terça-feira, 21 de maio de 2013

O Pequeno Mundo



Por vezes, nos romances, surgem reflexões sobre as leis da física e surgem referências a físicos.

Em “O Pequeno Mundo” de Luísa Costa Gomes - romance que se desenrola através de missivas escritas entre as personagens- às páginas tantas, Leonardo escreve  ao amigo João Manuel:
«Por isto, já vês, não foi a morte de Camila que me assustou mas o aperceber-me, a súbitas, no que me tinha tornado; rompendo através das gordurosas do corpo os untos diversos que me corriam no cérebro, tinha que, em vez das lubrificações aéreas que eu antecipara, me apatizavam os cada vez mais ralos pensamentos de um espírito que padecia de boa-vontade e colaborativo na correnteza dela, os mortais empuxões da inércia. Que é, se bem te lembras, a lei mais funda de toda a realidade. Deixando-me levar pela correnteza dela, havia de estar hoje sentado com Esmeralda a fazer meia e a conversar do tempo frutuoso das colheitas do ano passado»

A lei da inércia aparece a Leonardo como intangível e como o estado deste mundo - isto apesar de o pequeno mundo continuar acelerado.

A estrutura e até a moral de “O Pequeno Mundo” são análogas ao romance “Boquitas Pintadas” do argentino Manuel Puig - salvo que a história do primeiro é dominada por relações amorosas e traições, enquanto a do segundo é dominada pela denúncia, por parte de um jornalista, da hipotética corrupção de um caudilho –, ambos se baseiam em epístolas e dão a imagem de um mundo sem ética, regido pela astúcia e perpassado de traições, de hipocrisia, de desejos de poder e de corrupção.

João Miguel chega a escrever a Manuela:
«Leonardo transformou-se num socialista utópico pós-catastrofista, o que, se considerarmos o processo todo com olho equânime, é um passo adiante daquelas ideias do século ΧІΧ conservador que sempre defendeu. Não perco a fé em vê-lo transitar um dia para o socialismo científico e depois à social-democracia, para se afogar nos títulos e nas acções e ir para Lisboa gesticular na Bolsa, refazendo em si mesmo o percurso da própria História.»

Esta última etapa da história é inegavelmente a que estamos agora a viver.

No término do romance Manuela escreve este episódio maravilhoso, que desconhecia, sobre Arquimedes:
«Noli turbare círculos meos, disse ele que parece que foi a forma de Arquimedes pedir a quem o vinha matar que lhe não pisasse as figuras que ele tinha desenhado na areia.»

De facto apagar a obra de um génio é um crime, e o actual governo de Portugal e o Presidente da República não têm feito outra coisa se não apunhalar a cultura e, por arrasto, a obra dos génios. Tudo o que peço a estes senhores é que tenham um pouco de atenção e poupem os círculos na areia, uma vez que a sua sede de extermínio da cultura é imparável. Contra a opinião de muitos cronistas, eu considero que a omissão do nome de José Saramago na Colômbia, por parte do senhor Presidente da República, foi propositada e vergonhosa. Mais, este senhor deveria ser obrigado a ler o único Nobel da literatura portuguesa, porque foi um prémio justo e não obra do céu. É verdade que as aparições deixam os portugueses a ver apenas branco, uma vez que são inexplicáveis, e que se perpetuam pelo tempo afora; agora esta de misturar Religião com Euros é de quem anda completamente perdido.

Não fugindo deste pequeno mundo, já vejo o senhor Cavaco Silva em peregrinação para Fátima com o actual treinador do Porto, levando algumas vitaminas na sacola, e a recitarem o Evangelho pelo caminho.

O romance acaba com uma carta de João Miguel a Leonardo:
«Duvido que voltemos a falar-nos. Lembras-me um dito do tutor de Stendhal – perdoa-me esta anedota – a quem perguntavam por que ensinava ele ainda o sistema ptolomaico, sabendo-o falso. «Senhor», respondeu o sábio, «ele explica tudo o que é preciso e ainda por cima tem a aprovação da Igreja.» É assim que eu te vejo, fincado no teu sistema ptolomaico, nem que para isso tenhas de ir espezinhando quem não te inclui no arranjo das coisas.»

É no sistema hodierno de Copérnico que os portugueses vivem divididos, porque uns se recusam a ver os seus falhanços, enquanto outros se esquivam das suas responsabilidades na crise actual. E, deste modo, tenho que revezar a imagem de José Sócrates com a de M. Rebelo de Sousa no meu televisor, e ficar com os cabelos dos braços arrepiados face à comiseração e ao catolicismo do senhor Paulo Portas.

Para mim é evidente que o neo-liberalismo é a máscara do fascismo e que o socialismo português rasgou todos os seus valores e aplicou os do neo-liberalismo. Assim, estamos prestes a regressar ao Estado Novo. Empobrecer o todo para depois, faminto e em desespero, suar de sol a Sol para o senhor da espreguiçadeira. 

4 comentários:

João Esteves disse...

O sr. Presidente da República também já se recusou em ir ao funeral do nosso prémio nobel alegando já não sei bem o quê. Enfim, uma vergonha.

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Creio que este texto acima nem teria a função de discriminar a literatura, de memorizar Saramago, de confrontar ideologias e de constranger o senhor Cavaco Silva. No entanto, expõe de sentimento indefeso. Então, até onde vai a necessidade de lavar-se a roupa suja?! Se é que a roupa está suja ou, tornara-se a síndrome viciada por escrever: diminuindo, constrangendo e subestimando a inteligência do leitor. É muito sério, mas, nem diria deprimente.
Suportar o anseio requer juízo. Escrever é compor-se um(a) bússola. Escrever é de atitude responsável com o próximo, quando o próximo é você. Escrever é ter a noção de submissão por missão. Escrever para formar, capacitar e desenvolver a opinião de outrem, é abster-se da vaidade. Sim! É complicado. Necessariamente aplicado. Neste momento, escrevo e sou fruto da educação de minha família, referência de meu pai, honrando a expectativa daquele que suara a camisa; e nem fora de onze varas. Fora muito simples, porém primorosa por aprimorada e decidida.

Pouparia palavra, claro que sim! E, tão quanto necessária for, será empenhada.

Sílvia Correia disse...

Excelente reflexão que partilharei no Facebook, com devida autorização.

Ildefonso Dias disse...

Caro Angelo Alves;

Toda a gente sabe que Saramago foi longe demais nas criticas, que fez a Cavaco.

Toda a gente sabe que a Saramago lhe faltou a coerencia politica, para sustentar aquelas críticas, Saramago não foi Alvaro Cunhal.

Saramago não apoio o candidato presidencial do PCP seu partido.

Concordo e compreendo por isso que o génio de Saramago pode e deve esperar por melhores dias, a dignidade de uma pessoa (Cavaco) não.

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