domingo, 23 de setembro de 2007

Biocombustíveis podem agravar aquecimento global



Paul Crutzen foi galardoado com o prémio Nobel da Química em 1995 pelo seu trabalho em química da atmosfera, particularmente no que concerne à camada de ozono, sendo ainda uma das autoridades mundiais em óxidos de azoto na atmosfera.

O artigo da equipa de Crutzen, «N2O release from agro-biofuel production negates global warming reduction by replacing fossil fuels», publicado para discussão dia 1 de Agosto na revista interactiva Atmospheric Chemistry and Physics, tem gerado muita polémica, embora até ao momento só tenha merecido 10 comentários e a discussão aberta do artigo termine já no dia 26.

O estudo indica que utilizar biocombustíveis irá muito provavelmente aumentar em vez de diminuir as emissões de gases de efeito de estufa. Os cálculos de Cruttzen e colaboradores indicam que a cultura dos biocombustíveis mais utilizados liberta cerca do dobro de óxido nitroso, N2O, que estudos anteriores indicavam. O N2O, o gás hilariante, é um gás de efeito de estufa com potencial de aquecimento global a 100 anos - global warming potential (GWP) - 298 vezes maior que o CO2.

Crutzen calcula que os micro-organismos do solo convertem em N2O entre 3 a 5% do azoto dos nitratos utilizados como fertilizantes, enquanto o valor utilizado pelo International Panel on Climate Change (IPCC) é de apenas 2% .

O prémio Nobel estima para o óleo de colza (canola ou rapeseed) um factor de aquecimento global devido às emissões de N2O entre 1 a 1.7 vezes maior que o factor de «arrefecimento» devido às emissões de CO2 de combustíveis fósseis «poupadas». O óleo de colza é muito utilizado na Europa, dando conta de cerca de 80% da produção de biodiesel. O número análogo para o bioetanol produzido a partir de milho, muito comum nos Estados Unidos, situa-se entre 0.9 e 1.5. Apenas o bioetanol produzido a partir de cana de açúcar é uma alternativa viável aos combustíveis fósseis, com um parâmetro entre 0.5 e 0.9. Isto é, para o Nobel em química atmosférica, só constituem alternativas os biocombustíveis produzidos a partir de culturas pouco exigentes em fertilizantes azotados. No resumo do artigo podemos ler:

When the extra N2O emission from biofuel production is calculated in “CO2-equivalent” global warming terms, and compared with the quasi-cooling effect of “saving” emissions of fossil fuel derived CO2, the outcome is that the production of commonly used biofuels, such as biodiesel from rapeseed and bioethanol from corn (maize), can contribute as much or more to global warming by N2O emissions than cooling by fossil fuel savings. Crops with less N demand, such as grasses and woody coppice species have more favourable climate impacts. This analysis only considers the conversion of biomass to biofuel. It does not take into account the use of fossil fuel on the farms and for fertilizer and pesticide production, but it also neglects the production of useful co-products. Both factors partially compensate each other. This needs to be analyzed in a full life cycle assessment.

Alguns especialistas são críticos da abordagem utilizada nos cálculos, nomeadamente Simon Donner de Princeton, que considera que a premissa básica de Crutzen - as emissões de N2O pré-industriais, quando não se utilizavam fertilizantes azotados, são as emissões naturais deste gás - está «provavelmente errada» e Stefan Rauh - que considera baixas as conversões de colheitas em biocombustível utilizadas.

De qualquer forma, as conclusões de Crutzen apenas reforçam as questões que já abordei no post «Ecologia e biocombustíveis» e um estudo publicado em Abril na «Chemistry & Industry» - que questiona a legislação europeia de promoção de biocombustíveis -, e em conjunto apontam na mesma direcção: a utilização de biocombustíveis pode ser francamente pior em termos de aquecimento global que o uso de derivados do petróleo.

O mesmo é apontado por Keith Smith, um cientista da química da atmosfera na Universidade de Edimburgo, co-autor com Crutzen do artigo prestes a ser publicado na sua versão final:

The significance of it is that the supposed benefits of biofuels are even more disputable than had been thought hitherto. What we are saying is that growing many biofuels is probably of no benefit and in fact is actually making the climate issue worse.

Segundo Dave Reay, igualmente da Universidade de Edimburgo, se o Senado americano determinar que a produção de etanol a partir de milho aumente por um factor de 7 até 2022, as emissões de gases de efeito estufa crescerão 6% no país.

Estas preocupações são partilhadas por Richard Doornbosch, autor de um relatório preparado recentemente para a Round Table on Sustainable Development da OCDE, que põe em dúvida os benefícios de biocombustíveis de primeira geração (isto é, que não sejam obtidos por reciclagem de lixos sortidos) e conclui que os governos deveriam rever os objectivos mandatórios em relação à incorporação de biocombustíveis. De acordo com Doornbosch (e corroborado pelo trabalho de Crutzen), é necessário estabelecer bem todo o ciclo de vida dos biocombustíveis. Sem uma análise profunda de todas as implicações da sua produção e utilização, a legislação produzida, que não distingue entre biocombustíveis, pode piorar em vez de melhorar o problema do aquecimento global.

17 comentários:

Joana disse...

Cada vez mais gente está a chegar à conclusão que a gente que os biocombustíveis são um bluff!

Irritava-me solenemente que tanto gente embarcasse nas tretas dos biocombustíveis, a salvação dos problemas do planeta e fechasse os olhos à caixa de Pandora que abririam. Fome generalizada nos mais problemas, ecossistemas destruídos, etc..

A ver se há mais gente a abrir os olhos, quanto mais não seja por um argumento de autoridade "bom", afinal o Nobel em química da atmosfera é capaz de saber mais sobre a questão que um político ilusionista que quer ser eleito ou que se quer manter no poleiro e se está nas tintas para o ambiente e para a fome dos mais pobres!

Joana disse...

Pata na poça:

Fome generalizada nos mais pobres, ecossistemas destruídos, etc...

Fernando Dias disse...

Sou um pessimista optimista. Isto só se percebe se pensarmos como Parménides. Uma coisa que parecia uma brincadeira está a transformar-se num problema muito sério. E isto tanto se aplica ao tema deste post relacionado com o progresso civilizacional fruto da tecnociência, como com o post anterior relacionado com o progresso da mente humana fruto da racionalidade. Uma série de transformações catastróficas neste fim de modernidade liquefazendo-se em tragédias e … imbecilidades, para não dizer obscenidades. E o curioso é que esta mutação já não está a preocupar quase ninguém excepto uns tantos onde se inclui Palmira. Só que enquanto eu me estou borrifando para esta liquefacção com todo o sarcasmo, admito, outr-o-a-s não, como Palmira, o que lhe deve estar a provocar um grande sofrimento. E daí a minha grande (com)paixão por Ela. Pensa que a linha do tempo é uma pista com um só sentido e com um só sinal upa, upa, upa. Este modelo é aparentemente reconfortante porque parece que vai salvar o sofrimento quando se olha a linha do tempo em sentido contrário. De facto a linha do tempo vista da frente para trás é muito esquisita e nós temos obrigatoriamente que pensar que ao tentar vê-la de trás para a frente, o futuro não pode continuar a ser esquisito.

Portanto, se pensarmos como Parménides, as mentiras, mitos, que se transformaram nestas “verdades sortidas”, como diz Palmira, portanto uma coisa muito pesada, nós voltamos a transformá-las na mais leve das brincadeiras. Foi o que fez Beethoven de uns cinquenta florins que Dembscher lhe devia, transformando um “es muss sein?” num “es muss sein!” (tem de ser). A partir desse tema realista, Beethoven compôs uma pequena peça a quatro vozes: três cantam “já já já tem de ser, tem, tem, tem, tem” e a quarta acrescenta : “heraus mit dem Beutel!” Puxa da bolsa.

Anónimo disse...

Bem haja Palmira por mais um bom post. Já lhe tenho sido muito crítico mas, é impossivel não lhe reconhecer o excelente trabalho que aqui tem feito. Isto sim, é de rerum natura a sério.

J. Norberto Pires disse...

Muito bom artigo.
:-)

Unknown disse...

Do mais o menos. Os biocombustíveis agravam o aquecimento global mas pelo menos com mais gás hilariante andamos mais divertidos :)

E circo é que interessa para a palhaçada global, o pão dos romanos já saiu das considerações dos eurocratas :(

PS: Subscrevo na íntegra e pela primeira vez um comentário do Carlos P :) sem a parte da crítica. Há anos que gosto muito do que a Palmira escreve e não tem nada a ver com sermos ambas ateias. Também gosto muito de todos os posts do Desidério, da Helena e do Paulo (é pena que escreva pouco).

Unknown disse...

Do mal o menos.

Anónimo disse...

Excelente artigo, como é costume :)

Anónimo disse...

(as minhas mensagens são atreitas a gatafunhos... Reenvio o comentário e peço desculpa pela minha nabice. Sou apenas «nabogadora» na net).
E se uma pessoa fizer um acordo com um restaurante, no sentido de que lhe venda os restos dos óleos de fritar, que depois essa pessoa recicla para usar como combustível no seu carro? É incorrecto? Esta é uma solução que alguém algures terá encontrado para resolver não só o seu problema de mobilidade como também um outro, complicado, de poluição das águas (reporto-me ao relato de um filho que viu esta história contada na TV). Até porque do tubo de escape não sai apenas CO2! Mas como generalizar esta prática? As batatas fritas, muito apreciadas na Bélgica, por exemplo, poderão começar a rarear nos restaurantes (?), pois hoje sabe-se que é nas gorduras que se concentram determinados poluentes chatos, donde que a quantidade de óleos de fritar usados poderá não ser, a prazo, tão elevada assim na gastronomia para que todos nós possamos adoptar esse sistema, em si, muito eficaz.
De vez em quando (como «penitência» por algumas batatas fritas a mais...)seria bom receber um depósito de combustível obtido a partir de óleos usados, como brinde, na Macdonalds, em vez daquela traquitanagem inútil toda em plástico, que só existe para colonizar os putos (porque não é só a religião que o faz, atenção!).
Reparem: alguma gordurinha a mais também era, em tempos, um seguro de vida, pois não havia antibióticos e em caso de doença o que valia a muita gentinha acamada acabavam por ser essas reservas vitais... Ou estarei totalmente errada? Agora, com essa praga de resistência aos antibióticos que por aí grassa nos hospitais de todo o mundo, e com a privatização acelerada dos sistemas de saúde, aliada ao desemprego galopante, já não digo nada! As pessoas demasiado gordas (e sedentárias) são, parece, mais atreitas a infecções, donde que não há soluções perfeitas...
Seguro é, afinal de contas, cuidar o mais possível do ambiente, pelo sim pelo não. Até porque fica muito mais barato, uma vez que se trata de viver quotidianamente *melhor* com muito menos (sem deixar forçosamente de consumir). E já agora: há também óptimas coisas inúteis (e não poluentes!) que se pode fazer com pouco ou nenhum dinheiro, pelo que falta criar um prémio Nobel para esse tipo de inventos (ou já existe?). Só que, pelo rumo que as coisas estão a levar... Hmmmm.
PS. E o biocombustível da McDonalds teria de ser obtido a partir de óleo não geneticamente modificado, além de que as embalagens não contariam como «combustível», pois deveriam ser reutilizáveis (também podia e devia passar a haver «logística rápida» com vista a este objectivo! É uma questão de imaginação).
Sabe bem comer barato, *mas com uma certa finesse*, além de que para mim a reutilização é, ainda assim, a melhor solução, até por gerar mais emprego, muito provavelmente. Mau seria se a tecnologia não conseguisse optimizar esta questão! Porque sem empregos não há economia saudável, e sem uma economia saudável só restam as monoculturas que dão apenas big money a alguns.
Adelaide Chichorro Ferreira

Lu Soldi disse...

Gostei muito muito muito do seu blog. Conteúdo bacana, consciso e direto, bem ilustrado. Mereceu uma linkada. Tenho um blog também, que fala essencialmente de bem-estar e sustentabilidade, um dia que estiver de papo pro ar e quiser fazer uma visitinha: http://movimentonatura.wordpress.com/

Anónimo disse...

Provavelmente a culpa é dos criacionistas.

Anónimo disse...

Ethanol and biodiesel provide significant reductions in greenhouse gas emissions compared to gasoline and diesel on a ‘well-to-wheels’ basis (‘Well-to-wheels’ refers to the complete chain of fuel production and use, including feedstock production, transport to the refinery, conversion to final fuel, transport to refuelling stations, and final vehicle tailpipe emissions). While a range of estimates exists, most studies find significant net reductions in CO2-equivalent emissions for both types of fuels. (See: Biofuels for Transport - An International Perspective, IEA, 2005 for a wider discussion on the subject).
There are large differences in potential carbon dioxide emissions avoidance by using biofuels. The critical factors are the amount of fossil fuels used to produce and transport the biomass feedstock and process it (including inputs into fertilisers, machinery and for irrigation); the share of zero and low emission energy inputs; the crop yields; and the efficiency of biofuel production. For bioethanol from sugarcane and crop residues and for biodiesel from animal fats, the whole process, from producing the biomass feedstock to combustion of the biofuel, can lead to 90% carbon emission reduction per kilometre of travel compared with using gasoline or diesel fuels. Where higher energy-intensive feedstocks are used (such as annual root and cereal crops), little if any renewable energy is consumed during the production and process, only around a 10-15% reduction in overall carbon emissions per kilometre may result.

JSA disse...

Caro F. Dias, não conheço a peça em questão, mas habitualmente, em alemão, a interrogação inverte a ordem das palavras. Pelo que seria lógico escrever «muss es sein?» em vez de «es muss sein?». Ainda assim pode ser erro meu. Apontamento à parte apenas.

Este trabalho vem sublinhar fortemente o desejo permanete da parte da população mundial - especialmente de políticos - que exista a famosa "bala mágica" para resolver o problema da dependência do petróleo. Infelizmente ninguém ataca o problema como ele deveria ser realmente atacado. A mobilidade deveria ser passada para os transportes públicos (investimento elevado, de facto) com a origem da energia a começar a ser repartida entre métodos de produção de energia para rede pública, como a eólica, marés, solar, etc. Sem dúvida que será necessário continuar a utilizar combustíveis para automóveis e outros meios semelhantes, mas este lado do problema deveria ser reduzido.

PS - Palmira, talvez fosse interessante escrever algo sobre meios de produção de energia um pouco mais exóticos e muito alternativos, como a osmose retardada, electrodiálise inversa ou a produção de energia por microorganismos.

Palmira F. da Silva disse...

Caro jsa:

Concordo em pleno com todo o comentário. E fica prometido para quando tiver mais tempo uma incursão por formas exóticas de produção de energia quando tiver mais tempo:-)

Palmira F. da Silva disse...

Carissimos restantes comentadores:

Muito obrigado pelos comentários.

Anónimo disse...

...não há rosas sem espinho e como tal não há, nem haverá, nenhum combustível alternativo que seja inócuo para o ambiente e para a sociedade. Na Índia as sementes da planta Jatropha são consideradas "seeds of hope" e os combustíveis alternativos aos fósseis, para mim serão sempre como uma réstia de esperança de redução da dependência da economia mundial dos "humores" dos senhores produtores do petróleo.

Anónimo disse...

Os biocombustíveis não são um desastre! Como acontece em muitas outras situações, tem-se uma boa ideia e exploram-se imensas alternativas. Passado algum tempo vêem-se os impactos negativos e eliminam-se as situações piores. Basta ver o caso dos motores dos automóveis, em que começámos (e na América ainda é um pouco assim) com grandes motores pouco eficientes, aproximando-nos cada vez mais de uma maior eficiência, como se vê agora com os veículos híbridos que conseguem um maior rendimento. Até a Natureza nos mostra exemplos semelhantes, se virmos a diversificação de formas de vida durante a explosão do Câmbrico. Após algum tempo a maioria dessas espécies tinham já desaparecido. A experimentação da natureza levou à exploração de imensas vias mas "a sobrevivência dos mais fortes" (apropriando-me de uma frase que nem é de Darwin) levou a que a maioria dessas espécies se extinguissem, deixando apenas os precursores dos animais que hoje vemos.

Ao contrário do que é dito por alguns comentadores, parece-me que o enfoque principal da notícia citada não são os biocombustíveis no geral mas sim a forma usada actualmente de os produzir.

Ao usar milho ou trigo, que exigem imenso dos solos (e portanto implicam a utilização de fertilizantes), para produzir combustível, estamos não só a impedir que sejam usados para alimentar quem precisa, mas também a transformar um produto que exige uma elevada utilização de maquinaria e produtos químicos, num combustível. Esse processo acaba por ser, de acordo com este estudo, negativo para o ambiente.

O problema, volto a referir, não está nos biocombustíveis, mas na fonte que usamos. Um artigo de 2006 da revista Science (Carbon-Negative Biofuels from Low-Input High-Diversity Grassland Biomass, Tilman et al., Science 8 December 2006: 1598-1600) apontava para o facto de, recorrendo a espécies de ervas nativas ("ervas daninhas") que não necessitam de rega, nem de fertilização, se conseguir produzir biocombustíveis. Devido ao facto de no processo de produção desse combustível não usar as raízes dessas plantas, essa parte permanece no solo formando turfa o que, melhora a qualidade do solo a longo prazo e garante um processo com uma maior desequilíbrio para o lado de consumir mais CO2 do que o que liberta, quando avaliado todo o processo.

A minha opinião é que, embora os biocombustíveis sejam apenas um passo até uma fonte de energia independente do CO2, são um passo importante. E é minha opinião também de que, em breve, deixaremos de usar cereais e cana de açúcar, alimentos essenciais, para produzir combustíveis. Mas só quando começar a faltar aos países ricos, como é nosso costume.

Esperemos que até lá se dê um maior papel à fissão nuclear (com capacidade para fazer termólise da água, produzindo H2, o combustível do futuro) para que quando chegar a fusão, sejamos totalmente independentes de combustíveis fósseis!

Daniel Jana

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