabou, em meu entender, na comunidade a desorientação e desconcerto em torno de lugares comuns que tendem a reunir, numa espécie de Praça de Concórdia, o universo integral dos pensadores centrados na matéria pedagógica.
Ora, do meu ponto de vista, nenhum sistema de ensino, prefiro dizer de educação, conseguirá realizar os seus fins se não os tiver configurado. E as grandes questões residem primeiro que tudo aí.
Porque parto deste princípio, coloco pois aqui o repto. Pelos alicerces. Qual o papel da escola e do sistema educativo, circunscrito aqui, por razões operacionais, à Escolaridade Obrigatória? Ensinar, no sentido tecnocrata de instruir, que era o real conteúdo dos grandes pensadores, progressistas num dado contexto, dos finais do Século XIX, ou formar, no sentido cultural e antropológico que informava o pensamento de Faure e os seus desenvolvimentos?
Apelo então, por recorrência, a outro tópico que aqui foi colocado posteriormente, versando a matéria da inovação. E faço apenas o registo da ambiguidade, pois não é óbvio se os opositores à, ou críticos da inovação, propõem o retrocesso. Eu acho que entram no mesmo pé dos que proclamam inovar, inovar, inovar…, proclamando retroceder… retroceder… retroceder… Nem uns nem outros me parece saberem bem como inovar ou para onde retroceder.
E eu proponho fazer uma pausa para reflectir.
O Caro Amigo consegue reconhecer o seu Alberoni na entrevista aqui recentemente reproduzida? Eu não consigo reconhecer o meu. Algo de ainda insondável se passa.
E quando me refiro a Geografia, estou centrado na súbita e surpreendente atribuição da crise de identidade europeia à intromissão da maquiavélica estratégia dos estados unidos para cercear a coesão cultural da Europa eliminando a memória, que passa a residir nas datas e na gramática. Não existe uma gramática europeia. E o pensamento pedagógico que quer caracterizar traz velhas raízes europeias e sul-americanas, nomeadamente brasileiras, que integram a memória identitária europeia e congregaram a sua coesão.
Não podemos, obviamente, produzir aqui um tratado. Mas, aqui, ou noutro espaço, nem que seja pessoalmente, gostaria de desenvolver consigo estes assuntos. Porque, em acordo ou desacordo, sei reconhecer os meus pares.
Sairíamos das trivialidades e atacávamos a coisa pela raiz e não pela copa.
Há quase vinte anos, a ponderação sobre estas questões foram cerceadas por uma reforma apressada e inconsequente. Por isso permanecemos ainda à «procura da rolha», perdoe-me a expressão.
Manuel
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