Ainda ninguém se lembrou, que eu saiba, mas decorre este ano, 2009, o quinquagésimo aniversário da publicação do romance Aparição, de Vergílio Ferreira. Estamos todos fartos de comemorações, mas nestes tempos de publicações às toneladas é justo falar deste livro pelo grande impacto que teve: local e nacional, à esquerda e à direita.
O livro produziu, na Évora do final dos anos cinquenta, em que decorre a acção, algum burburinho, com o reconhecimento das pessoas que teriam inspirado as personagens, e inferências sobre realidade e ficção, o que foi e não foi, como foi e como terá sido. Mas o importante não estava aí. A sua grande influência foi na literatura portuguesa do século XX, porque veio abanar o mundo literário de então e os padrões dominantes. Sobretudo os de um realismo social – o neo-realismo – que entendia a literatura como forma de denúncia e combate das injustiças sociais e das formas de exploração pelo capital e pelo latifúndio, impondo uma arte ao serviço dessa luta e remetendo o estético e formal para uma segunda linha. O que acabava por influir nos cânones de apreciação com esquemas psico-afectivos, culturais e estéticos que dominavam os editores, os críticos e os leitores.
Vergílio Ferreira introduziu a problemática do Eu, na linha de Albert Camus, André Malraux, Jean-Paul Sartre, é certo, mas com uma preocupação estética que afirma como prioritária. Poderemos dizer que é nessa síntese da importância do formal com a temática humanista que assenta a importância da sua renovação e se encontra a explicação para as ondas de aceitação e de rejeição que o livro provocou.
Agora parece-nos simples, mas estas situações causam em geral polémica e controvérsia que só o tempo acalma. Vergílio Ferreira trouxe para a literatura o tema do homem, colocou o homem concreto, a evidência do sujeito com sua fragilidade e grandeza no centro das preocupações estéticas e dos temas importantes, segundo ele, acabando por criar novos cânones de produção e apreciação. É certo que seguia os existencialistas, como disse, mas estes respondiam com a angústia do homem concreto e sua afirmação à cegueira das ideologias que, em nome do Homem e da Humanidade em abstracto o tinham esquecido provocando, e continuando a provocar a sua destruição em quantidades assombrosas, e impensáveis depois do Iluminismo e do Racionalismo.
Ora, para uma certa ortodoxia política e cultural então dominante, que vivia e sofria a ditadura salazarista e sonhava derrubá-la, o livro era uma manifestação da ideologia burguesa decadente e servia os interesses da política instalada. Muitos outros, porém, perceberam a sua novidade e importância, separando as coisas. Daí as polémicas directas e indirectas que provocou. Para o realismo social a problemática do eu existencial, a angústia individual na base do eu como produtor de arte, era o sinal de uma alienação moral e social inaceitáveis, porque o eu era insignificante, não tinha significado, não devia ter face aos grandes e imparáveis movimentos de libertação dos povos. As problemáticas individuais só atrapalhavam e as preocupações estéticas em excesso confundiam escondendo o essencial.
Ao revalorizar o formal, afirmando o seu valor intrínseco Vergílio Ferreira demonstrou, mais uma vez, que o essencial da arte está na força que emana dos criadores e não nos cânones que de fora lhes querem impor, ou manter para além do que a própria arte manda. A qualidade de Aparição mostra que ele tinha razão. A arte deve impor-se por si e o estético – no sentido de perfeita harmonia entre a forma e o conteúdo - é o grande e único critério. O resto é lixo que o tempo varre.
João Boavida
3 comentários:
Homenagem muito boa a esse grande livro da nossa literatura que até há uns anos era estudado no 12º ano, antes de ser substituído por Memorial do Convento. Sem querer diminuir este último, discordei e discordo da substituição. Aparição era bem recebido pelos jovens, motivava debates interessantes e ensinava a escrever bem, no sentido escolar da expressão. Agora, não raro, os alunos vêem uma peça de teatro, horrível, sobre o Memorial,lêem umas fotocópias e está feito -- porque, em cada turma, se podem contar pelos polegares de uma só mão aqueles que efectivamente lêem a obra.
Agradeço-lhe ter lembrado a efeméride, curiosamente esquecida por toda a comunicação social. Infelizmente os tempos que correm não são propícios à reflexão a que a obra de Vergílio nos convida. Como lamento que "Aparição" tenha desaparecido do Programa de Português do 12º ano! Retirou-se aos jovens a oportunidade de reflectir, de forma orientada e acompanhada, sobre as grandes questões que definem a nossa existência: a vida e a morte, bem como a de fruir das mais belas páginas da língua portuguesa.
Maria Neves
Felicito-o pela objectividade da análise. Continuo a apreciar a escrita (pelo menos muito dela) de Virgílio Ferreira. Também penso que continua a haver lugar para a discussão sobre a pulsão criativa e a liberdade do criador numa sociedade cada vez mais enclausurada e formalista.
Daniel de Sousa
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