Meu artigo de opinião no Público de hoje:
Não será exagerado dizer que há crimes educativo se que, provavelmente, o maior cometido entre nós foi a abolição, após o 25 de Abril, do ensino técnico-profissional.Tal foi feito por unanimidade, no conturbado clima do PREC, em nome da igualdade social. Foi dito, e era verdade, que havia, no regime deposto, reprodução da estrutura social, estando o título de doutor quase só reservado aos filhosdos ricos.
Passados quase 40 anos é tempo, pesando a experiência acumulada, de tirar conclusões. É certo que a escola pública se alargou maciçamente – e ninguém deixará de se orgulhar por esse feito – mas não é menos certo que a quase ausência de saídas profisissionais produziu um sistema totalmente unificado até ao 9.º ano de escolaridade e com poucas escolhas depois dele, que leva uma multidão de alunos a desembocar no ensino superior, em busca do canudo. Não pode, contudo, ser bom um sistema em que praticamente não há escolhas. É como as lojas de souvenirs na antiga União Soviética onde só havia bustos de Lenine.Acresce que um sistema unificado conduz, em geral, à mediocridade, pois o nivelamento faz-se por baixo. Os bustos de Lenine eram toscos. Também é certo que,mesmo com a fasquia baixa, por vezes muito baixa, tem havido um abandono escolar que nos envergonha. Muitas crianças e jovens têm fugido do sistema, por lá não encontrarem um percurso adequado.
De facto, a insatisfação geral com o nosso sistema educativo resulta, em larga medida, da “via única” que foi instituída em nome da igualdade. A escola pública, ao querer servir a todos, não serve a ninguém.Não serve sobretudo aos filhos dos pobres, uma vez que eles não encontram nela um elevador social suficientemente poderoso. A escola era a sua esperança de futuro, mas, apesar do esforço denodado de muitos professores, o nosso sistema de ensino não lhes oferece a necessária qualificação para a vida.
A escola tem de ser mais exigente se quer prepararas crianças e jovens para um mundo competitivo e global. Só uma orientação nesse sentido é capaz de a promover como instituição, promovendo em particular a condição de professor. Mas é claro que, para isso, tem de existir uma oferta mais diversificada. A escola tem de pedir mais, tanto para se ser doutor como para se ser outro profissional. Nem todos poderão ser doutores, não porque à partida não disponham de oportunidades iguais, mas porque no percurso mostraram ter capacidades díspares. A todos devem ser dadas iguais chances, mas aqueles que se revelarem melhores nos estudos conducentes a um exercício profissional (qualquer que este seja!), combinando a sua aptidão natural com o seu esforço, deverão ser recompensados. Não se trata de aceitar o darwinismo social, mas sim de reconhecer que é injusto tratar como igual o que é muito diferente.
É bem conhecida a vontade de Nuno Crato, o ministro da Educação e Ciência, de promover a exigência. Tal começou já a ser feito com a introdução de provas finais no 6.º ano a Língua Portuguesa e Matemática e anunciam-se provas finais no 4.º ano em vez de “aferições”. Não se sabe que mais exames haverá, se, por exemplo, os exames do secundário serão aumentados ou modificados. Mas o governo quer também, corajosamente, enfrentar a questão da criação de oferta vocacional no básico e do reforço do ensino profissional no secundário. Para ganhar o desafio da qualificação e debelar o flagelo do abandono escolar são necessárias vias profissionalizantes mais cedo no percurso escolar, isto é, não apenas no secundário mas, a partir de certa altura, logo no básico, com a salvaguarda óbvia da possibilidade de mudança oportuna de via. Na Alemanha, e noutros países mais desenvolvidos da Europa, há muito tempo que é assim: aprende-se cedo para chefe de cozinha ou mecânico de automóveis, que são profissões tão dignas e, nalguns casos, tão bem remuneradas como as que foram antecedidas por formações académicas.
Conforme disse em 2003 Guilherme Valente, um dos mais lúcidos críticos do actual sistema educativo: “É urgentíssimo... oferecer um ensino técnico-profissional de qualidade para o qual a escola encaminhe os alunos que para ele revelem vocação e gosto,valorizar socialmente a formação de qualidade em todos os domínios, enfrentando a doutorice do diploma, a que quase sempre não corresponde nada” (ver o seu livro Os Anos Devastadores do Eduquês, que acaba de sair na Presença).
Temos, como herança do PREC, o espectro do recuo no tempo. Mas ninguém quer ir para o passado, um sítio aqui pouco recomendável. Nestes tempos difíceis, a nossa obrigação é a de preparar o futuro, sem medos nem preconceitos. Neste regresso às aulas, esse deve ser o compromisso não só dos decisores políticos, mas também e principalmente dos professores, dos alunos e das suas famílias.
10 comentários:
Caro Professor
A "via única" é de facto, tal como história única, má conselheira, pelo monopolismo ideológico que normalmente o enforma.
... ou, como diria Nietzsche:
"O pensamento único só existe em Deus."
Prof. C. Fiolhais:
O título do seu artigo deveria ser: «A herança de muito antes do PREC, do PREC e de tudo o resto que veio depois do PREC».
Finalmente (na opinião/crença) de alguns estamos no bom caminho. Oxalá sim.
Mas como diz o outro, prognósticos só depois do jogo, a avaliação negativa que podemos fazer hoje tranquilamente da inexistência de um ensino técnico-profissional de qualidade não podemos fazer em relação a mais esta tentativa em curso. Sá daqui a décadas.
É bom não esquecer que todas as tentativas de emendar a mão quanto ao erro crasso de acabar com o ensino técnico-profissional, ensaiadas logo a partir do início dos anos 80, se revelaram insatisfatórias.
Seria bom cada um perguntar-se porquê.
O início do fim da dualidade (discriminatória) do ensino existente entre nós, sob o lema do Estado Novo «um lugar para cada um mas cada um no seu lugar» começou a ser debatida ainda no consulado de Leite Pinto (1955-1961).
Terá a 1.ª concretização (1.ª etapa de um percurso de unificação) com a criação do CPES, Decreto-Lei n.º 47.480, de 02/01/1967, (J. Hermano Saraiva), unificando os dois ciclos então existentes: o 1.º ciclo do ensino liceal e o ciclo preparatório do ensino técnico.
Mais tarde, e após terem funcionado em regime experimental várias turmas dos 7.º e 8.º anos em diversas localidades do país, a Lei n.º 5/73, de 25/7/1973, consagra legalmente a unificação desde o 7.º ao 10.º anos, numa estrutura escolar que era composta por 12 anos de escolaridade (4 + 4 + 4), isto é, 4 anos de primário + 4 anos de ensino básico (5.º e 6.º anos no CPES + 7.º e 8.º anos no Ensino Unificado) + 4 anos de ensino secundário (9.º e 10.º anos no curso geral, ministrado em escolas secundárias unificadas + 11.º e 12.º anos no curso complementar, ministrado em escolas secundárias polivalentes).
Previa-se, contudo, que a Formação Profissional se pudesse fazer para quem possuísse, quer o ensino básico (após o 8.º ano), quer o ensino secundário geral ou o complementar (após o 10.º ano ou o 12.º ano respectivamente).
Depois disto várias medidas avulsas, mas no mesmo sentido da unificação, foram tomadas, apenas através de circulares, como a criação de cursos complementares de 2 anos com uma estrutura semelhante à dos cursos complementares liceais, com as chamadas cadeiras nobres a par das cadeiras técnicas, o que elevava fortemente a carga horária semanal.
E ambos davam acesso em pé de igualdade ao ensino superior.
Portanto, o ensino técnico existente estava moribundo (por razões internas e externas que seria fastidioso enumerar agora) e condenado ao seu fim ainda antes do 25 de Abril e do subsequente PREC.
Prof. C. Fiolhais, convém também rigor factual. E que se acabasse de vez com a repetição até à exaustão de afirmações distorcidas que claramente não correspondem à verdade mais crua e nua dos factos comprovados.
Quando a célebre decisão por unanimidade que refere aconteceu, em pleno PREC, mais não representou do que a consagração «de jure» do que já acontecia «de facto».
Mais tarde, em 1978, através do Decreto-Lei n.º 80/78, de 27/4/1978, unificou-se a designação escolas secundárias.
Concluindo: ao PREC os dislates do PREC, e houve muitos, aos restantes protagonistas os seus dislates, nesta matéria há muitos dedos a apontar a muita gente ao longo de muitos anos.
(continuação do meu comentário anterior):
P. S. Quanto às virtudes do ensino técnico-profissional alemão, quem nos dera que por artes mágicas conseguíssemos atingir aquele patamar de qualidade. Mas temo que mantenhamos a «décalage» que tivemos em relação à erradicação da escolaridade obrigatória, em que, e apesar da gritaria no parlamento e nas ruas, os nossos números de finais do século XX se comparam aos alemães de finais do século XIX. E isto apesar das louváveis declarações de boas intenções em milhentas reformas de ensino que concretizámos no papel muito mais do que no terreno. Nós não somos alemães, frios, racionais, despojados e luteranos, eles discutem as coisas friamente e reformam permanentemente. Nós guerreamo-nos na praça pública em discussões infindáveis e, por vezes, sem sentido, como esta atribuição reiterada das culpas do fim do ensino técnico-profissional ao PREC, ao 25 de Abril, sei lá a mais quem.
O regime saído do 25 de Abril tem, de facto, a grave responsabilidade de não ter conseguido melhor do que o que temos.
Da vocação: carisma e afinidade por estímulo e impulso.
Tenho muitas dúvidas sobre quase tudo o que afirma, inclusive sobre os exemplos que dá. Basta ter em atenção tudo aquilo que é afirmado pela OCDE (e pela maioria das pessoas que estudam as matérias de cariz educacional), que contraria praticamente tudo o que afirma neste artigo.
A própria Alemanha, que é um dos países desenvolvidos mais criticados pela OCDE ao nível educacional, comprometeu-se, segundo sei, a modificar o seu sistema de ensino profissional de forma a não impôr 'vocações' a crianças de idade inferior a 15 anos. Algo que foi já abolido da maioria dos países 'avançados'.
Já agora, quanto à exigência: na Finlândia, que é dotada de um dos melhores sistemas de ensino do mundo, se não estou em erro, só há exames no 12º, e, não obstante, têm um sistema extremamente avançado e exigente. Enfim, tenho muitas dúvidas sobre a ideia de que muitos exames significa muita exigência. E ainda mais sobre as suas reais virtualidades ao nível dos conhecimentos a transmitir.
Por fim, sobre a questão do emprego, saídas profissionais e afins: eu até acho que o ensino profissional é essencial, mas, por um lado, sem economia haverá sempre desemprego (tenhamos mais ou menos licenciados, mais ou menos 'profissionalizados); por outro, não é a impor o ensino profissional 'aos mais burrinhos' que se vai recuperar o ensino profissional, muito pelo contrário.
Uma bocadinho de responsabilidade, seria pedir muito? Aqui se explica ao que me refiro.
Algumas notas soltas:
1) A bem do rigor que em alguns comentários foi invocado, assinale-se que o Decreto-Lei n.º 47.480 foi publicado quando Inocêncio Galvão Teles era ministro da Educação e não com José Hermano Saraiva como seu titular;
2) Fiz parte do contingente inicial de alunos do Ciclo Preparatório Unificado (1968/69), em estabelecimento próprio novo ("escola primária Estado Novo" geminada), ainda que frequentasse as aulas de Trabalhos Manuais e Educação Física nas instalações da Escola Industrial e Comercial, significativamente distantes uma da outra. Na primeira formatura da Mocidade Portuguesa em que tive de participar, não ia devidamente ataviado. Quando fui tentar sanar a minha falta, o stock do material necessário - calção e meias cor de caqui, camisa verde-azulada e cinto de fivela sinuosa estilizada - esgotou-se um ou dois lugares à minha frente na bicha. Não viria daí consequência pois aquela tinha sido a última formatura.
3) Findo o Ciclo, optei por ir para o Liceu ao contrário de amigos meus (a maioria) que, ao invés, escolheram frequentar a então Escola Técnica (Comercial e Industrial). A escolha de cada um foi "natural" e, naturalmente, em linha com as expectativas que tinham do que pretendiam para a sua vida. Os meus pais tinham ambos por habilitações o Curso Geral de Comércio.
4) É verdade que a Lei 5/73, uma Lei de Bases, ao prever que o ensino preparatório viesse a ter a duração de quatro anos (após outros quatro de ensino primário) vinha consagrar o alongamento do ensino "unificado" e compulsório. Por outro lado, nela se prevendo que o primeiro dos dois ciclos que constituiriam o ensino secundário, ou seja, o "ciclo geral", fosse ministrado em "escolas secundárias pluricurriculares", o caminho estava aberto para que, num qualquer momento propício, o afunilamento e a homogeneização absurda, e criminosa, da "linha de montagem" ocorresse como ocorreu. Não obstante, a Lei previa, é bom recordar, na sua Base IX, a coexistência de disciplinas comuns com outras vocacionais.
4) Conheci Escolas Técnicas cujas instalações oficinais foram destruídas, literalmente à marretada, no Verão de 1975.
5) Diga-se ainda que a esmagadora maioria da máquina ministerial inspiradora da "Lei Veiga Simão" permaneceu, praticamente incólume, no pós-reviralho. Foi assim muito "facilitada" a marretada ideológica, infinitamente mais perniciosa, que viria a ocorrer e a sepultar o ensino técnico.
Já Aristóteles dizia que "a pior forma de desigualdade é tentar fazer duas coisas diferentes iguais". Não devia ter sido preciso esperar quase quarenta anos para o (voltar a) perceber. Mas, de facto, é verdade: já antes do 25 de Abril, nomeadamente no ministério da Educação, Aristóteles tinha sido apeado (não sei se também pelo método da marreta). A cegueira era já muita e Rousseau estava na moda.
Senhor Eduardo F.
Tem razão, J. Hermano Saraiva assumiu a pasta da Educação em 19/8/1968, portanto, o decreto da criação do CPES é do anterior ministro, Inocêncio Galvão Teles.
Ao fazer a consulta e transcrever a informação para o computador a partir da lista de ministros acabei por ler a linha abaixo e escrevi J. Hermano Saraiva.
Devia ter confirmado a seguir com atenção e não o fiz, o tempo às vezes (ou a falta dele) trai-nos.
Contudo, o rigor que eu invoquei é de outra natureza, bem mais grave que a troca de um nome que não põe minimamente em causa o assunto em apreço - a 1.ª etapa da unificação das duas vias de ensino.
A falta de rigor que eu refiro (e que já aborrece ver tantas vezes repetida, apesar de outras tantas desmentida) é a afirmação que foi depois do 25 de Abril que se acabou com o ensino técnico.
Ora, como eu mostrei, tratou-se de um longo e amadurecido processo, que decorreu formalmente ao longo de 8 anos, tendo culminado as suas últimas formalidades durante o PREC.
Acho que não vale a pena eu perorar acerca das razões porque se insiste nesta tecla, não quero fazer processos de intenções embora não seja difícil conjecturar.
E por aqui me fico.
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