terça-feira, 19 de agosto de 2008

Epistemologia de mestre-escola

Um dos aspectos mais importantes de um livro que já recomendei várias vezes, Sobre a Liberdade, de Mill, é chamar a atenção para a importância de refutar publicamente ideias falsas:
"Por pouco disposta que esteja uma pessoa que tem uma opinião forte a admitir a possibilidade de que a sua opinião seja falsa, tem de ser tocada pela consideração de que por mais verdadeira que seja, se não for frequentemente discutida por inteiro e sem medos, será mantida como um dogma morto, e não como uma verdade viva."

"Há um grupo de pessoas (...) que acham suficiente que alguém concorde com aquilo que consideram verdadeiro, sem duvidar, ainda que não tenha qualquer conhecimento dos fundamentos da opinião, e não pudesse fazer uma defesa sustentável dessa posição contra as mais superficiais objecções. A partir do momento em que o seu credo lhes foi ensinado por uma autoridade, pensam naturalmente que não resulta qualquer bem — e até resultará algum mal — de se permitir que seja questionado. Onde a sua influência prevalece, tornam praticamente impossível que a opinião dominante seja rejeitada de modo sábio e ponderado, embora possa, ainda assim, ser rejeitada de modo precipitado e ignorante; porque impedir completamente a discussão é raramente possível, e assim que surge, as crenças não baseadas em convicção têm a tendência de ceder ante a mais fraca aparência de um argumento. Contudo, pondo de parte esta possibilidade — partindo do princípio de que a verdadeira opinião permanece na mente, mas permanece como um preconceito, uma crença independente de argumentos e de provas contra os argumentos — esta não é a maneira pela qual a verdade deve ser sustentada por um ser racional. Isto não é conhecer a verdade. A verdade, assim sustentada, não passa de mais uma superstição, pendurando-se acidentalmente às palavras que enunciam uma verdade."

Recordei-me destas passagem — e das páginas seguintes, onde Mill desenvolve cuidadosamente esta ideia — a propósito da importância de discutir o criacionismo, e em conexão com o problema do dogmatismo de alguns cientistas. Há quem pense que certas ideias não merecem ser levadas a sério nem discutidas — porque são ideias que não pertencem ao “nosso grupo”, são “as ideias dos outros”. Savater, no seu Dicionário Filosófico, tem este tipo de reacção ao relatar a estranheza que sentiu ao tentar ler o livro The Miracle of Theism, de Mackie, uma refutação filosófica cuidadosamente articulada da defesa do teísmo de Swinburne, The Coherence of Theism. Para Savater o livro de Mackie não faz sentido pela simples razão de que não vale a pena discutir o teísmo, que é uma aberração completa.

É importante discutir ideias que nos parecem absolutamente palermas, e mesmo que saibamos que os que as defendem não as levam realmente a sério (como é o caso dos criacionistas), pela simples razão de que sem essa discussão pública a generalidade das pessoas não saberá realmente que razões há para pensar que certas ideias são verdadeiras em vez de outras. Como argumenta Mill, sem uma discussão pública constante de ideias palermas, a generalidade das pessoas não saberá refutá-las quando precisar de o fazer. E as ideias, ainda que sejam verdadeiras, tornam-se dogmas mortos se as pessoas não souberem realmente defendê-las dos seus ataques.

Há lucidez epistémica nesta atitude. A única razão que qualquer pessoa pode ter para pensar que seja o que for é verdade é o facto de se oferecer honestamente essa ideia à discussão pública e se ver que em todas as oportunidades permanentemente dadas para a refutar, essa ideia resistiu à refutação. Na verdade, é o desconhecimento destes aspectos epistemológicos básicos que leva as pessoas a ficarem vulneráveis aos sofismas dos criacionistas, da New Age, da homeopatia e de todas as muitas palermices que poluem a noosfera. Uma vez mais, Mill era perfeitamente lúcido:
"Até na filosofia natural há sempre outra explicação possível dos mesmos factos; uma teoria geocêntrica em vez de uma teoria heliocêntrica; um flogisto em vez de oxigénio; e tem de se mostrar por que não pode outra teoria ser a verdadeira: e até se mostrar tal coisa, e até que saibamos como é mostrado, não percebemos os fundamentos da nossa opinião. Mas quando passamos para assuntos infinitamente mais complicados, para a ética, a religião, a política, as relações sociais e os assuntos da vida, três quartos dos argumentos a favor de cada opinião controversa consistem em dissipar as aparências que favorecem uma qualquer opinião diferente dela."

Uma estratégia fundamental de todas as imposturas intelectuais e políticas, como o criacionismo, consiste precisamente em lançar a confusão na opinião pública, ao insinuar que, por ser possível explorar possibilidades lógicas contra uma teoria verdadeira, daí se segue que essa teoria é de facto falsa. Isto impressiona a opinião pública apenas quando esta está mal formada e pensa como um mestre-escola: que o que é verdade é verdade, ponto final, e nenhumas hipóteses há de apresentar argumentos contrários a essa verdade. A epistemologia positivista (sinteticamente, a ideia de que o que fundamenta a ciência é a observação ou a experimentação) que alguns cientistas mais desavisados têm tendência para defender é uma manifestação desta epistemologia de mestre-escola; a ideia é a mesma: há métodos que põem um ponto final a todas as nossas dúvidas e a partir daí não vale mais a pena pensar outra vez nisso.

É esta falsidade que urge combater. Vale sempre a pena pensar outra vez. Sim, há argumentos contra a teoria da relatividade, contra a teoria darwinista, contra toda e qualquer teoria. Isto não devia ser surpreendente, e não o seria se as pessoas estivessem habituadas à ideia de que as teorias que temos boas razões para pensar que são verdadeiras não são as que foram cabalmente demonstradas como verdadeiras (seja pela observação, seja pelo que for) mas apenas as que, no cômputo geral, temos melhores razões para pensar que são verdadeiras do que para pensar que as suas concorrentes são verdadeiras. E, claro, tanto há argumentos contra o darwinismo como contra o criacionismo, tanto há argumentos contra a inexistência de deuses como contra a sua existência. O que não há são verdades fáceis de mestre-escola, que possamos lucidamente aceitar como definitivas para depois irmos à vida que a morte é certa.

4 comentários:

Fernando Dias disse...

Eu, não sendo filósofo, continuo a pensar que Desidério, como Mill, usam de argumentos convincentes. Li o livrinho “Sobre a Liberdade” por recomendação do Desidério, e dei o tempo por muito bem empregue. Vale de facto a pena ler. No entanto, ainda que o meu cepticismo seja muito empedernido, custa-me duvidar que o meu corpo seja influenciado pela gravidade e que não seja lesado se me atirar de um décimo andar. Já o morrer ou não poderá ser objecto de aposta, e não sei quem ganhará.

Há aquela história de experimentar dar um pontapé numa pedra para ver se o pé fica a doer ou não. Esta anedota filosófica que o Desidério conhece melhor do que eu parece que foi usada por um filósofo como exemplo para refutar George Berkeley, que chegou a duvidar do mundo material. Para ele o mundo físico era ilusório. Só existiam ideias.

E depois há aquela anedota do Sr. Smith, que para ver se um bidão tinha gasolina acendeu um fósforo. E tinha.

Num debate com o Dalai Lama um evolucionista adaptacionista argumentava que as emoções negativas eram benéficas porque eram adaptativas, resultavam da selecção natural, e portanto não devíamos modelá-las. Então Dalai Lama perguntou-lhe: então por essa ordem de ideias e a morte? O darwinista replicou que Sua Santidade tinha dado um passo de gigante (para não dizer que tinha feito batota) na sua contra-argumentação.

Penso que é o que Desidério poderá pensar: este tipo está a querer gozar comigo com anedotas batoteiras pseudo-filosóficas.

Apesar de a morte ser certa, como diz Desidério e eu concordo, continua a haver por aí muto boa gente a acreditar na ressuscitação ou ressurreição, na reencarnação ou renascimento, na vida depois da morte ou na imortalidade.

alf disse...

O Schrodinger disse qualquer coisa como: a ciencia actual não pode explicar a criação da vida, o que não significa que não possa vir a fazê-lo.

Afirmar que o criacionismo é um disparate é uma afirmação de fé, porque ninguém tem nenhuma explicação plausível para a origem e evolução da vida.

A ideia de que a vida evolui por «selecção natural» é uma afirmação grotesca, mais ou menos como afirmar que o benfica vai ganhar o campeonato este ano porque tem um bom ponta de lança.

Já tenho mostrado que qq processo «inteligente», como a evolução, carece de dois processos, a geração de alernativas e a selecção. E o problema está na geração de alternativas.

é por erros de cópia? é por intervenção de virus? Tem origem extraterrestre? as células têm uma máquina geradora de novas combinações? é por intervenção divina?

Ninguém pode dizer que sabe a resposta.

Por isso é que os cientistas não discutem o assunto - agridem imediatamente qq posição diferente da que defendem. A posição que defendem é metodologicamente correcta na perspectiva de investigação, mas não é a Verdade. Por isso não existem argumentos que possam suportar uma discussão sobre o que é a verdade sobre o assunto.

Eu, ao falar de «Inteligência Natural», muito na continuação do que disse o Schrodinger, creio que estou a criar a primeira argumentação de base científica capaz de enfrentar a argumentação criacionista - que é muito fácil: se não sabemos é porque foi deus.

Desidério Murcho disse...

Não me parece que tenha razão, Alf. Não conheço a bibliografia científica sobre a evolução, mas conheço parte da filosofia da biologia e os temas que você diz que são tabu para os cientistas são comummente discutidos sem tabus nessa bibliografia.

Na verdade, a instituição científica está montada de um tal modo que quem conseguir apresentar uma refutação sólida do darwinismo acabará por ficar famoso por isso, ao invés de ser silenciado. Ciência não é religião: na religião é que quem tem ideias diferentes tem de fazer uma seita à parte.

Mas é evidente que nenhum biólogo desata a bater palmas à primeira refutação do darwinismo que lhe aparecer à frente; pelo contrário, o seu dever profissional é analisar essa proposta com tanto sentido crítico quanto o sentido crítico que o autor de tal proposta apresenta relativamente ao darwinismo.

alf disse...

Desidério

um grande problema que a ciência, enquanto instituição, enfrenta, é impossibilidade de declarar sobre um assunto: não sei!

A ciência é uma metodologia de investigação, não é uma religião; mas como instituição, é uma religião - como afirma o Laughlin, "once science becomes political it is indistinguishable from state religion" (A Different Universe, pg 210).

E isto não é um mal, é uma necessidade, as pessoas precisam de uma «ciência-religião».

Sobre evolução percebemos que a selecção natural desempenha um papel; mas nem sequer sabemos ao certo como o desempenha porque não sabemos o mecanismo de gerar alterações. Sabemos alguma coisa, sabemos que cada ser pode ser gerado com variantes, essas variantes já estão previstas no seu código genético; que o «projecto» de um organismo tem «parâmetros» e que estes podem variar de valor, embora não saibamos como; mas a partir daí? É fácil fazer raciocínios simplórios, como dizer que é por erros de cópia, extrapolar, não ver as dificuldades, fazer afirmações grandissonantes - mas isso é tudo a «religião-ciência».

Fazendo um paralelo: dizer que a evolução é produzida pela selecção natural é como dizer que um carro anda por causa das rodas.

A Ciência verdadeira investiga silenciosa e arduamente porque esse é um caminho dificil. A evolução é um puzzle do qual não temos peças quase nenhumas.

São importantes as teorias porque orientam a investigação; mas não podemos confundi-las com «conhecimento».

Há quem sustente que a afirmação «a selecção natural produz a evolução» está certa porque não há nenhuma alternativa melhor. Ora isto é um disparate - também não houve nenhuma alternativa melhor ao modelo de Ptolomeu até Newton.

A ùnica coisa que a ciência vai afirmando é que a melhor teoria que tem é esta ou aquela. A ciência verdadeira nunca afirma que tal teoria é «a verdade». Isso são coisas da «ciência-religião».
Por exemplo, o «ciência-religião» fala do Big Bang como se fosse uma teoria indiscutível, a ciência verdadeira chama-lhe «uma útil parametrização da nossa ignorância» (no meu próximo post no «outrafisica»)

Note que eu não critico a «ciência-religião», percebo que é preciso pôr as coisas nesses termos para o público em geral. Para este é necessário saber que «a Ciência não tem dúvidas e raramente erra»

Lamentavelmente, a «ciência-religião» parece-me estar a condicionar de uma forma intolerável a verdadeira ciência. Esse «abuso de poder» tem de ser combatido e é por isso que eu vou largando as minhas bocas - posso fazê-lo, o meu ordenado não depende da «ciência-religião»...

Diz uma coisa importante - na religião quem tem ideias diferentes pode fazer uma seita à parte. Na ciência não pode. A Ciência é ùnica. Quem tem ideias diferentes está lixado. A ciência tem um sistema de concessão de dinheiros, de contratação e de apreciação de «verdades» pelos «pares» que impede todas os «desvios criativos».

Quem tem ideias diferentes espera pela reforma, ou por um premio Nobel, para as publicar em livro.

E eu não sei dizer se deveria ser de outra maneira.

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