terça-feira, 31 de outubro de 2023

PESADELOS PARA FICAR

Horrores que não nos podem sair da cabeça…

Que pensam, de nós, crianças, cães, gatos,
quando chovem, sobre eles, infernos,
numa Palestina de insensatos,
que tudo muda em escuros invernos?

Podem as crianças compreender
que seres humanos rebentem casas,
ponham o mundo todo a arder
e, a todos, eles cortem as asas?

Crianças e animais aterrados,
para sempre mutilados e mudos,
porque, subitamente atirados

para o meio da luta, como escudos!
Um horror que irá sempre visitar
os pesadelos dos que vão sobrar!
Eugénio Lisboa

A PROPÓSITO DO RACIONALISMO. OS QUE CAVAM A SUA SEPULTURA E A DOS FILHOS E NETOS

Por João Boavida 

Do que estamos a falar quando se fala de Racionalismo? 
 
Obviamente da capacidade de usar a nossa razão, de pensarmos com racionalidade, de vigiar os nossos pensamentos e atitudes porque, frequentemente, fazemos raciocínios enviesados, produzimos irracionalidades que, por sua vez, nos levam a opiniões menos esclarecidas e a atitudes menos sensatas, em suma, menos humanas.
 
E menos humanas porque a razão é a nossa faculdade específica, e nenhum outro ser vivo a possui como nós; muito longe disso. O que nos distingue das outras espécies, ou aquilo pelo qual mais nos distinguimos delas é a capacidade de pensar autonomamente, vigiando a lógica das operações mentais e policiado os sentimentos porque facilmente a atacam, escurecem e aniquilam. 
 
O Racionalismo apareceu na Europa no século XVIII, e tem ilustres nomes na sua história, mas um dos mais importantes, senão o maior, foi o filósofo Emanuel Kant, que nos desafiou a usar a razão, nos encorajou a sermos capazes de ultrapassar as barreiras e as vedações que frequentemente nos são colocadas, pelo poder político, pelas autoridades religiosas, e por outras forças, como, por exemplo, todos os condicionamentos limitadores provocados por formas educativas anti humanas, atrofiantes e aviltantes. 
 
Atreve-te a pensar por ti mesmo, não tenhas medo de utilizar a tua razão, de te servires dela para todas as situações, em suma, habitua-te a utilizar a capacidade racional que tens, e valoriza-a, até porque, ao valorizar a tua estás a valorizar a dos outros e, por reflexo, os outros valorizarão a tua e assim sucessivamente. 
 
Como é de calcular, estas ideias, ao incentivarem cada um a pensar pela própria cabeça, eram muito arrojadas, punham em causa hierarquias estabelecidas e, obviamente, eram política e socialmente perigosas. Mas foram a condição da libertação do espírito humano, e proporcionaram um enorme salto cultural: ideias, métodos, modos de observar e pensar, verificações objetivas, enfim tudo o que está na base da ciência e do pensamento modernos. 
 
E também, obviamente, das democracias modernas, das que são verdadeiras democracias e dignas desse nome, claro. Foi uma conquista que levou séculos a concretizar-se, que teve que lutar contra imensas forças contrárias, que iam da execução (de muitas e variadas maneiras) ao ostracismo, à prisão, ao degredo, e até em pequenas coisas, como no ensino duma dada matéria, às vezes se manifestava. 
 
Lembro, por exemplo, que no programa de Filosofia do antigo 7.º ano, anterior ao 25 de Abril, já em pleno século XX, as ideias de Kant eram ainda escamoteadas, ou apresentadas sempre com muita reserva e muitas argumentações em contrário porque punham em causa o teísmo dominante. 
 
O grande drama do pensamento livre é que a vida humana é curta, todos têm que aprender a pensar pela sua cabeça, e essa tarefa, a aprender em cada geração, deve competir à educação, tanto familiar como estadual. 
 
Mas muitos dos que têm essa obrigação não sabem disso, outros não estão interessados, e as próprias vítimas não chegam frequentemente a perceber a situação de desvantagem em que foram colocadas. 
 
Um homem livre não é fácil de enganar e de ser posto ao serviço de demagogos, de tiranos e de déspotas; o livre pensamento sempre foi o grande inimigo a abater por gente dessa espécie. 
 
Por outro lado, muitos anos depois do apogeu do Racionalismo, e do idealismo que manifestava, o género humano foi confrontado com formas absolutamente sinistras e degradantes de atacar a razão humana e de negar a liberdade de pensar, o que demonstra que cada geração tem, de facto, de aprender a ser livre e de valorizar aquilo que a liberta: o pensamento autónomo e imparcial. 
 
Portanto, esta extraordinária conquista europeia (entre muitas outras) que devia ser valorizada e defendida por todos os europeus – e pelo restante mundo livre, certamente, mas sobretudo por nós - não cessa de ser dominada e aviltada por toda a casta de ódios, ideologias e movimentos que apelam a tudo menos àquilo que nos dá a capacidade humana mais valiosa. 
 
Ao desvalorizar a razão estamos a corroer por dentro a própria sociedade e o melhor que ela tem. 
 
Povos inteiros são ainda hoje impedidos de pensar, de livremente se expressarem, condicionados que estão por ditaduras implacáveis e imorais. É, também é muito triste ver cidadãos de países livres procurarem destruir este bem incalculável, como fazem hoje os pós-modernos, os pós-humanistas, os pós-democratas, os pós-racionalistas e os pós-moralistas e sei lá que mais, que campeiam por aí sem perceberem, ou percebendo, que estão a cavar a sua sepultura e a dos filhos e netos. 
 
João Boavida

domingo, 29 de outubro de 2023

O APRENDIZ DE FEITICEIRO: DE COMO UM PENSAMENTO REACCIONÁRIO DO SÉCULO XIX SE TORNOU UM AVISO SENSATO NO SÉCULO XXI

Joseph de Maistre foi um filósofo, crítico e pensador político dos séculos XVIII / XIX, opositor impiedoso do iluminismo e, mesmo, reacionário ultramontano e pai espiritual de Charles Maurras. Excelente prosador, contudo, teve, como tal, a aprovação de poetas como Lamartine e Baudelaire. É dele este pensamento, de 1800, que traduzo: 
"Se não voltamos às máximas antigas, se a educação não é reentregue aos padres e se a ciência não é posta, por todo o lado, em segundo lugar, os males que nos esperam são incalculáveis: seremos embrutecidos pela ciência e será o último grau do embrutecimento.” 
Pondo de lado a reentrega da educação aos padres – lagarto! lagarto! lagarto! – há, no pensamento deste impenitente reacionário, matéria que merece atenção. 
 
É evidente que não poderemos atribuir à ciência só alguns males sérios que estamos a fazer à humanidade e à vida no planeta, em geral, e esquecermos os incalculáveis benefícios que ela deu ao nosso viver material e espiritual. 
 
Nos transportes, nas comunicações, na vida doméstica, no campo essencial da medicina, no armazenamento e rápida transmissão do conhecimento, nos novos instrumentos e condimentos que trouxe às artes, a ciência prestou um indiscutível melhor estar aos humanos. 
 
Mas não houve, hélas!, um necessário e cauteloso equilíbrio entre essas vantagens inegáveis e a depredação que, com elas, andámos a fazer ao ambiente, além do mal que andamos também a fazer às mentes das novas gerações, com o uso embrutecedor de certas vantagens tecnológicas. O uso indiscriminado e pouco pensado do telemóvel e do computador, para dar um só exemplo, está a produzir intermináveis fornadas de imbecis e ignorantes, totalmente convencidos e satisfeitos consigo próprios e com o seu próprio saber, “porque está tudo na internet”. Pois está: antigamente também estava tudo nas enciclopédias, mas não estava na cabeça deles, como agora também não está. 
 
Esta horrível desfasagem entre o crescimento assombroso da ciência e a nossa estagnação em termos de sabedoria de viver, foi e tem sido diagnosticada, com alarme, por figuras como Einstein e até por pais fundadores da ciência informática. 
 
Estamos, como o aprendiz de feiticeiro, a brincar com um invento de que não sabemos muito bem as consequências que nos vai trazer. Ou sabemos e fechamos os olhos para não ver e a cabeça para não antever. 
 
No entanto, o feio e crescente embrutecimento está à vista: basta uma visita breve às malcheirosas redes sociais. Nunca tantos disseram tantos dislates em tão pouco tempo e com tal velocidade de transmissão.
 
Eugénio Lisboa

sábado, 28 de outubro de 2023

RIMAS HEPTASSILÁBICAS COM GUERRA

Que podem as palavras, contra a horrível tempestade de ferro e fogo que varre a Faixa de Gaza? Além do mais, os políticos não costumam ler poesia… 

Se guerra rima com ferra,
não rima menos com berra
e até rima com enterra!
E por que não com desterra?
Por outro lado, aterra
e sempre, mas sempre, erra.
Salve-se o antiguerra,
mas é triste o após-guerra,
porque é feio o que encerra!
Eugénio Lisboa

THRILLER!!

À memória de William Irish 

Um thriller dos bons e bem construído,
de criar um suspense do caraças,
sabe muito bem, num dia franzido
em que o negro “gloom” nos faz negaças.

O suspense parece que faz mal,
mas, ao contrário, até nos faz bem:
dá-nos adrenalina adicional,
com isto de quem anda a matar quem!

Aquilo que está para acontecer
sabe tão bem como pão com chouriço,
em piquenique, mesmo a chover!

Ficarmos no meio de um enguiço
dá um sabor muito melhor à vida,
porque é inquietação consentida!

Eugénio Lisboa 

Dou-vos este soneto porque o dia está fosco. Recomendo-vos, portanto, não a leitura da CRÍTICA DA RAZÃO PURA, mas, antes, um bom romance ou novela ou conto desse admirável Edgar Poe do século XX que se chamava Cornell Woolrich, mas escrevia também sob o nome de William Irish. Estes homens, que sabem “meter medo” e criar ansiedade, são verdadeiros benfeitores da humanidade.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

QUANDO AS PALAVRAS SÃO USADAS PARA ALIMENTAR CONFLITOS...

Daniel Barenboim, pianista e maestro judeu, o primeiro a conseguir cidadania israelo-palestiniana fundador com o académico egípcio-palestiniano Edward Said da West-Easteern Divan Orquestra que integra músicos de países de todo o Médio Oriente, apelou à paz logo após o ataque do Hamas a Israel que aconteceu neste mês (ver aqui):
Acompanhei os acontecimentos do fim de semana com horror e com a maior preocupação ao ver a situação em Israel/Palestina piorar a níveis inimagináveis. O ataque do Hamas à população civil israelita é um crime escandaloso que condeno veementemente. A morte de tantas pessoas no sul de Israel e em Gaza é uma tragédia que irá pairar por muito tempo. A extensão desta tragédia humana não reside apenas nas vidas perdidas, mas também nos reféns feitos, nas casas destruídas e nas comunidades devastadas. Um cerco israelita a Gaza traduz uma política de punição colectiva, o que constitui uma violação dos direitos humanos. 
 
Edward Said e eu sempre acreditámos que o único caminho para a paz entre Israel e a Palestina é um caminho baseado no humanismo, na justiça, na igualdade e no fim da ocupação, em vez da acção militar, e hoje estou mais convencido disso do que nunca. 
 
Nestes tempos difíceis e com estas palavras, solidarizo-me com todas as vítimas e suas famílias. 
Como em muitas outras ocasiões, as suas palavras foram criticadas, sobretudo por não ter feito um claro apelo ao Hamas para que liberte os reféns que fez. Acusado de parcialidade, afirma-se que, ao invés de contribuir para a paz, potencia a discórdia.
 
Num conflito tão longo e terrível como este em que temos postos os olhos, todas as palavras ditas e omitidas, são usadas para o alimentar. Quando assim acontece, o caminho para a paz está cortado e não parece haver veredas ou atalhos.
 
Ver aqui e aqui.

NOVIDADES DA GRADIVA

 

Já disponível: "A Crise do Capitalismo Democrático", de Martin Wolf. De €31,50 por €28,35.

«[Uma] crítica altamente informada e inteligente da economia global.»

Louis Menand, The New Yorker


Um magnífico balanço sobre como e porquê está a desmoronar o casamento entre a democracia e o capitalismo. E a defesa do que pode ser feito para inverter esta dinâmica, pois, para Martin Wolf, apesar de todos os seus defeitos, o capitalismo democrático continua a ser o melhor sistema para o desenvolvimento. Mas o que vemos hoje é que a democracia liberal está em crise e o autoritarismo está a crescer. Além disso, os laços que deveriam ligar os mercados abertos a eleições livres e justas estão ameaçados. As vozes dividem-se: de um lado, as que defendem que o capitalismo é melhor sem democracia; do outro, as que defendem que a democracia é melhor sem capitalismo.

Este livro é uma réplica vigorosa a ambos os pontos de vista, clarificando as razões pelas quais o divórcio entre o capitalismo e a democracia seria um grande mal. Pelo meio, a ideia de que a cidadania é muito mais do que um slogan ou uma intenção romântica: é a ideia que nos pode salvar.

Já disponível: "A Cultura como Enigma", de Guilherme d'Oliveira Martins. De €16,50 por €14,85.

Os grandes nomes da nossa cultura num registo de grande riqueza intelectual.


Um livro que se fala da cultura como realidade viva, como movimento permanente onde o presente se encontra com o tempo longo, no qual o que recebemos das gerações passadas se projecta agora e para o futuro, num incessante processo complexo de criação e metamorfose, sempre imperfeito e inacabado, tendo a possibilidade mágica de dialogar com quem nos antecedeu. Eis o enigma.

«Uma biblioteca é a melhor metáfora do mundo. É um labirinto cujos caminhos se fazem de perguntas e respostas. E há um misterioso fio de Ariadne que nos leva em cada estante, em cada livro, em cada palavra, à descoberta dos enigmas que nos permitem vislumbrar os contornos dos sentidos que a humanidade reveste.»

Já disponível: "Inteligência Artificial e Cultura", de vários autores. De €14,50 por €13,05.

A inteligência artificial, que entrou há muito nas nossas vidas, tornou-se um tema ainda mais actual com a recente explosão de ferramentas de linguagem como o ChatGPT. Os seus impactos são enormes: haverá aumento da produtividade intelectual, mas também ameaças aos postos de trabalho, à privacidade pessoal e à confiança social. Para os criadores importa, além do mais, perceber até que ponto as máquinas são uma ajuda ou uma catástrofe e como pode a autoria sobreviver neste universo tão admirável quanto incerto. E, alargando a questão, importa conhecer melhor, num mundo de procedimentos automáticos, o que nos caracteriza comos seres humanos.

Como é que, em ambientes de crescente automatismo, vamos reconhecer e afirmar as componentes mais intensas e profundas da humanidade?

Neste livro, que resulta de uma oportuna reunião organizada em 2023 pela Sociedade Portuguesa de Autores, a relação entre inteligência artificial e cultura é discutida pelos filósofos Daniel Innerarity e José Barata-Moura, pelo físico Carlos Fiolhais, pelos juristas Patrícia Akester e Javier Gutiérrez Vicén, pelo historiador José Pacheco Pereira e pelo músico Pedro Abrunhosa.


quinta-feira, 26 de outubro de 2023

URGENTE

 É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade
alguns lamentos,
muitas espadas.

Eugénio de Andrade

O ódio, a solidão, as espadas
e a crueldade são as locuções,
por ti, grande poeta, detestadas,
quando versejas tuas petições.

Pedes urgência para o amor,
pede-la também para a alegria
e pra rosas e rios, com fervor,
porque nada disto tudo se adia!

Teus versos emitem a luz do dia,
que tão bem ilumina a tua urgência:
eles dizem, com ardor e eufonia

e com uma original cadência,
o desejo que, em ti, reside, puro,
de amor e alegria, no futuro.

Eugénio Lisboa

terça-feira, 24 de outubro de 2023

O QUE SE ESCONDE POR DETRÁS DO HAMAS, DO HEZBOLLAH, DO IRÃO ET ALTRI

 Texto recebido de Eugénio Lisboa:


From the beginning men used God to justify the unjustifiable
Salman Rushdie

Religious fanaticism is the most dangerous form of insanity. 
Robert Graves 

Começo, para não haver dúvidas sobre aquilo a que venho, por dizer que condeno com a maior veemência, o comportamento arrogante, brutal e invasivo que Israel tem demonstrado, ao longo dos anos, para com os palestinianos da faixa de Gaza. 
 
Mesmo tendo em conta que Israel passou por períodos altamente perigosos, no começo da sua formação, quando foi atacado por todos ou quase todos os Estados árabes da redondeza, o que lhe terá criado um complexo de “excesso de resposta”, este excesso tem ultrapassado todas as linhas vermelhas de uma desejada proporcionalidade. Todavia, também honestamente não devemos esquecer que o HAMAS jamais aceitará a solução dos dois Estados, convivendo pacificamente.
 
Para estes, como fundamentalistas de um Islão inaceitável por gente civilizada, a Palestina é terra islâmica, doada aos palestinianos por Alá e nenhum “infiel” poderá jamais habitá-la. Por outras palavras, os israelitas devem ser escorraçados daquele sagrado solo islâmico. E o HAMAS não é uma excrescência bizarra, no solo palestiniano. É lá aceite e faz parte dos que ali governam: foi eleito. Por outras e bem dolorosas palavras, se os palestinianos merecem toda a solidariedade pelo que têm sofrido e continuam a sofrer, a última coisa que podem dizer é que são vítimas inocentes, porque não são. Quem semeia ventos colhe tempestades. 
 
Eles conhecem a fibra de Israel, mas permitem que o HAMAS continue com a sua política de quanto pior, melhor. O HAMAS, aquecido fanático religioso, usa de uma linguagem e de um comportamento de profeta medieval. Não é com guerras sagradas que se resolve, no século XXI, um complexo problema de convivência. 
 
Dizia o nunca assaz citado Diderot, um dos pais da Revolução Francesa, que “do fanatismo à barbárie, vai apenas um passo.” O HAMAS já deu esse passo. Aliás, a própria França passou por isso, quando caminhou da Revolução de 1789 para o Terror de 1793. O fanatismo só pode levar à destruição e faz pena ver uma certa esquerda a pôr-se embevecidamente ao lado de fanáticos religiosos, que os devorarão, assim que tiverem oportunidade. 
 
Por detrás destes está um país infernal, tirânico, retrógrado e misógino, que a esquerda – uma certa – não gosta de atacar, porque financia os delírios revolucionários de grupelhos mais ou menos genocidas. Dizia o grande Umberto Eco que “as pessoas nunca são tão completamente e entusiasticamente más, como quando agem em nome das suas convicções religiosas.” 
 
Ficam aqui estes avisos destinados àqueles que se referem sempre à triste tragédia do povo palestiniano, esquecendo-se de mencionar o HAMAS, como um dos encenadores dessa tragédia. Com Israel, sim. Juntos.

 Eugénio Lisboa

EM HARMONIA COM A NATUREZA

Texto recebido de António Galopim de Carvalho:

O nosso Planeta, velho de cerca de quatro mil quinhentos e quarenta milhões de anos, lar da biodiversidade, incluindo a humanidade inteira, não foi sempre como hoje o conhecemos. Esta nossa Terra, um ponto azul na imensidade do espaço cósmico, é o resultado de uma longa e complexa evolução, e o Homem é o fruto mais jovem dessa mesma evolução, numa cadeia imensa de inter-relações em que participaram as rochas, os solos, a água, o ar e os seres vivos. Assim, interessa ao cidadão em geral, como criatura consciente que é no quadro da Natureza, conhecê-la melhor, a fim de bem avaliar os problemas que se lhe põem no seu relacionamento com o ambiente natural. 

Na evolução da matéria, segundo Teilhard de Chardin (1881-1955), o grau de complexidade que esta assumiu foi crescente desde o início do tempo deste nosso Universo, isto é, nos treze mil e oitocentos milhões (13 800 000) de anos da sua existência. Das partículas subatómicas primordiais passou-se aos átomos e, só depois, às moléculas, cada vez mais complexas. A partir destas, a evolução caminhou no sentido das células mais primitivas que fizeram a sua aparição na Terra há mais de três mil e oitocentos milhões de anos (3 800 000 000 anos), pensa-se que através de uma cadeia abiótica de estádios progressivamente mais elaborados, onde o ensaio e erro e o sucesso ou insucesso das soluções encontradas, isto é, os produtos sucessivamente sintetizados, tiveram a seu favor tal imensidade de tempo, da ordem de 75% ou mais da idade do Universo. Dos seres unicelulares, rudimentares, aos primeiros organismos pluricelulares, surgidos há setecentos a oitocentos milhões de anos, foi consumido apenas cerca de 20% desse mesmo tempo. Restou, pois, pouco mais de 5% para que, numa nova cadeia de complexidade, sempre crescente e a ritmo cada vez mais acelerado, se caminhasse dos invertebrados primitivos ao Homem. Do nosso aparecimento na Natureza, há cerca de 2,3 a 2,5 milhões de anos, como Homo habilis, onde representamos o passo mais recente da escala evolutiva, aos dias de hoje, foi um passo de apenas 0,0001% do tempo universal da criação. 

Face à eternidade do tempo que falta cumprir a este nosso planeta, estimado em cinco a seis milhares de milhões de anos, a presença do Homem na Natureza é ainda extraordinariamente curta e insignificante à escala da evolução biológica e, portanto, passível de erro, como aconteceu com inúmeras espécies no decurso dessa mesma evolução. 

O Homem, feito dos mesmos átomos de que são feitas as estrelas, os minerais, as plantas, os outros animais e tudo o mais que existe, é matéria que adquiriu complexidade tal que se assumiu com capacidade de se interrogar, de se explicar e de intervir no seu próprio curso e no do ambiente onde foi “fabricado”. Ele é o estado mais avançado de combinação dessa mesma matéria, capaz de fazer aquilo a que chamamos Ciência, isto é, observar, descrever, relacionar, explicar, induzir, prever. O Homem, na sua possibilidade de adquirir conhecimento e de o transmitir, é a manifestação mais elaborada da realidade física do mundo que conhecemos, na qual foi consumida a totalidade do tempo do universo. Assim, a Ciência, através do Homem, pode ser entendida também como expoente máximo da matéria que se questiona a si própria. Pode dizer-se que a Natureza “pensa” através do cérebro humano e, com igual razão, pode aceitar-se que o Homem deu voz à Natureza. Tais capacidades colocam-nos a nós, humanos, numa posição de grande vantagem entre os nossos pares no todo natural. Mas teremos nós o direito de gerir a Natureza apenas em nosso proveito, agredindo-a como tem sido regra, sobretudo, a partir da Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, e em crescimento exponencial nos tempos que se seguiram? 

A Terra, no quadro em que se nos apresenta hoje, é o resultado de um sem número de agressões sofridas ao longo da sua velhíssima história. Contudo, e em consonância com James Lovelock (1919-2022), na sua hipótese “Gaia”, a Terra é um corpo que se autorregula e, como tal, sempre soube encontrar resposta a todas essas agressões e vai, sem dúvida, continuar a fazê-lo. Os danos que lhe podemos causar, no mau uso que dela fizermos, é mudar-lhe as condições que nos são favoráveis e que bem conhecemos, dando origem a outras, ainda desconhecidas, que nos poderão ser altamente adversas. Assim, ao atentar contra a Natureza, o Homem está, certamente, a atentar também contra si próprio, contra a humanidade. Acaso deixou de existir mundo natural aquando das grandes extinções em massa, como a que se verificou há cerca de 65 milhões de anos que, entre muitíssimos outros grupos biológicos, levou ao desaparecimento dos dinossáurios não avianos? 

Numa ânsia desenfreada de lucro e de prazer, a civilização industrial incontrolada pode desencadear uma nova extinção em massa que, certamente, a vitimará a ela também. Porém, o planeta – e os geólogos têm consciência disso – irá prosseguir, mesmo sem a inteligência do Homem, e acabará por encontrar novos caminhos, em obediência apenas às leis da física, incluindo as do acaso, podendo voltar a ensaiar um outro ser inteligente ou, até, mais inteligente do que esta versão moderna do Homo sapiens, que somos nós. Para tal só necessita de tempo, de muito tempo, e isso não lhe irá faltar, uma vez que como se disse atrás, estimamos em mais cinco a seis mil milhões de anos a sua existência como planeta, até que o Sol, na sua evolução como estrela, o envolva num imenso brasido. 

Perante quem deve o Homem prestar contas da maneira como decide articular-se com a Natureza? É, sem dúvida, aos outros Homens, ou seja, à Sociedade, que cada um de nós tem de responder pelo poder de decisão e pela liberdade de acção que as nossas imensas capacidades nos conferem. Se o Homem deu voz à Natureza, a Sociedade deu-lhe ética e assume-se no direito de estabelecer regras entre os seus pares no usufruto deste vasto condomínio. Sendo certo que a capacidade de intervenção de cada indivíduo, como elemento consciente desta mesma Sociedade, está na razão directa das suas convenientes informação e formação, importa, pois, incrementá-las. E incrementá-las é facultar-lhe o acesso aos conhecimentos que, desde sempre, a Ciência nos vem revelando.

António Galopim de Carvalho

BASÍLIO TELES, FILÓSOFO DA CIÊNCIA

Meu artigo para a revista "As Artes entre as Letras":

Foi há cem anos que faleceu Basílio Teles (1856-1923), um intelectual portuense que militou no movimento republicano. Um dos revolucionários do 31 de Janeiro de 1891, viu-se obrigado ao exílio pelo falhanço deste golpe. A mesma sorte teve o seu companheiro nessa revolta, José Sampaio Bruno, maçon como ele. Instaurada a República, Teles não aceitou exercer o cargo de ministro que o novo regime lhe ofereceu. Para além de activista político, foi professor do ensino secundário, autor de livros sobre política, história e economia e um prolixo publicista.

Teles estudou na Academia Politécnica e da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que abandonou em 1879 por conflitos com professores, um dos quais o famoso Doutor Urbino de Freitas, que haveria de ser condenado em tribunal num caso famoso. Vivia-se então um tempo marcado pelo positivismo: Foi condiscípulo no curso médico de Júlio de Matos, da mesma idade, que foi editor com Teófilo Braga da revista filosófica O Positivismo, e que haveria de se dedicar à psiquiatria em Lisboa. Também conviveu no Porto com o médico Ricardo Jorge, só dois anos mais novo, que seria obrigado a deixar o Porto com a peste bubónica que assolou essa cidade em 1899.

Uma marca do republicanismo foi o distanciamento em relação à Igreja. Não admira, por isso, que Teles tenha assumido uma posição ateísta, baseada na sua visão do problema do mal. Dissertou sobre questões religiosas em O Livro de Job (1912) e analisou a relação entre ciência e religião no seu livro A Questão Religiosa (1913).

 Teles confiava na ciência, tendo desenvolvido uma visão cosmológica monista. Podemos-lhe chamar-lhe um positivista idealista ou metafisico, uma forma decerto heterodoxa do positivismo prevalecente. Afastando-se também do positivismo comtiano, Sampaio Bruno encaminhou-se não para a ciência, mas sim para o misticismo e o esoterismo. Cada um à sua maneira, foram os dois figuras singulares no positivismo republicano.

A sua filosofia da ciência está expressa em dois livros. O primeiro foi uma tradução do grego da tragédia de Ésquilo, Prometeu agrilhoado (com um estudo a propósito da tragedia) (1914), onde incluiu um texto seu sobre a ciência helénica, e outro sobre a ciência moderna, onde apresentou as suas ideias sobre o espaço, o tempo e a matéria. O segundo consistiu no desenvolvimento das suas ideias anti-atomistas, que já tinham aparecido no livro anterior: A Ciência e o Atomismo. Continuação do ‘Estudo’ inserto no ‘Prometeu Agrilhoado’ (s. d.).

No texto sobre a «ciência moderna» incluído no Prometeu expôs sumariamente a sua cosmologia: entende que existe uma realidade regida por leis, que a ciência procura descobrir. A formação científica de Teles era inteiramente fundada na física clássica (teve uma cadeira anual de Física na Academia Politécnica). Mas as ciências físicas estavam em plena transformação no início do século XX, com as leis clássicas a darem lugar a outras, bastante diferentes: por exemplo, as leis de Newton eram abanadas pela teoria quântica e pela teoria da relatividade. Se a primeira ainda era determinista, a segunda já não o era. Teles, talvez pelo seu isolamento e por falta de suficiente formação científica, não se apercebeu das grandes mudanças científicas que então ocorreram.

A teoria quântica é de 1900, e a teoria da relatividade de 1905, na forma restrita, e  de 1915, na forma geral. A primeira nasceu com Max Planck, com a descoberta da descontinuidade da energia, mas passou por Albert Einstein, Niels Bohr, Louis de Broglie antes de chegar à forma actual, fruto dos trabalhos de Erwin Schroedinger e de Werner Heisenberg. A segunda teoria foi inteiramente de Einstein: ele uniu matematicamente o espaço e o tempo, os dois considerados relativos, e ligou numa identidade a matéria e a energia. Na sua coroa de glória, a relatividade geral, explicou a gravidade como o encurvamento do espaço-tempo pela matéria-energia.

Quando Teles morreu, a teoria da relatividade estava terminada e a teoria quântica quase a ser terminada. Não acompanhando esses desenvolvimentos, o pensador portuense tratou conceitos essenciais dessas teorias - como espaço, tempo, matéria e energia – não num registo científico, mas sim num registo filosófico.

Para ele, o espaço era uma realidade infinita e continua, o cenário onde se passavam todas as coisas. E o tempo não tinha uma realidade exterior, sendo apenas pessoal e subjetivo: este foi um dos seus maiores erros. Alem de não fazer um tratamento científico do tempo, ignorou as ideias do filósofo Henri Bergson, que também tinha uma noção subjectiva do tempo, por causa da qual teve uma discussão com Einstein, reflectida no seu livro Duração e Simultaneidade (2022). Embora de uma maneira diferente da de Einstein, para Teles matéria e energia também estavam ligadas, pois não considerava demonstrada a existência de átomos: ao contrário de Einstein, que em 1905 corroborou a chamada «hipótese atómica», para ele a matéria não passava de um conjunto de «flocos» de energia em permanente movimento. As suas ideias filosóficas vinham em parte do matemático Henri Poincaré, um predecessor da teoria da relatividade e também o autor de livros de filosofia da ciência. Note-se que Teles não era um cientista – de resto, havia muito poucos cientistas portugueses nas primeiras décadas do século XX – mas sim um filósofo largamente autodidacta. Há quem lhe aponte a escassez de leituras, mas temos de o compreender à luz do défice da ciência no Portugal da época.

Basílio Teles foi um anti-atomista, por razões que explicou aprofundadamente em A Ciência e o Atomismo. Podemos chamar-lhe um defensor do energeticismo, uma doutrina que foi durante algum tempo defendida por Poincaré, mas que este abandonou em 1911. A realidade dos átomos tornou-se então clara com a difusão dos resultados do físico Jean Perrin do movimento desordenado de partículas em suspensão.  

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O FUTURO AGORA


Minha comunicação convidada no Congresso "Outrora Agora" da Sociedade Portuguesa de Psicanálise realizado há dias no CCB em Lisboa: 

O futuro agora: estamos perante o problema, o mistério, do tempo. Todos sabemos e a física também sabe que há uma seta no tempo: distinguimos o passado do futuro. Sabemos o passado, mas não sabemos o futuro. A física, embora de modo muito limitado, consegue fazer previsões, antecipando o futuro. O passado é um guia indispensável para asses exercícios de prospectiva. Mas, enquanto a física de Newton e Einstein, eivadas de determinismo acertam, já o mesmo não se passa nas ciências sociais e humanos. Freud em O Eu e o Id, em 1923, publicado há cem anos, dizia que não acreditava em “sonhos proféticos.” Por muito que conheçamos o passado – outrora - falhamos sempre a saber o futuro – que começa agora. Em particular, as descobertas da ciência e as invenções da tecnologia têm-se revelado impossíveis de prever. 

 As falhas das previsões 

O físico norte-americano Albert Michelson, Nobel da Física em 1907, autor de uma experiência decisiva para validar um postulado da teoria da relatividade restrita (que é de 1905, o mesmo ano dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade de Freud), afirmou em 1894: “Parece provável que a maior parte dos grandes princípios já estão firmemente estabelecidos e que os avanços futuros precisam de ser procurados arduamente na aplicação rigorosa desses princípios a todos os fenómenos  de que temos conhecimento. (…) As verdades futuras da física devem ser procuradas na sexta casa decimal.”

Os físicos enganam-se. Não tinha ainda passado uma década e já havia duas teorias físicas completamente novas: a teoria quântica e a teoria da relatividade, que haveriam de permanecer inabaláveis até aos dias de hoje. Einstein esteve na génese das duas, embora se tenha distanciado da segunda, como um pai que se vê abandonado pela filha… Complexo de Electra!

O britânico Lorde Kelvin, um dos maiores físicos do século XIX (tem uma relação com Portugal: casou com a filha do cônsul inglês no Funchal), disse, numa conferência na Royal Institution de Londres em 1900, com notável premonição, que existiam, na física clássica, dois pequenos problemas por resolver: “A beleza e a claridade da teoria dinâmica, que coloca calor e luz como modos de movimento, está presentemente obscurecida por duas nuvens.” Essas duas “nuvens” deram lugar às duas teorias referidas, que são os pilares da física moderna e que, em particular a teoria quântica, proporcionaram enormes transformações do nosso modo de vida. 

Outras pessoas notáveis falharam nas suas previsões. Alguns deles grandes chefes militares. O marechal francês Ferdinand Foch, professor de Estratégia na Escola Superior de Guerra em Paris, que seria comandante das forças aliadas na frente oeste durante a Primeira Guerra Mundial, declarou em 1911 que “os aviões são brinquedos interessantes, mas não têm qualquer valor militar.” O almirante norte-americano William Leahy, um dos militares mais medalhados desse tempo, disse ao presidente Truman em 1945 a respeito da bomba atómica: “Esta é a maior tolice de sempre. A bomba atómica não explodirá nunca, e falo como especialista em explosivos.” As explosões de Hiroxima e Nagasaki calaram-no. 

Sobre os computadores, que proliferaram no mundo de forma vertiginosa nos últimos décadas, também há todo um reportório de previsões falhadas. Vejamos, dois dos maiores erros. Em 1943, Thomas Watson, fundador da IBM, afirmou: “Penso que no mundo só há mercado para talvez cinco computadores.” Mais tarde, em 1977, Ken Olsen, fundador da DEC, uma companhia igualmente pioneira na área, declarou: “Não há nenhuma razão para que um cidadão comum queira ter um computador em sua casa.” Em 1973, quando foi fundada a Sociedade Portuguesa de Psicanálise, não havia quaisquer computadores pessoais. Os empresários, tal como os físicos e os militares, enganam-se. Falta acrescentar que os economistas se enganam, que os políticos se enganam, que os filósofos se enganam. Mas como há muita gente a dizer coisas muito variadas, e, portanto, alguns dele poderão o ocasionalmente acertar. Não vou dizer que os psicanalistas se enganam, porque eles sabem-no.  Errar é humano. Como disse Niels Bohr: «É muito difícil fazer previsões: em especial, do futuro.» Sim, porque há sítios em que a interpretação a história muda tão rapidamente que é difícil fazer previsões do passado: foi o caso da antiga União Soviética… 

Os desafios do futuro 

Einstein disse que nunca pensava no futuro, pois ele “chega sempre cedo demais.” Ele próprio antecipou o futuro ao formular as suas teorias da relatividade e quântica, no annus mirabilis de 1905. Como o futuro nos traz sempre surpresas – por vezes desastres como epidemias e guerras, temos medo do futuro. É a coisa mais humana, ter medo. É, para além do mais, um instrumento biológico de sobrevivência, um meio de vida. Claro que demasiado medo paralisa: um meio de vida transforma-se num meio de morte. 

Tivemos e temos medo da bomba atómica (que Einstein viu, mas Freud não, por ter morrido em 1939), tivemos e temos da superpopulação, da falta de recursos e da degradação do ambiente, temos medo de que o céu nos caia na cabeça. E tantos outros grandes medos. Escolho três dos grandes problemas actuais, que nos causam medos e que também nos lançam desafios (Friedrich Hölderlin: “onde está o perigo está também a salvação.”) 

 1- Aquecimento global: o aumento por mão humanas das emissões de CO2 está a prejudicar a nossa vida na Terra. No futuro não trará o fim da nossa espécie, mas já está a trazer a de outras espécies. Seremos todos refugiados climáticos se não mudarmos as nossas fontes de energia, abandonando os combustíveis fósseis. Estão na rua contestações a políticas de continuação do status quo. Não sei o que nos vai acontecer, mas estou em crer que haverá salvação. Não acreditando em milagres, espero que a inovação nos traga soluções que hoje não imaginamos.

2- Genómica: hoje temos instrumentos de manipulação genética, o CRISP, premiado com o Nobel da Química de 2020, que nos permite alterar, para o bem e para o mal, o nosso destino genético. Temos medo de fazer monstros como fez o Doutor Frankenstein, no romance Frankenstein ou o Prometeu moderno, de Mary Shelley, em 1818. Lembro a frase de Goya: «O sono da razão gera monstros.» 

3- Inteligência artificial (IA): A IA desenvolveu-se vertiginosamente nos últimos anos. Há quem diga que esta à vista do fim do ser humano, substituído por máquinas, que são mais inteligentes e imperecíveis. O fim da humanidade aconteceria num “ponto de singularidade”, seguido da era do transumanismo. Personagens mediáticas como Stephen Hawkings e Elon Musk chamaram a atenção para o perigo de um futuro transhumano. Julgo que os computadores não nos podem substituir por não terem paixões, crenças, consciência, mas sei que o assunto é discutível. 

Estes perigos não são só de agora, são também de outrora. O engenheiro norte-americano de origem austríaca (portanto, com a mesma pátria do Freud) Hans Moravec, da Universidade de Carnegie-Mellon, previu no seu livro Homens e Robôs. O futuro das inteligências humana e robótica (1988), que robôs inteligentes iriam acabar por prevalecer sobre os seus criadores, uma supremacia que deveria ocorrer cerca do ano 2040. Por essa altura, poder-se-ia fazer o download da mente humana para dentro de um robô, assegurando a cada um de nós assim uma vida eterna. Seria a morte da morte, de Tanatos, mas receio que também o fim de Eros. Moravec confessa que nunca percebeu por que razão o Pinóquio, um boneco de pau, queria ser humano. Ele em criança sonhava ser Pinóquio, o que lhe garantia uma recuperação fácil na oficina do Mestre Gepeto em caso de um eventual acidente. O professor de Robótica diz que as pessoas preferirão ser robôs, com o hardware imperecível, e um software com capacidade para expansão para além dos actuais e frágeis limites humanos. Não sei, eu prefiro ter carne e osso… 

Consideradas todas essas ameaças, estará à vista o fim da humanidade? Não creio. Há muitas razões para afirmar que o agora é melhor do que outrora (vivemos mais e melhor, em boa parte graças ao desenvolvimento da ciência e tecnologia!) e, a continuar este estado de coisas, o melhor ainda está para vir. Daqui por uns tempos, o agora vai ser melhor do que o outrora. Julgo que saberemos fazer ciência com consciência e, portanto, que, seremos capazes de aprender com os erros – estou-me a lembrar, por exemplo, do médico chinês que usou o CRISP em bebés, tendo sido condenado a prisão – que seremos capazes de usar o conhecimento para melhor, como temos feito até aqui. Será a cultura, ou se quisermos a civilização, que nos ajudará. No entanto, a nossa humanidade - o conjunto de marcas distintivas que nos fazem humanos - é muito antiga, não sendo por vezes fácil a sua relação com as novidades científico-tecnológicas que invadem a nossa vida.

O outrora sempre nos serviu de orientação no agora, mas temos, cada vez mais, de incorporar o futuro no agora, isto é, temos de saber judiciosamente usar a previsão de acções futuras na nossa acção actual. No mundo e ainda mais em Portugal, o país do "logo se vê," em que se transforma rapidamente o agora em outrora, deixando tudo como está. Faço aqui uma vénia a José Gil que, em Portugal: O medo de existir, fala, usando ferramentas da psicanálise, do problema da “não-inscrição” e da nossa dificuldade em lidar com o futuro. Numa cultura como a alemã, planeia-se tudo ao mínimo pormenor, mas, entre nós, vive-se do improviso e de expedientes. Vive-se do «desenrasca». 

Freud, Einstein e a guerra 

Sobre o futuro tem pairado no mundo, desde sempre, o problema da guerra. Gostaria de trazer aqui a posição de Freud sobre o assunto. Sei que há muita contestação à cientificidade de Freud, li o Anti-Freud de Michel Onfray, em português com prefácio de José Luís Pio de Abreu. Não conheço bem a sua enorme obra, mas gosto de algumas coisas dele…. A minha editora é a Gradiva, um nome que vem de livro de Freud. E um dos meus heróis da ciência é - já falei dele - Einstein, que escreveu um livro com Freud. Einstein foi correspondente e amigo de Freud, o que não significa que tenha aderido às suas ideias na psicanálise. Os dois eram judeus e ateus: Freud fez a psicanálise da religião em O Futuro de uma Ilusão (1927) e Einstein não acreditava num Deus pessoal, embora tivesse uma religião que podemos dizer cósmica: um pouco à maneira de Espinosa, acreditava na harmonia do mundo. Segundo Freud, a humanidade devia aceitar que a religião é apenas uma ilusão para sair de seu estado de infantilismo: ele relaciona esse fenômeno à criança que deve resolver o seu complexo de Édipo: "essas ideias [religiosas], que professam ser dogmas, não são o resíduo da experiência ou o resultado da reflexão: são ilusões, a realização dos mais antigos, mais fortes, desejos mais urgentes da humanidade; o segredo de sua força é a força desses desejos. Já sabemos: a terrível impressão da angústia da infância despertou a necessidade de ser protegido―protegido por ser amado―uma necessidade que o pai satisfazia." 

Freud nasceu em 1856 e morreu em 1939. Einstein nasceu em 1879 e morreu em 1955, pelo que era 23 anos mais novo. Einstein e Freud escreveram, como referi, em conjunto um livro, saído em 1933, há exactamente 90 anos (a edição alemã foi logo proibida pelos nazis, subidos nessa altura ao poder), que resultou de cartas entre eles, trocadas em 1932, com o título Porquê a Guerra?, um título de novo desafortunadamente bastante actual, pois reacendeu-se a guerra do Médio Oriente em acrescento à guerra da Ucrânia, para não falar de outros conflitos, reais ou potenciais. O livro surgiu a partir de um debate no seio da Sociedade das Nações (que existiu entre 1929 e 1946), para o qual Einstein foi escolhido. O sábio escolheu tratar o tema da guerra e escolheu para correspondente Freud, bem mais velho do que ele, que considerava uma das pessoas que melhor escrevia em alemão. Tinham-se encontrado uma só uma vez, em 1927 em casa do filho de Freud em Berlim. Freud comentou: "Ele é alegre, confiante e gentil, e entende tanto de psicologia quanto eu de física, pelo que tivemos uma conversa muito agradável". Einstein — quando foi para isso procurado — recusou-se a apoiar a candidatura ao Prémio Nobel que Freud tanto ansiava (foi nomeado 13 vezes sem nunca o ganhar!). Disse Einstein: "Apesar da minha admiração pelas realizações engenhosas de Freud, hesito em intervir neste caso. Não me consegui convencer da validade da teoria de Freud", disse o físico em 1928. Mas a admiração dele foi crescendo ao longo do tempo: agradeceu o último livro de Freud, Moisés e o Monoteísmo, com grandes encómios. 

A missão deles era compreender o incompreensível: Porquê a guerra? Escreveu Einstein: "A pergunta é: existe uma maneira de libertar os homens da fatalidade da guerra? É sabido que, com o progredir da ciência moderna, responder a esta pergunta tornou-se uma questão de vida ou de morte para a civilização por nós conhecida; e no entanto, apesar de toda a boa vontade, nenhuma tentativa de solução deu qualquer resultado visível.” No caso de Einstein, o assunto que normalmente ocupava os seus pensamentos, a física, "não ajuda a discernir os obscuros recessos da vontade e do sentimento humano", de modo que não podia fazer mais do que pedir a Freud pudesse iluminá-lo com o "seu amplo conhecimento da vida instintiva humana". Perguntou, mais adiante: "Existe possibilidade de controlar a evolução psíquica dos homens de modo a tornarem-se capazes de resistir às psicoses do ódio e da destruição?" 

Freud era um pessimista inveterado. Michel Onfray em Anti-Freud sumaria assim «o quadro freudiano da miséria estrutural dos homens”: “A felicidade não é possível, só existem breve e decepcionantes ilusões hedonistas; todas as hipóteses para criar bem-estar naufragam no desengano, na desilusão, na decepção; a maior felicidade concebível confunde-se com a menor dor possível; as soluções colectivas, comunitárias, altruístas, estão vocacionadas para falhar; o amor aumenta os riscos de tudo quanto é pior; o casal e a família aumentam as potencialidades de sofrimento; a política não pode de modo algum contribuir para a felicidade da Humanidade (…) Freud não pára de o afirmar: o pior está garantido.” Freud tinha escrito durante a Primeira Guerra Mundial dois textos, Considerações actuais sobre a guerra e a morte (1915) e Caducidade (1915), que foram incluídos no livro Porquê a guerra?. Tinha também escrito O Mal-estar da Civilização (1930), no original Das Unbehagen in der Kultur, uma obra em que discute o que considerava um enorme choque entre o desejo de individualidade e as expectativas da sociedade. Como já tinha dito em O Futuro de uma Ilusão, Freud defende em O Mal-estar da Civilização que a civilização deve apelar para valores morais para garantir a sua integridade e proteger-se das inclinações destrutivas individuais. Conclui esse livro dizendo: “A questão decisiva para a espécie humana parece-me ser se e em que medida o seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação da sua vida comunitária causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Pode ser que, neste aspecto, precisamente o tempo presente mereça um interesse especial. Os homens ganharam controle sobre as forças da Natureza a tal ponto que, com a ajuda deles, não teriam dificuldade em exterminar-se uns aos outros até o último homem. Eles sabem disso e daí vem grande parte da sua atual inquietação, da sua infelicidade e do seu humor de ansiedade. E agora é de esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestiais’, o eterno Eros, se esforce para se afirmar na luta contra o seu adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado? “

Em resposta ao pedido do director da Liga das Nações, Freud começou por se tentar esquivar: "Toda a minha vida tive de dizer às pessoas verdades difíceis de engolir. Agora que estou velho, certamente que não os quero enganar." Mas Einstein assegurou-lhe que pretendia uma “resposta psicologicamente eficaz e não optimista.” Depois de descrever a constância da belicosidade da espécie humana desde que ela existe sobre a Terra, Freud defendeu, na sua carta a Einstein, sem deixar margem para dúvidas, que "seriam inúteis os propósitos para eliminar as tendências agressivas dos homens." E terminou com uma pergunta e uma esperança: "Durante quanto tempo deveremos esperar até que os outros se tornem pacifistas? É difícil dizê-lo, mas talvez não seja uma esperança utópica a de que esses dois factores — a atitude cultural e a angústia justificada face às consequências da guerra futura — ponham fim aos conflitos bélicos num prazo previsível. É-nos impossível adivinhar por que caminhos ou desvios se conseguirá tal fim. Por agora, só podemos dizer: tudo o que fomente a evolução cultural actua contra a guerra."

De onde vem a agressividade humana? Em 1923  Freud escreveu a últimas das suas grandes obras psicanalíticas O Eu e o Id, no original Das Ich und das Es, em que separa o id (isso, ele) do ego e do superego, uma separação diferente da que tinha feito entre consciência e inconsciência. O id é o nosso lado animal, totalmente inconsciente. É a porção inconsciente da psique que opera com base no "princípio do prazer," sendo a fonte dos impulsos básicos; busca prazer e gratificação imediatos. E o ego tinha uma parte inconsciente. O superego era totalmente consciente: era o ego com valores morais. A comparação freudiana entre o id e o ego é entre um cavalo e cocheiro. Freud reconheceu que o uso do termo id deriva dos escritos de Georg Groddeck, o médico alemão pioneiro da medicina psicossomática. Não falte quem veja hoje a presença do id na agressividade que inunda as redes sociais. 

Foi nesse ano de 1923 que Freud começou a sentir a proximidade da morte: desenvolveu um cancro do maxilar que só em 1939 o iria vitimar, no ano em que publicou o livro sobre Moisés. Os médicos adiaram-lhe a notícia do cancro com receio que ele se suicidasse. Mas nos dias finais deve ter havido um pacto entre médico e doente, que levou a que o primeiro lhe administrasse uma dose fatal de morfina. 

 Grandes medos e aproximações psicanalíticas

Vejamos a relação das ideias freudianas com alguns dos nossos grandes medos. 

1) Perante as alterações climáticas, muita gente tem medo do futuro, em particular os jovens. É um problema urente que nos devia mobilizar a todos, psicanalistas incluídos. Lembro um episódio da Segunda Guerra Mundial. Numa reunião da Sociedade Psicanalítica Britânica durante o Blitz de Londres os psicanalistas debatiam as origens do ódio e da agressão, até que um membro chamou a sua atenção para as consequências demasiado reais, observando: “Gostaria de salientar que há um ataque aéreo a acontecer.” Pois bem: as alterações climáticas é um raid que nos está a acontecer. Podemos proteger-nos, podemos? Quanto mais cedo fizermos, melhor será. Os psicanalistas, juntamente com outros terapeutas, podem não só chamar a atenção para as ameaças colocadas pelas alterações climáticas como ajudar a decifrar as defesas mentais que impedem as pessoas de responder às alterações climáticas. Por que há tantos negacionistas quando o problema na ciência está consensualizado? O facto de muita gente estar cientes das mudanças climáticas e seus efeitos, mas fazerem pouco ou nada a esse respeito, sugere a “dissociação”, o conceito freudiano que explica como enterramos traumas no inconsciente. Freud disse que as pessoas mostram um comportamento infantil em vez de adulto como mecanismo de defesa para lidar com situações de stress. 

2) Quanto à genómica: lembro que o mendelismo foi redescoberto em 1900, o ano da Interpretação dos Sonhos. Darwin era um seguidor de Darwin, tal como Marx. Reconhecia o papel da hereditariedade nas doenças mentais. Hoje com a genómica, começamos a compreender melhor da genética em certas doenças mentais. Será que intervenção genómica precoce pode aliviar ou eliminar doenças mentais. Estamos no domínio da bio-utopia. Quanto ao medo de Frankenstein, não há dúvida que essa criatura representa o nosso lado negro, os monstros dentro de nós, mas lembro que a criatura se transforma num monstro destruidor só porque os homens o discriminaram. Há várias leituras psicanalíticas do livro de Mary Shelley, um livro tão actual agora como outrora.

3) Finalmente, quanto à IA, ela desde o início tem sido utilizada em psicologia e hoje há cada vez mais programas que simulam consultas psicológicas e psicoterápicas. Um truque consiste em fazer perguntas a partir de afirmações do cliente…. Mas o uso hodierno de IA na psicologia vai muito além. Dou outro exemplo: para diagnóstico de saúde mental, algoritmos de IA podem ser usados ​​para analisar dados de testes psicológicos, históricos de pacientes e dados biométricos. Mas há legítimos receios quanto ao futuro, designadamente a ideia de que robôs ou software de IA funcionem para conversar ou interagir com humanos de uma maneira nefasta para estes. De facto, isso já hoje acontece. Sei que há a questão das emoções, mas, ainda que de forma parcial, a IA pode analisar e compreender as emoções humanas. Os robôs já estão a ajudar pessoas com problemas de saúde mental. E, perguntarão, na área, obsessiva em Freud, do sexo? Poderão os robôs fazer alguma coisa? Sim, já há robôs sexuais, que poderão ser o motor do negócio da IA. E, finalmente, há a grande questão da consciência -e, portanto, da inconsciência – que ainda é um mistério, apesar de todos os avanços da IA. Não sabemos pura e simplesmente como funciona a consciência.

1973 e o futuro

Para finalizar, uma nota sobre o ano de 1973, ano em que foi fundada a Sociedade Portuguesa de Psicanálise, quando o regime marcelista se aproximava do fim. Foi o ano em que houve a guerra do Yom Kippur no Médio Oriente e, em relação coma guerra, uma grave crise energética. O regime mudou em Portugal. Mas a guerra continua no mundo, a crise energética também. Foi outrora, mas parece que foi agora. Mas há coisas que, felizmente, mudaram. Lembro que foi nesse ano que a Associação Americana de Psiquiatria removeu a definição de homossexualidade como um transtorno mental da 2.ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-II). Egas Moniz, em A Vida Sexual. Fisiologia e Patologia, original em dois volumes de 1901 e 1905, que passou a certa altura a incluir referências a Freud (o Nobel português foi pioneiro na sua recepção entre nós, ao falar dele, pela primeira vez, na sua lição inaugural de Neurologia na Universidade de Lisboa em 1915), apresentou a homossexualidade como uma doença. 

A propósito do Prémio Nobel, lembro que em 1973 o Nobel da Medicina de  foi para os etologistas austríacos Karl Von Frisch e Konrad Lorenz, e para o seu colega holandês Nikolaas Tinbergen. Todos eles fizeram progressos no conhecimento dos instintos animais de que Freud falou. E é curioso que o Nobel da Medicina de 2023 tenha ido para as investigações no domínio da genética da húngara Katalin Karikó e do norte--americano Drew Weissman que nos permitiram em tempo recorde produzir uma vacina eficaz contra uma epidemia largamente inesperada.

Como será o mundo  em 2073?  O futuro não se pode prever por causa da complexidade do humano. Parece ser impossível uma teoria geral da natureza humana, uma teoria que Freud ensaiava, na óptica dele, de uma maneira científica. As questões últimas da natureza humana não encontram resposta na ciência. Há leis na física, mas não sei se algum dia haverá leis para os homens.

O filósofo russo-britânico Isaiah Berlin, num texto sobre  Moses Hess, um filósofo alemão do século XIX, socialista e sionista, escreveu: «Um sentido de simetria e regularidade, e um dom para dedução rigorosa, que são pré-requisitos de aptidão para algumas ciências naturais, irão, no campo da organização social, a menos que sejam modificados por uma grande dose de sensibilidade, compreensão e humanidade, conduzirão inevitavelmente a terrível agressão, por um lado, e ao sofrimento indescritível, por outro.» 

Além de ciência, é preciso bondade. É preciso acima de tudo humanidade. Einstein afirmou-o no manifesto contra as armas nucleares que assinou com o matemático e filósofo britânico Bertrand Russel em 1955, um documento com outros autores que foi o seu último escrito: “Dirigimo-nos a vós como seres humanos. Recordai-vos da vossa humanidade e esquecei tudo o resto.”

NÃO É COM PALAVRAS DE ÓDIO QUE SE CONSTROI A PAZ

Por Eugénio Lisboa 
Uma coisa não é necessariamente verdadeira,
só porque morremos por ela. 
Oscar Wilde 

Não há mortos bons e mortos maus. Os mortos são todos iguais e não há uns mais iguais do que os outros. Morrer por uma causa que se julga boa é, como observou Bertrand Russell, uma estupidez, porque podemos estar errados e a causa não ser boa. Só os idiotas e os fanáticos têm certezas. Os filósofos e os homens de ciência costumam ter dúvidas. Quase todos os mortos têm alguém que gostaria de os retrazer à vida. 

Não se pode chorar um palestiniano morto e não se chorar um israelita morto. Um autor anónimo disse esta coisa belíssima:
“Se as lágrimas pudessem construir uma escada e as memórias uma estrada, eu subiria ao céu para te trazer de volta.” 
Há por certo, pelo menos, um palestino que pensa isto de outro palestino morto e um israelita que pensa isto de outro israelita morto. Diante destes mortos, de um lado e do outro, devemos curvar-nos, em respeito, e não tomar partido. Não dá para se gostar de uns e não se gostar de outros. E também não deve dar para incitar palavras de ódio e não palavras de paz. Não há “infiéis”, há só pessoas que têm visões da vida diferentes. 

Devemos respeito aos mortos, mas não àqueles que os fizeram morrer, porque estes não souberam encontrar, nem de um lado nem do outro, a linguagem do diálogo e da paz. Nenhum deles tem a razão toda, embora ambos tenham as suas razões.

Tentar chegar a uma solução aceitável, por via da guerra é o mesmo que tentar preservar a vida por via da morte. A guerra, como dizia o outro, não dita quem tem razão, dita só quem sobra. E os que sobram encontram-se, regra geral, piores do que estavam, antes de a guerra começar.

As redes sociais andam cheias de uma gritaria frenética, uns a favor dos palestinos (ocultando cuidadosamente as atrocidades do HAMAS), outros a favor dos israelitas (ocultando a opressão ignóbil destes sobre os palestinos e os colonatos impostos, em violação das leis internacionais). Quem não é nem palestino nem israelita devia favorecer a linguagem da aproximação, do diálogo e da paz, em vez de incitar ao ódio, que os leva, quase sem darem por isso, a pisar um chão ensanguentado.

Cogito muitas vezes como podem dormir sossegados os fautores de guerras e os imbecis que os seguem, sem um minuto de reflexão. Sabe-se hoje, por força da documentação histórica existente, que a horrível carnificina a Primeira Guerra Mundial poderia ter sido evitada. A Europa poderia estar hoje mais forte e mais feliz. E o nosso património cultural infinitamente mais rico, se alguns dos talentos e génios ali mortos e apodrecidos, tivessem vivido as suas vidas normais. 

Toda a guerra é sempre um mal e uma fonte insensata de desperdício. Quem a faz, quem a aplaude e quem a incita comete um inequívoco acto de delinquência, punível ao mais alto nível.

Eugénio Lisboa

BASÍLIO TELES E O ATOMISMO

 


Minha comunicação no recente congresso em Lisboa que assinala os 100 anos das mortes de Guerra Junqueiro e Basílio Teles:

Foi há cem anos que faleceu Basílio Teles (1856 – 1923), um intelectual portuense que militou no movimento republicano. Para além de activista político, foi professor do ensino secundário, autor de livros sobre política, história, religião, economia e filosofia, além de prolixo publicista.

Teles estudou na Academia Politécnica e na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, que abandonou em 1879 por conflitos com professores. Vivia-se então um tempo marcado pelo positivismo: foi condiscípulo no curso médico de Júlio de Matos (1856-1922), da mesma idade, que foi editor com Teófilo Braga da revista filosófica O Positivismo, e que haveria de se dedicar à psiquiatria em Lisboa.

Uma marca do republicanismo foi o distanciamento em relação à Igreja. Não admira, por isso, que Teles tenha assumido uma posição ateísta, baseada na sua visão do problema do mal. Dissertou sobre a religião em O Livro de Job (1912) e A Questão Religiosa (1913), tendo o mesmo tema também sido tratado pelo seu companheiro da revolta de 31 de Janeiro de 1981 José Sampaio Bruno (1857-1915).

 Teles confiava na ciência, tendo desenvolvido uma visão cosmológica monista. Podemos-lhe chamar-lhe um positivista idealista ou metafisico, uma forma decerto heterodoxa do positivismo prevalecente. Afastando-se também do positivismo comtiano, Sampaio Bruno encaminhou-se não para a ciência, mas para o misticismo e o esoterismo. Cada um à sua maneira, foram os dois figuras singulares no positivismo republicano.

A filosofia de Teles

A filosofia da ciência de Basílio Teles está expressa em dois livros. O primeiro foi uma tradução do grego da tragédia de Ésquilo, Prometeu agrilhoado (com um estudo a propósito da tragédia) (1914), onde incluiu um texto seu sobre a ciência helénica, e outro sobre a ciência moderna, no qual apresentou as suas ideias sobre o espaço, o tempo e a matéria. O segundo consistiu no desenvolvimento das suas ideias anti-atomistas, que já tinham aparecido no livro anterior: A Ciência e o Atomismo. Continuação do ‘Estudo’ inserto no ‘Prometeu Agrilhoado’ (s. d., que Braz Teixeira data de c. 1921, na edição dos Ensaios Filosóficos de Teles publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda - INCM).

No texto sobre a «ciência moderna» incluído em Prometeu expôs sumariamente a sua cosmologia: entende que existe uma realidade regida por leis, que a ciência procura descobrir. A formação científica de Teles era inteiramente fundada na física clássica (teve uma cadeira anual de Física na Academia Politécnica). Mas as ciências físicas estavam em plena transformação no início do século XX, com as leis clássicas a darem lugar a outras, bastante diferentes: por exemplo, as leis de Newton eram abanadas pela teoria quântica e pela teoria da relatividade. Se a primeira ainda era determinista, a segunda já não o era. Teles, por falta de suficiente formação científica e de atenção ao exterior, não se apercebeu das grandes mudanças científicas que então ocorreram.

A teoria quântica é de 1900, e a teoria da relatividade de 1905, na forma restrita, e 1915, na forma geral. A primeira nasceu com o alemão Max Planck (1856-1947), com a descoberta da descontinuidade da energia, mas passou pelo suíço Albert Einstein (1789-1955), pelo dinamarquês Niels Bohr, pelo francês Louis de Broglie (1892–1987) antes de chegar à forma actual, fruto principalmente dos trabalhos do alemão Werner Heisenberg (1901-1976)  e  do austríaco do Erwin Schroedinger (1887-1961). A segunda teoria foi inteiramente de Einstein: ele uniu matematicamente o espaço e o tempo, os dois considerados relativos, e ligou numa identidade a matéria e a energia. Na sua coroa de glória, a relatividade geral, explicou a gravidade como o encurvamento do espaço-tempo pela matéria-energia.

Quando Teles morreu, a teoria da relatividade estava terminada e a teoria quântica estava quase a ser terminada. Não acompanhando esses desenvolvimentos, o pensador portuense elaborou sobre conceitos essenciais dessas teorias - como espaço, tempo, matéria e energia – não num registo científico, mas num registo filosófico.

Para ele, o espaço era uma realidade infinita e continua, o cenário onde se passavam todas as coisas. E o tempo não tinha uma realidade exterior, sendo apenas pessoal e subjetivo: este foi um dos seus maiores erros. Alem de não fazer um tratamento científico do tempo, ignorou as ideias do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), que também tinha uma noção subjectiva do tempo (expressa em Evolução Criadora, 1907), que também tinha uma noção subjectiva do tempo, por causa da qual teve uma discussão com Einstein, reflectida no livro Duração e Simultaneidade (1922). Embora de uma maneira diferente da de Einstein, para Teles matéria e energia também estavam ligadas, pois não considerava demonstrada a existência de átomos: ao contrário de Einstein, que em 1905 corroborou a chamada «hipótese atómica», para ele a matéria não passava de um conjunto de «flocos» de energia em permanente movimento. As suas ideias filosóficas vinham em parte do matemático francês Henri Poincaré (1854-1912), um predecessor da teoria da relatividade e também o autor de livros de filosofia da ciência que se tornaram clássicos:  Ciência e Hipótese 1902), O Valor da Ciência (1905) e Ciência e Método (1908). Apesar de Poincaré enunciar basicamente a ideia da relatividade restrita no segundo destes livros, Teles não se interessou por essa parte. Teles sabia, via Henri Poincaré, que a massa entendida como inércia mudava com a velocidade em experiências de electrões, mas fala da «hipótese de electrões» como algo por provar. Por outro lado, ignorou a relatividade geral, apesar de ela ter sido corroborada na ilha do Príncipe e no Nordeste do Brasil em 1919, mantendo-se fiel ao paradigma euclidiano: conhecia, mais uma vez via Poincaré, as geometrias curvas, mas achava que elas não tinham qualquer aplicação na realidade. Saliente-se que Teles não era um cientista – de resto, havia muito poucos cientistas portugueses nas primeiras décadas do século XX – mas sim um filósofo largamente autodidacta. Há quem lhe aponte a escassez de leituras, mas temos de o compreender à luz do défice da ciência no Portugal da época.

O anti-atomismo de Teles

Basílio Teles foi um anti-atomista, por razões que explicou aprofundadamente em A Ciência e o Atomismo. Pode parecer estranho porque a atomismo está historicamente mais ligado ao ateísmo do que ao não-ateísmo. Podemos considera-lo defensor do energeticismo, uma doutrina que foi durante algum tempo defendida por Poincaré, mas que este abandonou em 1911. A realidade dos átomos tornou-se então clara com a difusão dos resultados do físico francês Jean Perrin do movimento desordenado de partículas em suspensão. 

Vejamos porque razão Teles não aceitava os átomos: no seu texto sobre a ciência moderna, inserto no Prometeu, Teles escreveu (p. 269 da ed. da INCM):

“A matéria é descontínua: eis a proposição em que assenta o atomismo, o antigo e o moderno. Será um facto? Será uma indução imposta irresistivelmente ao nosso espírito? Ou não será um mero postulado, admitido apenas no intuito de dar um nexo lógico às relações parciais estabelecidas pelo pensamento acerca do mundo exterior? Não se lembrando nenhum homem de ciência de afirmar que um átomo seja atingível pela observação ou pela experiência, aquela descontinuidade é evidente que não pode ser um facto, no sentido que a palavra cientificamente reconhece. De comprovação directa, torna-se incontestável que o não é, até mesmo para um noviço. Mas de comprovação indirecta, quer dizer, como um facto provável inferido legitimamente doutros factos – não o será? Eis a primeira dificuldade a resolver; porque as opiniões, e das mais autorizadas, são divergentes no assunto.»

Mais adiante (p. 290) explica por que razão as interaçcões (gravidade, luz, calor) desafiavam a teoria que ele chama átomo–mecânica, que ele repudia em favor de uma teoria átomo-dinâmica. Para ele, a relacionação dos movimentos «é insolúvel para qualquer das teorias». E acrescenta: «Pensam o contrário os defensores da átomo-mecânica, mas é um erro que é urgente dissipar. O que se torna aparentemente fácil de entender é a transmissão do movimento de um corpo a um outro contíguo, como na experiência das esferas elásticas em física. Aparentemente: porque analisado mais de perto, o fenómeno é, em extremo, complicado e não permite perceber aquela transmissão.”

O mais relevante era a relação entre as coisas, que se expressava através da energia (p. 309): “A  força ou energia, portanto, e só era é o substratum, o último e irredutível elemento em que pode resolver se o Universos fenomenal, como realidade exterior e como ideia.”

 Para Teles, a matéria era essencialmente energia.  A teoria energeticista existia no pensamento científico europeu, mas o português não invoca fontes onde o possamos filiar, para além de Poincaré.

A crítica de Teles ao atomismo é ainda mais clara em A Ciência e o Atomismo. Começa por falar de dificuldade em conceber os átomos como pequenas esferas iguais. Depois levanta o problema  da passagem da água a gelo (p. 324);

«O corpo é sempre um só invariável, pois o número dos seus átomos em qualquer um dos dois estados, e, todavia, o gelo adquire uma rigidez que a água não possui, e um volume superior ao dela antes que a solidificação se realize ( …) Era este um óbice grave para os atomistas de Abdera, e é-o ainda para os atomistas de hoje, que reclamam para essas partículas insecáveis igualdade completa de forma e de grandeza; e, para a sua influência recíproca, o contacto»

E,  mais adiante (p. 396):

“Se inúmeros factos vulgares, como sejam a difusão, a osmose, a dissolução, as misturas, ligas, amálgamas, infiltrações combinações e decomposições, etc., nos impõem o conceito de corpo, seja composto ou simples, como sendo uma geração de partes similares, i. e., de corpos iguais a ele, mas de dimensões infinitésimas -  nem um único, que nos saibamos, nos compele a admitir que essas partes similares, ao menos dos corpos simples, sejam por seu turno verdadeiros agregados, conforme a teoria dos átomos conjectura. Esta descontinuidade molecular – servindo-nos da expressão actual, é pura hipótese. Eliminada a extensão entre as propriedades da matéria não vemos que uma necessidade lógica qualquer na carência dum só facto impeditivo perfeitamente averiguado, obste ao conceito oposto de continuidade molecular, e da redução de quaisquer diferenças observadas entre esses corpos infinitésimos, ou moléculas, a diferenças de intensidade de energia ou energias representadas em cada um, mais exactamente, em que se resolve cada um deles, ou nos devemos esforçar por que se resolva.”

Os argumentos de Teles são débeis, pelo menos à luz dos conhecimentos de hoje: um é a impossibilidade de acesso aos átomos através dos nossos órgãos dos sentidos e, portanto, a sua figuração psicológica. Outra, patente no caso do gelo e água líquida, é a relação que ele pretende intuitiva entre densidade e rigidez. Outro ainda, talvez o principal, é a questão da transmissão dos movimentos: como é que pequenas partículas que interagem por choques podem dar conta de toda uma variedade de fenómenos da física e da química? Além disso, ele tinha dificuldade em entender o vácuo, que confundia com o espaço. O seu livro A Ciência e o Atomismo usa a física clássica para tratar de um mundo que hoje sabemos escapar a essa física.

A doutrina do atomismo

Mas, para percebermos melhor o que estava em jogo, vejamos a origem e o desenvolvimento do atomismo, como se passou de uma ideia especulativa para uma teoria cientificamente provada. A teoria atómica começou por ser uma hipótese mental e tardou até se tornar uma teoria física confirmada pela experiência. A sua origem remonta aos antigos gregos de Abdera, do século V a.C. No início do seculo XX persistia a «hipótese atómica», havendo cientistas e filósofos qu e a negavam. Mas só em 1911, quando se reuniu o 1.º Congresso Solvay em Bruxelas com os maiores físicos do mundo, é que o atomismo triunfou, com a comunicação do francês Jean Perrin (1870-1942) dos seus resultados experimentais do movimento dito browniano. Já se tinha percebido antes que o átomo não era indivisível, contrariando a etimologia da apalavra): em 1879 tinha sido descoberto o electrão. E o núcleo atómico foi descoberto no mesmo ano de 1911 pelo britânico Ernest Rutherford, um dos participantes no Congresso.

Foi longo e complexo o caminho do atomismo grego à hipótese atómica dos cientistas do início do século XX. O atomismo é uma filosofia natural que se desenvolveu não só na Grécia como noutras tradições antigas. Partindo indefinidamente qualquer pedaço de matéria encontrar-se-iam os átomos. Para os atomistas seguidores de Leucipo e Demócrito (c. 460-370 a.C.), os dois de Abdera, o primeiro do século V a C. e o segundo dos séculos V e IV a.C., «tudo é «átomo e vazio».

A doutrina de Leucipo e Demócrito não vingou na Grécia antiga: Aristóteles não a seguiu. Mas a ciência moderna acabou por a confirmar, embora os átomos sejam divisíveis: são feitos de núcleos e de eletrões, os núcleos de protões e neutrões e estes de quarks. Os átomos são, por isso, feitos no fundo de quarks, partículas pesadas, e de electrões, partículas leves. Chamamos a uns e a outros partículas fundamentais: são, de certa forma, os novos átomos. Pode parecer incrível que, sendo a Natureza tao variada, tudo se reduza a eles (há ainda partículas ultraleves e vadias, os neutrinos, que, ao contrário dos quarks e dos electrões, não têm carga). O físico norte-americano Richard Feynman, Nobel da Física 1965, disse um dia que, se a civilização humana estivesse na iminência de acabar, e só houvesse uma chamada telefónica para comunicar a um extraterrestre o mais importante que sabíamos do mundo, a mensagem deveria ser: «Tudo é átomos e espaço vazio».

Entre os seguidores gregos do atomismo, destacou-se Epicuro de Samos (341–270 a.C.): para ele tudo se resumia a infinitas combinações de átomos diferentes em choques incessantes. A morte rara a desintegração dos átomos do corpo, eternos e indestrutíveis, pois poderiam entrar na constituição de outros corpos. O movimento dos átomos era o estado natural e permanente do mundo. Epicuro procurava assim afastar o medo da morte e dos deuses. A sua doutrina foi divulgada pelo poeta latino Tito Lucrécio Caro (c. 94 a.C. – c. 50 a.C.), o autor de A Natureza das Coisas, que pode ser considerada uma das primeiras obras sobre o ateísmo. Esse poema foi descoberto num mosteiro alemão em 1417, na aurora da modernidade.

No Renascimento, as ideias de Lucrécio foram retomadas pelo padre francês Pierre Gassendi (1592–1655), que de certo modo “cristianizou” o atomismo, até então uma doutrina pagã. O italiano Galileu Galilei (1564 – 1642), um correspondente de Gassendi, foi atomista. Foram-no também os ingleses Robert Boyle (1627–1692) e Isaac Newton (1642-1729). Para este a luz era formada por partículas. O mesmo se passou com o francês René Descartes (1596–1650), contemporâneo de Galileu, que defendia pequenas partes de luz, embora ele não possa ser considerado um atomista, pois lhe repudiava a ideia de éter.

Em 1808 o químico inglês John Dalton (1766- 1844) assimilou o conhecimento experimental da química para sumariar a evidência da composição da matéria em moléculas, grupos de átomos. A hipótese atómica foi ganhando força ao longo só século XIX à medida que a química avançava. No final do século XIX tinha surgido a teoria científica dos gases, para cuja criação pontificou o físico austríaco Ludwig Boltzmann (1844-1906). Em 1875 concluiu que seus átomos apareciam como pontos com massa no quadro da teoria cinética dos gases. A composição dos átomos foi depois deduzida, sendo o electrão a primeira partícula elementar a ser identificada pelo inglês Joseph J. Thomson.

 No final do século XIX, houve críticas relevantes ao conceito atómico em especial nos países de língua germânica por parte do físico e filósofo positivista austríaco Ernst Mach (1838-1916) e por parte do químico energeticista alemão Wilhelm Ostwald (1853-1932), o que levou a uma acalorada controvérsia com Boltzmann. Mach, apesar do seu anti-atomismo, escreveu um obituário laudatório quando Boltzmann morreu. Ele suicidou-se em 1906, em consequência da doença bipolar, embora haja quem diga que estava desiludido por não ser reconhecida a sua doutrina dos átomos.

Para o positivista radical Mach a filosofia da ciência devia assentar apenas na experiência dos sentidos e os átomos não eram vistos! Por outro lado, Ostwald, fundador da Física-Química e Nobel da Química em 1909 pelos seus trabalhos em catálise e cinética química, criticou a hipótese atómica entendida de forma mecanicista. Em 1895 apresentou pela primeira vez as suas considerações filosóficas-naturais de uma forma coerente, defendendo a tese de que a matéria não passa de uma manifestação especial da energia. Ostwald foi respondendo a algumas das questões físicas e filosóficas que surgiram, mas algumas respostas eram insatisfatórias.  

Entre os químicos um outro anti-atomista foi o francês Pierre Duhem (1861-1916), termodinâmico, historiador e filósofo da ciência. Não acreditava nos átomos, porque eles não se viam, tal como Mach. Foi um defensor do energeticismo, i.e., da dispersão de energia no espaço em vez de átomos, mais concentrada nuns sítios do que noutros, sendo a redistribuição de energia a responsável por fenómenos observados.  A principal contribuição científica de Duhem foi o seu ensaio de unificar as ciências físicas e químicas no quadro de uma termodinâmica generalizada, na qual as palavras “átomo” e “molécula” estavam totalmente ausentes:  Tratado de Energética  (1911). Morreu sem acreditar na realidade atómica.

Foi em 1905 que surgiu o génio do então jovem Einstein. Na sua tese de doutoramento em 1905 sobre o atomismo fez uma descrição matemática do movimento browniano, i.e., o movimento desordenado de uma partícula de pólen devido a choques incessantes com moléculas de água (a descoberta do escocês Robert Brown em 1827 desse fenómeno, usando um microscópio, foi o maior contributo que a botânica deu à física!). Einstein publicou no mesmo ano da tese um artigo que explicava em pormenor como o movimento aleatório observado era resultado do choque com moléculas individuais de água.

Um dos seus maiores adversários foi o alemão Philipp von Lenard (1862-1947), galardoado com o Nobel de Física de 1905 por suas pesquisas sobre os raios catódicos ou de electrões. Ele foi um defensor da ideologia nazi. Entre as guerras promoveu a chamada “física alemã”, em oposição à “física judaica”. 

Jean Perrin  confirmou as ideias de Einstein, observando com cuidado o mesmo movimento browniano. O físico francês realizou as suas experiências sobre esse movimento em 1907-1909, tendo divulgado os seus resultados numa série de artigos. Um deles, com o título “Movimento browniano e realidade molecular,” foi publicado nos Annales de Chimie et de Physique (1909) e, logo traduzido para o inglês, contribuiu para a sua divulgação do atomismo e para a reputação do autor em França e no estrangeiro. Em 1910, Perrin foi promovido a professor na Sorbonne.  Publicou uma síntese no livro Les Atomes em 1913. Recebeu o Nobel da Física de 1926 "por seu trabalho sobre a estrutura descontínua da matéria".

Ele foi um dos convidados para o primeiro congresso de física Solvay, em 1911, em Bruxelas. Perrin encontrou  lá Einstein, Madame Curie (a única senhora) e o patriarca Henri Poincaré.  O industrial belga Solvay foi o promotor deste congresso que reuniu cerca de vinte dos maiores físicos da época. Os participantes deviam enviar uma sua comunicação com antecedência para que possam ser distribuídas aos participantes antes da reunião. A conferência de Perrin, intitulada “As provas da realidade molecular,” foi tão clara e tão bem argumentada que todos os participantes ficaram convencidos da existência dos átomos, mesmo os mais cépticos. Em particular, Ostwald, que, como químico, não participou na reunião e que tinha sido um adversário decidido do atomismo de Boltzmann, declarou-se convertido após ler a comunicação de Perrin. Henri Poincaré, até então céptico quanto à existência de átomos, admitiu, após ouvir a apresentação de Perrin, que “o átomo dos químicos se tinha tornado realidade.”

Numa palestra em 11 de Abril de 1912 na Sociedade Francesa de Física, intitulada “As relações entre a matéria e o éter” Poincaré disse: “As brilhantes determinações do número de átomos, feitas por Perrin completaram o triunfo do atomismo. O que anima a nossa convicção são as múltiplas concordâncias entre os resultados obtidos por procedimentos completamente diferentes (…) O átomo dos químicos é agora uma realidade, mas isso não quer dizer que estejamos a ponto de chegar ais últimos elementos das coisas (…) No átomo encontramos muitas outras coisas (…) Em primeiro lugar encontramos electrões cada átomo apresenta-se-nos como uma espécie de sistema planetário.” Poincaré morreu em 1912, três meses depois da palestra.

Após a Primeira Guerra Mundial, o energeticismo já quase não estava presente nas obras de física ou de filosofia. De todos os defensores dessa teoria, Teles cita Poincaré, e não Mach e Duhem. Estes últimos morreram em 1916 sem nunca se terem «convertido» ao atomismo. Planck disse – e com razão -  que as novas ideias não vingam por se convencerem os adversários, mas sim por os adversários morrerem e as novas gerações serem educados nas novas ideias.

Anti-atomismo em Portugal

Como é que apareceu o anti-atomismo em Portugal?

O atomismo foi entre nós prejudicado pela sua ligação ao ateísmo. Significativo foi o facto de o primeiro atomista português foi o filósofo judeu Isaac Cardoso, exilado no século XVII em Espanha e Itália e sem influência no país.  Autores como Gassendi, Descartes  e Newton foram proibidos no Portugal pós-tridentino. A ciência feita lá fora ia chegando com algum atraso.  Acaba por ser natural, no plano filosófico, a opção de Teles pelo anti-atomismo.

A polémica entre atomistas e anti-atomistas passou pelos escritos do filósofo Leonardo Coimbra (1883–1936), que, na sua tese O Criacionismo (1912), foi o primeiro a referir a relatividade em Portugal, embora o nome de Einstein.  Em 1922 teve, num artigo em A Águia, a clarividência de ver que, na disputa entre Einstein e Bergson, o primeiro tinha razão. Na referida tese, Coimbra tentou conciliar posições atomistas e energeticistas, escrevendo: “O que, consciente ou inconscientemente, fazem os energeticistas é fugirem ao mecanismo cousista, no que são dignos de louvor”.  O autor de O Criacionismo professou um intelectualismo idealista, reconhecendo a necessidade de reintegrar o saber das "mais altas disciplinas espirituais", como a metafísica e a religião. Maçon como  Bruno, interessou-se pelo espiritismo.  Converteu se ao catolicismo numa fase tardia da sua vida, tragicamente interrompida por um acidente de automóvel.

A concluir: Apesar de não acompanhar os últimos desenvolvimentos da ciência, e de alguns argumentos de Teles nos parecerem hoje um pouco naif, importa salientar a enorme confiança que ele depositava na ciência, que ele escreve com maiúscula. No final do seu A Ciência a e o Atomismo escreveu:

«Por toda a parte nos rodeiam enigmas. A cada um que a Ciência consegue desvendar, outros surgem a desafiar-lhe a curiosidade inextinguível e a inesgotável paciência. Não importa! Descrente de revelações do céu só na inteligência e no esforço humanos confia, para os ir pouco a pouco resolvendo. Sabe que não encontrará integralmente o seu programa; mas sabe também que do Universo, que aos seus recursos próprios é acessível, só ela pode encontrar a fórmula adequada, rigorosa, fecunda e progressiva.»

A teoria quântica veio unir a matéria e a energia de uma maneira muito peculiar que de algum modo resolve a disputa entre atomistas e energeticistas: os corpúsculos também se apresentam, como ondas. O físico francês Louis Victor de Broglie fez há cem anos – numa comunicação à Academia das Ciências a 19 de Setembro de 2023 intitulada «Quanta e Ondas» - contribuições inovadoras à teoria quântica, que divulgou na sua tese de doutoramento de 1924: postulou a natureza ondulatória do electrão, sugerindo que toda matéria tem propriedades ondulatórias. Este conceito, conhecido por dualidade onda-partícula, é uma parte central da física quântica. De Broglie ganhou o Nobel de Física em 1929, após o comportamento ondulatório da matéria ter sido observado em 1927. Portanto matéria e energia – corpúsculos e ondas -  são duas faces da mesma moeda. Basílio Teles não deixava de ter alguma razão: olhou só para uma das faces e não o podemos levar a mal por isso.

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...