terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Ciência e poesia

Tigre, tigre, chama pura
Nas florestas, noite escura,
Que olho ou mão imortal cria
Tua terrível simetria?

De que abismo ou céu distante
Vem tal fogo coruscante?
Que asas ousa nesse jogo?
E que mão se atreve ao fogo?


(…)


O Tigre, magnífico poema de William Blake (1757-1827), de que acima reproduzi o princípio, talvez tenha prendido demoradamente a atenção de Jacob Bronowski. Por alguma razão, imagino-o a deter-se nele, a lê-lo várias vezes, a decorá-lo.... Na verdade, a força da escrita do poeta-artista inglês impressionou o matemático-filósofo ao ponto de lhe ter dedicado, tanto quanto sei, dois livros (um datado de 1944 – William Blake. A Man Without a Mask – e outro de 1958 – Selections from William Blake).

A convivência, quando era ainda muito jovem, com as obras de escritores como Blake, Goethe ou Dickens despertou em Bronowsky uma enorme curiosidade pela literatura e, em particular, pela poesia. A natureza destas formas artísticas era, no seu entender, perfeitamente conciliável com a natureza da ciência, porquanto ambas as actividades decorrem da imaginação e da capacidade de construção do saber que, como humanos, possuímos. O modo como perspectivou essa relação constitui um dos mais interessantes e completos que conheço.

Quando, neste Janeiro, dei conta que se completou um século sobre o nascimento de Bronowsky, foi dessa relação que me lembrei em primeiro lugar. Entendendo que ninguém melhor do que ele próprio a poderá explicar, transcrevo, de seguida um excerto de uma entrevista que o filósofo George Derferb lhe fez em 1974 e que, como o leitor perceberá, possui a frescura e a inteligência que perpassam na sua obra.

G. Derferb: (…) Sei também – como resultado do trabalho que efectuei sobre a sua vida e obra – que se dedica ao estudo da poesia e da crítica literária. Como é que este seu interesse particular foi influenciado pelos seguintes factores: atitudes a respeito da ciência, convicção da necessidade de se articular uma série de valores, e compreensão das operações visíveis e invisíveis que são inerentes à ciência?

J. Bronowski
: Está a levantar agora uma questão fundamental. Não faz sentido pensarmos sobre a natureza do conhecimento se nos limitarmos no âmbito da actividade científica. As actividades artísticas são tão profundamente (o termo profissional é caracteristicamente), tão especificamente humanas, como as actividades ditas científicas. Inicialmente direi algo sobre a linguagem, já que é verdadeiramente indispensável se vamos falar de poesia.

A linguagem humana é, entre outras coisas, um género de arquivo do conhecimento humano. É diferenciada por um conjunto de características que representam certas potencialidades da mente humana. Há uma (…) que é única, tanto quanto sabemos. Temos um vocabulário de sinónimos que torna possível a articulação de frases que, embora à primeira vista pareçam idênticas, na verdade podem adquirir um tom emocional diferente. Noutras palavras, podemos – com este vocabulário – colorir as nossas predicações. Utilizo aqui o termo “colorir” no seu sentido mais belo e preciso, ou seja o estético. Esta característica que possibilita a criação poética é uma actividade tão específica à espécie como é a actividade científica. Além disso, estas duas actividades são inseparáveis, dada a existência dessa ligação entre as duas facetas da linguagem.

G. Derferb: No seu livro A identidade do homem, o professor explica uma outra relação entre a poesia e a ciência (…). Nesse livro caracteriza a poesia e a ciência como dois modos complementares de conhecimento.

J. Bronowski
: Sim. Há dois modos pelos quais os seres humanos compreendem o que existe para além da subjectividade imediata. Por um lado, há o modo poético pelo qual compreendemos como as outras pessoas sentem, já que partilhamos esses sentimentos. A literatura entusiasma porque através dela conseguimos participar num grande número de emoções que possuímos de uma forma embrionária (…). A leitura de uma obra permite, a cada um de nós, um desdobramento das nossas potencialidades – boas e más – que até então não haviam atingido maturação. A ciência é outra parte da consciência humana (…).

O conhecimento humano é um empreendimento criativo que permite visualizar o mundo com os olhos novos e também formular analogias cada vez mais complexas, mais subtis. Para tal é necessário utilizarmos as duas facetas da imaginação humana. A imaginação tem de estar relacionada com uma vontade de conhecer, com a convicção de que cumprimos a nossa humanidade neste mundo através da produção de conhecimento (…)”

Texto: “A ciência, a poesia e a ‘especificidade humana’”. In J. Bronowski (1992). A responsabilidade do cientista e outros escritos. Lisboa: Dom Quixote.

Tradução do poema O tigre, de William Blake, por Vasco Graça Moura, publicada em Laocoonte, rimas várias, andamentos graves. Lisboa: Quetzal Editores, 2005.

Imagem retirada da BBC.

4 comentários:

Edson Junior disse...

Meus cumprimentos pelo blogue e por este post em especial. Muito bom.

Aqualung disse...

Vou colocar a série "The Ascent of Man" online para quem tem curiosidade em descobrir melhor o trabalho de Jacob Bronowski.

Irei deixar no meu blog os links e as instruções para como realizar o download e como melhor visionar os episódios.

http://thusbeginstheweb.blogspot.com/

Sérgio O. Marques disse...

Está muito bom este artigo. Não só a ciência e a poesia são facetas do conhecimento humano, mas outra qualquer forma de arte, a a religião, filosofia, ...

Toni disse...

Excelente artigo, lembra-me um livro chamado Poezz, que faz uma ligação entre a poesia e o jazz.
Parabéns à autora

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